Roteiro de Aula

Por que o Estado abre mão da sua jurisdição?

Justificativas para a participação de entes públicos em arbitragem

1. CONHECENDO O BÁSICO

O título desta aula veio de uma pergunta dirigida a mim e a outro advogado na vida real. Trabalhamos em um caso que seria um precedente importante de arbitragem entre a União e empresas privadas. Quando ele foi julgado, havia polêmica sobre a participação do Estado em arbitragem – ainda que a jurisprudência admitisse, por exemplo, a participação de empresas estatais em processos arbitrais.

Um desembargador perguntou: “por que a União vai abrir mão da minha jurisdição, que ela já conhece, em troca da arbitragem?”. É uma pergunta que faz sentido. Dividiu opiniões durante mais de dez anos na jurisprudência e na literatura especializada. Suscitou discussões entre juristas de diferentes áreas, incluindo administrativistas. Oferece uma oportunidade de pensarmos sobre como o Estado enxerga o seu próprio papel nas relações com os particulares.

Como sabemos, a jurisdição é um poder do Estado de decidir uma disputa. Ele goza de uma série de prerrogativas processuais quando litiga perante o Judiciário, mas que não estão presentes em arbitragem. Perguntar por que o Estado renuncia à sua jurisdição em benefício da jurisdição do tribunal arbitral é perguntar por que ele prefere se colocar num patamar de igualdade em relação a um ente privado (ou, ao menos, de menor verticalidade).

Nessa aula, vamos colocar a Administração Pública “no divã” para entender como essas mudanças de preferências envolvendo a solução de controvérsias também refletem uma alteração na forma de ver a própria Administração Pública e o Direito Administrativo.

Se você, como eu, teve um ensino mais “tradicional” do Direito Administrativo, provavelmente aprendeu sobre que a Administração Pública era uma agente implacável, munida de uma série de poderes e prerrogativas que deveriam ser empregados sem hesitação diante dos particulares para a consecução do interesse público. É uma visão preto no branco: só a Administração conhece o interesse público, por isso só a ela deveria caber o poder de decisão.

Por isso, no começo dos anos 2000, muitos administrativistas torciam o nariz só de pensar na Administração Pública participando de uma arbitragem (alguns torcem até hoje). E não só os administrativistas: muitos tribunais e o próprio Tribunal de Contas da União (TCU) refutavam veementemente a legalidade dos compromissos arbitrais celebrados pela Administração Pública. Acreditavam que um tribunal privado jamais poderia decidir sobre o interesse público.

Essa discussão só foi encerrada mesmo em 2015, quando a Lei de Arbitragem foi reformada e passou a prever expressamente que a Administração Pública poderia participar de arbitragem. Essa reforma foi vista importante para consolidar a arbitragem no direito brasileiro, mas ela também consagrou uma nova visão da relação entre Estado e particulares, baseada mais em parceria e consensualidade do que imposição. A pergunta que não quer calar é: por que a arbitragem se encaixaria nesse novo perfil? Que vantagens ela gera para a Administração Pública? E para os particulares?

Essa preocupação em gerar vantagens para ambos os lados é especialmente relevante quando colocamos na balança a possibilidade de que a Administração Pública celebre contratos com empresas transnacionais. Estas empresas podem investir em diversos países, que competem pela atração do capital estrangeiro. Em geral, estes contratos possuem cláusulas escolhendo a arbitragem para a solução de controversas. Investidores que vejam a arbitragem como uma solução vantajosa poderiam repensar sua decisão com base nisso– um exemplo clássico são os contratos de concessão para a exploração de petróleo que, não por acaso, estão entre os primeiros a terem cláusula compromissória.

Na teoria, então, será que podemos falar que um dos interesses da Administração Pública, ao abrir mão da jurisdição estatal, seria tornar os seus projetos mais atrativos para um maior número de potenciais parceiros privados? Como você deve se lembrar de outras aulas, o método de competição das contratações públicas é a licitação. Logo, quanto mais interessados, mais ofertas (ou seja, maior a competitividade). E a tendência de um processo de contratação mais competitivo é gerar melhores condições de contratação para a Administração Pública, favorecendo o interesse público. O maior ganho da administração, por essa linha de raciocínio, seria aumentar a atratividade dos seus projetos e gerar melhores condições de contratação.

Isso nos ajuda a entender apenas em partes o porquê de a Administração Pública optar pela arbitragem. O que ainda não está claro é (i) que vantagens as partes, tanto pública quanto privada, recebem ao escolher a arbitragem como a forma para a resolução das disputas referentes a um determinado contrato e (ii) se essas vantagens são suficientes para tornar as contratações mais atrativas para os potenciais parceiros privados.

Ao longo dos anos, a literatura especializada produziu uma série de trabalhos relatando vantagens que o uso da arbitragem traria para as partes – que beneficiam tanto a Administração Pública quanto os agentes privados. Uma das principais é a maior celeridade do procedimento. A sentença arbitral equivale a um título executivo judicial e não está sujeita a recurso. Por isso, pode ser imediatamente executada após o fim do procedimento. Mesmo a anulação de uma sentença arbitral é sujeita a um rol taxativo de hipóteses previstas em lei. Por isso, a arbitragem costuma ter um maior cumprimento espontâneo da sentença se comparado ao judiciário – ainda existe uma discussão muito interessante sobre a submissão do pagamento das condenações da Administração Pública em arbitragens ao regime dos precatórios, que não vamos conseguir aprofundar por aqui.

Outra vantagem frequentemente apontada é a possibilidade de as partes escolherem um árbitro com maior especialização na matéria. Isso é especialmente relevante em projetos de maior complexidade, como obras de infraestrutura, que tendem a ser assuntos muito específicos e que não são conhecidos pela maioria dos juristas – inclusive os juízes.

A arbitragem é mais flexível do que o processo judicial. Dá mais liberdade para as partes participarem da elaboração das normas aplicáveis ao procedimento – e, o que é mais relevante para os agentes privados, a Administração Pública litiga sem prerrogativas que a favoreçam.

Essas vantagens podem tornar a arbitragem mais atrativa para os agentes privados, inclusive porque podem representar um ganho econômico. Disputas são pagas com o dinheiro dos agentes. Existem bons argumentos, na literatura especializada, para se defender que a arbitragem, apesar dos elevados custos de entrada, possui menores custos de transação que, ao fim do processo, geram um melhor custo-benefício e podem até mesmo compensar os maiores gastos no custeio do litígio.

Claro que nem tudo são flores. Como vamos ver ao longo desta aula, existem uma série de motivos que poderiam contraindicar a escolha pela arbitragem, como os custos elevados para a solução das controvérsias, a disponibilidade efetiva (e não teórica) de árbitros realmente qualificados dentro de um mercado fechado e com muitos conflitos de interesse, risco de judicialização excessiva do processo arbitral e até mesmo eventual não aplicação de precedentes pelos árbitros.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICO ADMINISTRATIVA

Arbitragem em Números 2023

A professora Selma Lemes foi uma das autoras da Lei da Arbitragem. É advogada e também uma das arbitras mais requisitadas do Brasil. Foi, também, autora de um dos primeiros livros sobre o tema da arbitragem com a Administração Pública. Há anos ela realiza uma série de pesquisas empíricas, conhecidas como “arbitragem em números”, que faz uma radiografia das arbitragens no Brasil a partir de estatísticas e informações públicas sobre o tema.

Na data em que esta aula foi feita, a mais recente pesquisa disponível era a do ano de 2023, realizada em parceria pela professora Selma Lemes com o Canal de Arbitragem, e disponível no link:  https://canalarbitragem.com.br/wp-content/uploads/2023/10/Arbitragem-em-Numeros-2023-VF.pdf. .

            Separamos os principais destaques referentes às arbitragens com Administração Pública para discussão.

Arbitragem com a Administração Pública

Duração dos procedimentos

Conclusões

Que tendências você identifica a partir da análise das estatísticas levantadas pela pesquisa Arbitragem em Números para a Administração Pública? Ao que você as atribui? 

Lei da Arbitragem

A consolidação da arbitragem, no Brasil, só foi possível com a publicação, em 1996, da lei de Arbitragem. A lei revolucionou a forma como o instituto era regulamentado no país, retirando vários gargalos procedimentais que impediam a sua disseminação. Além disso, deu a segurança jurídica necessária para que as partes pudessem ficar mais tranquilas de que a escolha pela arbitragem seria respeitada e de que as sentenças arbitrais seriam proferidas.

O parágrafo 1º do art. 1º da Lei de Arbitragem, entretanto, só foi inserido com a reforma da Lei de Arbitragem, em 2015. Este dispositivo é muito importante, pois é ele quem determina quem pode ou não participar de uma arbitragem no direito brasileiro. Confira:

Lei n.º 9.307, de 23 de setembro de 1996
(Lei da Arbitragem)

“Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
§1º A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis” (Incluído pela Lei nº 13.129/2015).

O caput do dispositivo indica: (i) quem são as pessoas que podem submeter disputas à arbitragem (aquelas capazes de contratar) e (ii) quais disputas podem ser submetidas à arbitragem (as decorrentes de litígios patrimoniais disponíveis). O parágrafo primeiro precisou ser incluído durante a Reforma da Lei de Arbitragem pois muitos autores defendiam que a Administração Pública somente poderia participar de arbitragens, mesmo sendo capaz de contratar, se houvesse autorização legal expressa. Foi uma decisão do legislador para tornar inequívoca a possibilidade de a Administração Pública submeter suas disputas à arbitragem.

Esse conceito tem um nome no direito: arbitrabilidade, que pode ser definida como a aptidão de uma disputa a ser resolvida pela via arbitral, tanto por suas características objetivas quanto pelas subjetivas. Ou seja: podemos dizer que o art. 1º, §1º da Lei de Arbitragem delimita a arbitrabilidade das disputas no direito brasileiro. Sobre o conceito de arbitrabilidade, separamos um trecho do excelente livro “Teoria Geral da Arbitragem”, escrito pelos advogados José Antonio Fitchner, Sergio Nelson Mannheimer (que também foi procurador do Estado do Rio de Janeiro) e André Luis Monteiro, todos com extensa atuação em arbitragens nacionais e internacionais.

Teoria Geral da Arbitragem

Por José Antonio Fitchner, Sérgio Nelson Mannheimer e André Luis Monteiro
(Rio de Janeiro. Editora Gen | Forense. 2019. 1ª ed. pp. 223 e 225)

“A arbitrabilidade é um conceito fundamental na arbitragem. A arbitrabilidade pode ser conceituada como a possibilidade teórica de submissão de um conflito de interesses à arbitragem em razão das características subjetivas e objetivas da disputa. Procura-se, por meio da arbitrabilidade, estabelecer, basicamente, quem pode se submeter à arbitragem (arbitrabilidade subjetiva ou rationae personae) e o que pode ser submetido ao processo arbitral (arbitrabilidade objetiva ou rationae materiae).
Em tese, a noção de arbitrabilidade diz respeito muito mais a um aspecto externo do processo arbitral do que propriamente interno. Na verdade, a arbitrabilidade é uma noção utilizada pelos Estados soberanos para definir aquilo que tem interesse em julgar e aquilo que admitem, via consenso das partes, a delegação da jurisdição aos árbitros. Há, portanto, um inegável componente público na ideia de arbitrabilidade.
(…)
A arbitrabilidade, portanto, traz em si um componente público, correspondente a uma política pública de relacionamento entre os Estados soberanos e o instituto da arbitragem, em que aquele [o Estado] fixa os limites instransponíveis à arbitragem e esta, respeitando solenemente estes limites, coopera, na medida das suas possibilidades, com a tarefa de distribuir justiça. Esta política de relacionamento varia de acordo com diversos fatores, mas talvez se possa dizer que há, na experiência comparada, uma maior flexibilidade dos Estados soberanos quando se trata de um conflito relacionado a agentes do comércio internacional.
(…)
Normalmente, as limitações impostas à arbitrabilidade dizem respeito a questões intrínsecas do Estado (v.g.: acta iure imperii), a questões que afetem a coletividade como um todo (p. ex.: direitos transindividuais), a questões ligadas a aspectos sensíveis da vida pessoal do cidadão que são tutelados pelo Estado (isto é, filiação, poder familiar, ordem de vocação hereditária etc.) e a questões que, em tese, poderiam expor uma parcela específica da sociedade, considerada fragilizada em certas relações jurídicas (ou seja, consumidores, empregados, locatários etc.), a algum tipo de desigualdade ou de injustiça”.

Esse texto aborda um aspecto importante da arbitragem: ela no exercício de poder jurisdicional por um agente não estatal, o tribunal arbitral. Em outras palavras: é uma delegação de poderes estatais. Cabe, portanto, ao Estado definir em que limites estes poderes serão exercidos. A arbitrabilidade é o nome dado a este filtro normativo/jurisprudencial que limita (i) os sujeitos que podem submeter litígios à arbitragem e (ii) as pessoas que podem fazê-lo.

Entender o conceito de arbitrabilidade ajuda a enxergar, com outros olhos, o que o legislador fez ao reformar a Lei de Arbitragem e incluir a Administração Pública no art. 1º, §1º: ele reajustou o filtro da arbitrabilidade e expandiu, de forma incontroversa, os limites da arbitragem para a Administração Pública. Mas porque esta controvérsia existia? A seguir, separamos dois textos com visões opostas sobre o tema.
Curiosamente, ambos foram escritos por advogados públicos.

O primeiro é um trecho do livro Arbitragem e Administração Pública: Fundamentos teóricos e soluções práticas, de Bruno Lopes Megna, que enfoca a capacidade contratual da Administração Pública como justificativa para a arbitrabilidade subjetiva:

Arbitragem e Administração Pública. Fundamentos teóricos e soluções práticas

Por Bruno Megna Lopes
(Belo Horizonte. Editora Fórum. 2020. 1ª ed. 1ª reimpressão)

“Contra a existência da arbitrabilidade subjetiva para a Administração Pública, argumenta-se que esta se trata de uma pessoa incapaz de dispor de quaisquer interesses, na medida em que deles não é titular, mas apenas gestora em nome do povo, este sim seu titular que se manifesta pela via legislativa. Nesse sentido, há até mesmo quem duvide que existam contratos no âmbito administrativo.
Adicionalmente, argumenta-se que, na medida em que o interesse público torna extra commercium todas as coisas relacionadas aos serviços públicos, eventual conflito a seu respeito só poderia ser solucionado pelo magistrado estatal, oráculo do direito. Nesse sentido, há quem afirme ser vício metodológico supor que o Estado possa assumir situação jurídica de um particular e, pois submeter-se ao regime de direito privado.
Não é esta a interpretação adotada pela maioria da doutrina.
Guardado respeito à opinião contrária, tem-se que o vício metodológico, na verdade, está em predicar um único regime jurídico para todas as situações jurídicas em que se encontram a Administração, os agentes públicos e os bens públicos, ‘malgrado a discrepância de utilidades públicas a que podem servir’. Ao se considerar a Administração como pessoa jurídica que compra produtos e serviços, contrata empregados e, por vezes, até cobra pelas suas atividades (e.g., preços públicos), percebe-se que sua capacidade de contratar é inegável.
Dessa forma, na medida em que no Brasil a arbitrabilidade subjetiva se afere da capacidade de contratar, afirmar a capacidade contratual da Administração Pública é também afirmar a sua arbitrabilidade subjetiva, como de resto acontece com qualquer pessoa, física ou jurídica, de direito público ou privado”.

Você consegue identificar, com base no que já estudamos aqui, no que ele se diferencia do posicionamento adotado por outros autores? Observe a forma como ele trata a arbitrabilidade: uma consequência natural da capacidade contratual da Administração Pública. Para muitos  autores, seria ser necessária a autorização legal prévia e explícita, o que consideram ter sido suprido, de forma ampla, pelo art. 1º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem. Antes da Reforma da Lei de Arbitragem, por conta deste entendimento, diversas leis foram criadas com previsão específica de arbitragem para determinados setores (e.g. Lei de PPP, Lei do Petróleo) e muitos autores defendiam que apenas na presença de leis com esta característica seria possível, naqueles setores específicos, que a Administração Pública participasse de arbitragens.

O texto a seguir foi escrito pelo professor Ricardo Marcondes Martins, Procurador do Município de São Paulo. Tente identificar, na sua leitura, os contrapontos entre sua posição e a de Bruno Lopes Megna, bem como os fundamentos que ele trouxe para sustentar estas diferenças.

Arbitragem administrativa à luz da Constituição Federal

Por Ricardo Marcondes Martins
(Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura. Vol. 18/2021. pp.153-181)

“4. A adoção da arbitragem pela Administração Pública impõe considerações zetéticas: é surpreendente que, num contexto de elevada corrupção, como o brasileiro, alguém acredite que a Administração sempre escolherá alguém de confiança do povo para decidir sobre o interesse público. O afastamento de todas as regras jurídicas editadas em prol da obtenção da interpretação correta – predicamentos da magistratura, duplo grau de jurisdição, composição plural dos tribunais, tribunais superiores integrados por juristas mais experientes, todo regime do devido processo legal etc. – em prol do interesse do investidor privado causa, no mínimo, perplexidade.
5. Questões dogmáticas, porém, atuam contra a adoção do instituto. Num primeiro momento, afirmou-se que a adoção da arbitragem contrariaria a indisponibilidade do interesse público. Diante dessa tese, difundiu-se o entendimento de que ela só seria possível quando o interesse público fosse “secundário”. A tese é insustentável, por uma simples razão: nos termos pacificados na doutrina de quem propôs o conceito de interesse secundário, ele só será válido quando for “coincidente” com o primário. Ora, se é coincidente, e o primário é indisponível, o secundário não pode ser disponível.
(…)
7. A autorização legislativa afastou o obstáculo decorrente da indisponibilidade do interesse público. Não afastou, porém, o obstáculo decorrente da supremacia do interesse público sobre o privado. Do ponto de vista dogmático, o Judiciário é o oráculo do Direito, é o órgão encarregado de dar a última palavra sobre a interpretação jurídica. Para que o Judiciário consiga chegar à interpretação correta, há um denso regime jurídico. Não é válido afastar esse denso regime e retirar do oráculo do direito a competência para dar a última palavra sobre a interpretação jurídica apenas para satisfazer o interesse privado. A supremacia do interesse público sobre o privado não permite, concluiu-se, a adoção da arbitragem pela Administração Pública.”

Você consegue identificar o fundamento do autor para se opor à participação da Administração Pública em arbitragens? Observe que ele joga com os dois filtros postos pela Lei de Arbitragem: o subjetivo e o objetivo, tentando articular que a superação do primeiro não implica na aceitação do segundo. Ele sustenta um posicionamento que hoje em dia já foi largamente superado, mas que era recorrente na doutrina e jurisprudência sobre o tema no início dos anos 2000. Separamos um texto daquela época, escrito pelo Ministro Eros Grau, e que dialoga com esse tema, tentando entender qual é o papel (se é que existe um) do interesse público nas arbitragens com a Administração Pública:

Arbitragem e contrato administrativo

Por Eros Roberto Grau
(Revista de Direito da Faculdade da UFRGS, Março 2002. pp. 141-147)

“Essa derradeira observação assume fundamental importância, na medida em que a doutrina tem tropeçado em injustificada confusão entre indisponibilidade do interesse público e disponibilidade de direitos patrimoniais. Um e outro não se confundem.
(…)
Dispor de direitos patrimoniais é transferi-los a terceiros. Disponíveis são os direitos patrimoniais que podem ser alienados.
A Administração, para a realização do interesse público, pratica atos, da mais variada ordem, dispondo de determinados direitos patrimoniais, ainda que não possa fazê-lo em relação a outros deles. Por exemplo, não pode dispor dos direitos patrimoniais que detêm sobre os bens públicos de uso comum.
Mas é certo que inúmeras vezes deve dispor de direitos patrimoniais, sem que isso esteja a dispor do interesse público, porque a realização deste último é alcançada mediante a disposição daqueles.
Bem a propósito, as observações de ALESSI e de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, acima reproduzidas, permitem-nos salientar a circunstância de, v.g., realizar-se o interesse público na omissão, pela Administração, do uso de recursos judiciais meramente protelatórios, que se prestam unicamente a retardar, em benefício exclusivo do interesse da Administração, secundário, o cumprimento das suas obrigações.
Daí porque, sempre que puder contratar, o que importa disponibilidade de direitos patrimoniais, poderá a Administração, sem que isso importe disposição do interesse público, convencionar cláusula de arbitragem”.

Repare como a postura do autor é mais pragmática: ele traz o debate da Administração Pública, ainda que sem tocar diretamente no tema, para o campo da necessidade da obtenção de resultados favoráveis aos administrados pelo Poder Público. O autor consegue separar o interesse público do interesse da Administração e reconhece que a arbitragem pode ser um veículo para a sua consecução nos casos concretos. Ou seja, a verdadeira questão aqui é muito mais identificar se (e quando) a arbitragem pode atender a um interesse público. Sobre isso, separamos um trecho de artigo escrito pela Procuradora do Estado de São Paulo Eugênia Marolla, que traz consigo a importante visão da advocacia pública sobre o tema. Ela também é autora de um dos melhores e mais instigantes livros que li sobre o tema, que você pode encontrar como indicação de leitura para aprofundamento desta aula.

Arbitragem e Administração Pública: a evolução da atuação do Poder Público nos procedimentos arbitrais envolvendo entes úblicos

Por Eugenia Cristina Cleto Marolla
(Publicações da Escola Superior da AGU – Brasília. v. 16. n. 01. Mar/2024)

“O desenvolvimento da arbitragem nos setores regulados pode ser imputado a alguns fatores. O primeiro deles é o fato de as legislações específicas de alguns desses setores preverem a possibilidade da utilização de meios alternativos de solução de controvérsias antes mesmo da previsão, em 2004, dessa possibilidade na lei de parcerias público-privada (lei nº 11.079/04) e em 2005 na alteração da lei geral de concessões de serviços públicos (lei nº 8.987/95) pela lei 11.196/05.
Além disso, os contratos nesses setores são de longo prazo e envolvem uma sistemática econômico-financeira sofisticada, com vultuosos aportes de recursos financeiros para permitir a construção, a modernização e a manutenção da infraestrutura necessária à prestação adequada dos serviços públicos. Por serem de longo prazo, demandam a manutenção de uma relação azeitada entre os parceiros para permitir a realização do interesse público sem que isso venha implicar na ruína do privado. Permitir que os conflitos que surjam no decorrer dessa relação sejam resolvidos de forma adequada é essencial para o êxito dessa parceria.
Também é comum a participação de empresas nacionais e internacionais, individualmente ou em conjunto, como financiadores ou como executores do objeto contratual. A inclusão de mecanismos para solução de controvérsias fora do judiciário estatal, com maior celeridade e com sistemática e regras consagradas internacionalmente mostrou-se essencial para a participação de empresas e financiadores internacionais.
(…)
A Administração Pública em geral, e a advocacia pública em particular, tem participado ativamente da construção de mecanismos para garantir segurança jurídica para utilização da arbitragem por partes públicas, assim como tem utilizado a experiência adquirida ao longo dos anos nas arbitragens para melhorar suas cláusulas compromissórias e para capacitar agentes públicos para atuação nos contratos que contenham cláusula compromissória e nos procedimentos arbitrais.
A desconfiança inicial em relação a sua participação nas arbitragens foi superada. A ideia de que a Administração iria invocar o princípio da indisponibilidade do interesse público para requerer a nulidade das cláusulas compromissórias por ela firmadas ficou no passado e chega a parecer absurda no cenário atual, em que compromissos arbitrais são celebrados para levar para arbitragem conflitos oriundos de contratos que não contavam com cláusulas compromissórias.

A primeira vantagem apontada pela autora é o uso da arbitragem como uma ferramenta de gestão de conflitos visando a manutenção de boas relações comerciais em contratos de longa duração, como o caso dos litígios envolvendo o reequilíbrio econômico-financeiro de contratos de concessão. A autora entende que a arbitragem é um fórum mais adequado para a resolução deste tipo de disputa por facilitar a manutenção da relação amistosa entre as partes por toda a duração do contrato.

A segunda é que o respeito às cláusulas compromissórias é visto como uma forma de o poder público demonstrar seu compromisso com os contratos que assina. Este tipo de sinalização é visto como um elemento que dá maior segurança jurídica aos contratos assinados com a Administração Pública. Reforça uma posição horizontal da Administração em relação aos seus parceiros privados e o desejo de reforçar a atratividade econômica da parceria entre setor público e privado.

Advogados privados também trazem valiosas observações sobre o tema. Por isso, separamos também trechos de entrevista dada por Joaquim Muniz, que por anos foi presidente da Comissão de Arbitragem da OAB-RJ, em que ele apresenta vantagens e desvantagens que ele verifica na arbitragem:

Entrevista com Joaquim Muniz sobre arbitragem para o portal Conjur

Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-ago-16/entrevista-joaquim-muniz-especialista-arbitragem/. Último acesso em 01.11.2024.

“ConJur —E, com crise ou sem crise, o que explica essa inserção da arbitragem no Brasil?
Muniz — Primeiro, na arbitragem você tem uma qualidade de decisão melhor do que no Poder Judiciário. Isso não é um demérito Judiciário. Mas, em certas situações, em que você lida com contratos específicos, é muito difícil você submeter a um juiz generalista. Um amigo meu diz que o juiz é o sujeito com oceano de conhecimento, mas com um pires de profundidade. Ele sabe tudo, mas não vai saber profundamente de um contrato empresarial. Então, no escritório, 95% dos contratos vão ter arbitragem. São contratos específicos.

Se você vai falar de uma locação, de uma relação de empréstimo, de coisas usuais, vai para o Judiciário. Vai ser muito bem servido. Se for falar de contrato de energia elétrica, de petróleo, de compra de empresa, precisa de pessoas especializadas. E a arbitragem também está se espalhando em outras áreas.

(…)

ConJur — Voltando à arbitragem mais tradicional: além da especialidade dos árbitros na matéria objeto da controvérsia, quais outras vantagens existem?
Muniz — Algumas que são mais óbvias e outras mais escondidas. Entre as mais óbvias, é essa maior especialidade. Maior rapidez. Tem uma arbitragem que pode, como média das instituições, demorar um ano e meio, dois anos, comparado com uma ação judicial, que vai de três a dez anos… Saber quanto demora uma ação judicial é muito difícil, pois depende do tipo de ação. Mas a gente sabe que uma ação judicial não vai demorar de um ano e meio a dois anos, salvo se tiver executando cheque sem fundo e tiver a sorte de ter um devedor solvente, que deixe dinheiro no banco [risos].

ConJur — E quais as vantagens menos óbvias?
Muniz — A primeira é que, ao se colocar a arbitragem, você tem uma tendência de executar mais o contrato. Porque a decisão do Judiciário muitas vezes é vista como baseada em princípios abstratos, como o da boa-fé. Enquanto a arbitragem é algo mais específico, mais perto dos fatos, e você tem uma previsibilidade maior, uma menor influência de outros fatores. Mas aí de alguma forma você vai para uma roleta russa. Se você não tem uma instância uniformizadora da jurisprudência, como o STJ, então acaba dependendo de quem forem seus árbitros. Depende muito da qualidade do seu advogado de nomear árbitros certos.

ConJur — A arbitragem é cara num primeiro momento, mas nem tão cara assim quando se consideram também os custos de transação?
Muniz — As pessoas que defendem que a arbitragem não é cara dizem o seguinte: em primeiro lugar, na arbitragem, a princípio não tem sucumbência. Você tem direito a ser ressarcido pelos seus honorários advocatícios. Mas você não tem aquela sucumbência que pode ir de 10% a 20% do valor da causa. Então, em causas grandes, isso já reduz [os custos]. Na arbitragem você paga na frente um valor maior, mas depois o risco fica bem menor. Então, no fundo, é quando você paga. Só que é um portão, né? É um muro, que você tem que pular. Tem que pagar para ter processo.

Além disso, há custo do dinheiro. O quanto vale a pena você receber um dinheiro em dois anos ou em dez? Nessas duas perspectivas, tanto de sucumbência quanto de custo de capital, a arbitragem é mais barata. Agora, o problema da arbitragem é que ela te obriga a pagar na frente [antes] os custos. O que que acontece se eu não tiver dinheiro para pagar aquele valor lá na frente [para começar a arbitragem]? E aí você tem várias instituições tentando diminuir o risco por meio de uma coisa que eles chamam de arbitragem expedita. Que é para arbitragens com valores [da causa] menores, com custos menores. É um procedimento mais simples, mais barato. É uma arbitragem em que você vai ter menos quantidade de petição, ter que fazer petições menores, uma prova de quantidade menor, senão não se enquadra.

(…)

ConJur — E quais seriam eventuais pontos negativos?
Muniz — Como você nomeia os árbitros, toda vez que eles tomam uma decisão que não seja tecnicamente muito exata, a crítica vai ser dobrada. Para o juiz, é mais fácil, pois foi escolhido em sorteio. Aqui [na arbitragem], você [advogado] tem o seu comprometimento na escolha daquela pessoa. Então as críticas aos resultados das arbitragens são mais exacerbadas. Acho então que os árbitros têm que continuar preocupados em serem o mais técnico possível e o mais uniforme, ter muita preocupação com a questão dos precedentes, seguir os precedentes. Vejo também um bom avanço que a CCI fez, foi de permitir a publicação das sentenças, se as partes autorizarem. Quanto mais você publicar as sentenças de arbitragem, mais as pessoas vão entender como que funciona. A arbitragem tem uma rejeição daqueles que não conhecem. E realmente é uma caixa preta.”

O autor é um advogado privado. As vantagens que ele destaca são comumente destacadas na literatura especializada: celeridade dos procedimentos e especialidade dos julgadores. Ele também coloca o custo de entrada da arbitragem, mais elevado em comparação ao judiciário, como um mecanismo que incentiva o cumprimento espontâneo dos contratos, minimizando o risco dos litígios.

Nas entrelinhas, o autor deixa transparecer um possível risco à segurança jurídica, ainda que indireto, pois a qualidade da decisão e a vinculação do tribunal arbitral à jurisprudência e aos precedentes aplicáveis parece depender da sua composição – e.g. um árbitro poderia se descolar mais da jurisprudência/precedentes do que o judiciário. Ainda que a arbitragem com a Administração Pública siga crescendo, ela enfrenta desafios, como os descritos na reportagem abaixo, elaborada pelo Conjur:

Arbitragem que envolve administração pública avança com processos bilionários.

Matéria publicada por Alex Tajra no Conjur
Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-jan-29/arbitragem-que-envolve-administracao-publica-avanca-com-processos-bilionarios/#:~:text=Em%202023%2C%20a%20AGU%20passou,meio%20de%20conven%C3%A7%C3%B5es%20de%20arbitragem.

“É um problema porque, se por um lado estamos adotando a arbitragem em uma escala cada vez maior, por outro os bons servidores estão sendo deslocados de suas funções regulatórias para fazer essa atividade de defesa. Em casos da ANP e da ANTT, que são as mais demandadas, é muito evidente um certo prejuízo que o aumento da demanda da arbitragem gera para a atividade regulatória”, diz Santos [Nilo Sérgio Gaião Santos, coordenador da Equipe Nacional de Arbitragens da Procuradoria Geral Federal].
(…)
Um dos pontos, no entanto, que têm sido identificados como problemáticos na área é a escassez de árbitros de excelência que não tenham conflito de interesses com a administração pública. Isso porque muitos dos árbitros e peritos já atuaram em áreas como as procuradorias federais, ou advogaram para empresas públicas, por exemplo, o que impossibilita sua participação em arbitragens.
“O mercado é muito restrito e, no final das contas, quando vamos indicar um perito, são várias tentativas seguidas. Já houve casos em que foram indicadas quatro ou cinco equipes peritas diferentes e sempre na revelação você acaba se deparando com problemas de impedimento. Ao menos é um sinal de que a revelação está sendo feita”, diz Paula Butti, coordenadora do Núcleo Especializado em Arbitragem da AGU.

Um dos méritos da reportagem é trazer entrevistas com membros da AGU que estão diretamente envolvidos com arbitragens. As entrevistas confirmam a percepção de que a arbitragem pode ser benéfica à Administração Pública, cujos representantes demonstraram satisfação com os resultados obtidos. Ainda assim, ela enfoca outros aspectos que encobrem ou mitigam, ao menos do ponto de vista da Administração, algumas das vantagens que são tipicamente atribuídas à arbitragem.

Uma ferramenta conceitual que pode ajudar a articular e dar uma representatividade mais prática aos conceitos que estamos discutindo é a análise econômica do direito. Para tentar traduzir essas vantagens (e desvantagens) em custos e ganhos, recorremos a um trecho de artigo escrito pelos advogados Luciano Timm, Bruno Guandalini e Marcelo Richter:

Reflexões sobre uma análise econômica da ideia de arbitragem no Brasil

Por Luciano Beneti Timm, Bruno Guandalini e Marcelo Richter
(In: CARMONA, Carlos Alberto. LEMES, Selma Ferreira. MARTINS, Pedro Batista (org.). 20 Anos da Lei de Arbitragem: Homenagem a Petrônio R. Muniz. São Paulo. Editora Atlas. 2017. 1ª ed. pp. 85-88)

Os custos de transação foram ilustrados no supramencionado trabalho de Coase. Enquanto a economia clássica teorizava que o mercado seria um mecanismo perfeito de formação de preços, para ele, no mundo real, o mercado nem sempre o é, e, por isso, não é o único mecanismo de organização da atividade econômica. Disso resultariam imperfeições, as quais estariam relacionadas à existência de custos relativos à utilização de contratos de execução instantânea, em razão dos quais surgem incentivos para agentes econômicos estabelecerem novas formas de organização da atividade econômica, capazes então de evitar esses custos.
Verifica-se, então, que esses custos, possuindo natureza distinta dos custos de produção, foram denominados ‘custos de transação’, vez que se relacionam à forma pela qual se processa uma transação. Coase os identificou como sendo todos aqueles que dificultam que uma transação aconteça, já que seu teorema supunha que os indivíduos fariam trocas necessariamente até se atingir o equilíbrio caso os custos de transação fossem zero. Assim, os custos de transação abarcam os três passos de uma transação comercial: (i) custo de busca para a realização do negócio; (ii) custo da negociação; e (iii) custos do cumprimento do que foi negociado.
(…)
Já o custo de oportunidade, é o ‘preço’ que designa o custo econômico de uma alternativa que foi deixada de lado, que fora preterida, ou seja, o custo de alocação alternativa daquele recurso escasso.
(…)
Sustenta-se, portanto, que a ideia da arbitragem pode reduzir os custos de negociação (A), os custos administrativos de resolução de controvérsias (B), os Custos na demora da alocação da propriedade (C), os custos do erro da decisão (D), os custos da publicidade (E) e custos de ineficácia do procedimento (F).”

Os autores trabalham com uma ideia contra intuitiva: de que a arbitragem possa gerar algum vantagens econômicas às partes. Os custos da arbitragem são arcados integralmente pelas partes. Iniciar a arbitragem é substancialmente mais caro do que iniciar uma ação judicial. Existem outros tipos de custo, entretanto, que são potencializados pela arbitragem e que podem fazer com que, do ponto de vista econômico, ela seja até mesmo mais vantajosa, a depender do perfil e do montante envolvido em uma determinada disputa. Heitor Sica e Wilson Pimentel, dois destacados advogados e professores brasileiros, fizeram um estudo empírico para tentar entender como esta equação pode ser resolvida, com base nos conceitos da análise econômica do direito:

Custo do Processo Arbitral versus Custo do Processo Judicial: uma Análise Econômica da Realidade Brasileira

Por Heitor Vitor Mendonça Sica e Wilson Pimentel
(In: Revista Brasileira de Arbitragem. n º 68. Out-Dez. 2020)

A conclusão a que se chega, ao final, é que não seria absolutamente verdadeira a fama de que a arbitragem, no Brasil, seria um método mais caro de solução de conflitos se comparado com o processo judicial. Como se viu, essa afirmativa é verdadeira para a parte com menores chances de êxito, porém falaciosa para partes com maiores probabilidades de sucesso, para as quais a arbitragem acaba se revelando um método mais barato. Essa lógica pode ser explicada, em boa parte, pela inexistência de restituição dos honorários contratuais gastos pela parte vencedora e, ainda, pelo pagamento de honorários sucumbenciais ao advogado da parte vencedora. Com relação às grandes demandas, a arbitragem é, sim, mais adequada. Mas não o é por ser um método “custoso” de solução de conflitos e que comporta apenas grandes causas, mas porque se revela, nessas grandes ações, mais barato do que o processo judicial.”

O levantamento empírico promovido pelos autores parece comprovar as expectativas suscitadas pelo artigo anterior: a arbitragem, ao reduzir determinados custos incidindo sobre os litígios, gera uma vantagem econômica para as partes. Ele também elucida outro aspecto do processo arbitral: a vantajosidade é proporcional ao custo da disputa, o que sedimenta a posição da arbitragem como um método de resolução de disputas essencialmente voltado para casos de alto valor econômico. No caso da Administração Pública, isso inclui obras de infraestrutura, concessões de serviço público, concessões de exploração de petróleo, dentre outros.

André Rodrigues Junqueira, Procurador do Estado de São Paulo, também analisando a arbitragem a partir da análise econômica do direito, tentou entender como essas características do processo arbitral podem refletir no maior (ou menor) interesse dos contratantes privados em projetos desenvolvidos em parceria com a Administração Pública:

Arbitragem nas Parcerias Público-Privadas: um estudo de caso

Por André Rodrigues Junqueira
(Belo Horizonte. Editora Fórum. 2020. 1ª ed. pp. 181 e ss.)

“Nos contratos celebrados com a Administração Pública, em que a minuta contratual constitui um anexo ao edital de licitação, a representar uma escolha por adesão do particular interessado no certame, a presença da cláusula compromissória pode, em princípio, indicar um intuito cooperativo, no sentido de solucionar divergências obrigacionais de maneira mais adequada. Assim, a inserção da previsão de arbitragem poderia gerar o conforto de que o Poder Judiciário não será utilizado para a solução do litígio, com potenciais ganhos de tempo, eficiência e tecnicidade decisória.
(…)
A partir das técnicas utilizadas para contornar os fatores de riscos nos contratos, cabe examinar em que medida a presença da cláusula arbitral pode constituir um fator para equacionamento dos riscos contratuais. Trata-se de abordagem admitida em outros trabalhos acadêmicos, mas sem o merecido aprofundamento.
Nesse sentido, existem dois riscos já reconhecidos por especialistas, inclusive por acadêmicos de outros ramos do conhecimento científico, que são o risco de uma solução inadequada para um conflito contratual e o risco de paralisação da execução contratual pelo advento do litígio. Como já pontuado no capítulo segundo desta obra (item 2.2.1) sabe-se que os magistrados do Poder Judiciário, em geral, possuem uma formação generalista e poucos estão acostumados com os temas que permeiam os projetos públicos na área de infraestrutura. Além disso, a sobrecarga de trabalho nas varas judiciárias, decorrente da intensificação da litigância de massa, tende a reduzir a qualidade da prestação jurisdicional.
(…)
Sob outra perspectiva, a escolha da cláusula compromissória nos contratos públicos de infraestrutura pode representar uma opção das partes por uma mitigação de riscos, ao pressupor que a arbitragem cria um cenário institucional de redução das chances de solução inadequada do conflito ou paralisação da execução da avença”.

Junqueira traz uma série de provocações de grande interesse sobre o tema, especialmente com relação à cláusula compromissória e a redução de riscos relacionados ao contrato. Isso é muito importante em contratos de alta complexidade e longa duração, em que as partes estabelecem uma relação que deve durar por anos e encobrir toda a performance do contrato. São relações comerciais particularmente expostas a riscos. A pergunta é se, na prática, a arbitragem realmente impacta na opção feita pelos investidores ao decidirem (ou não) participarem de uma licitação.

Indiretamente, o STJ já teve a oportunidade de falar sobre o tema:

Superior Tribunal de Justiça

REsp nº 904.813/PR. Rel. Min. Nancy Andrighi

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. ARBITRAGEM. VINCULAÇÃO AO EDITAL. CLÁUSULA DE FORO. COMPROMISSO ARBITRAL. EQUILÍBRIO ECONÔMICO FINANCEIRO DO CONTRATO. POSSIBILIDADE.

1. A fundamentação deficiente quanto à alegada violação de dispositivo legal impede o conhecimento do recurso. Incidência da Súmula 284/STF.
2. O reexame de fatos e provas em recurso especial é inadmissível.
3. A ausência de decisão sobre os dispositivos legais supostamente violados, não obstante a interposição de embargos de declaração, impede o conhecimento do recurso especial. Incidência da Súmula 211/STJ.
4. Não merece ser conhecido o recurso especial que deixa de impugnar fundamento suficiente, por si só, para manter a conclusão do julgado. Inteligência da Súmula 283 do STF.
5. Tanto a doutrina como a jurisprudência já sinalizaram no sentido de que não existe óbice legal na estipulação da arbitragem pelo poder público, notadamente pelas sociedades de economia mista, admitindo como válidas as cláusulas compromissórias previstas em editais convocatórios de licitação e contratos.
6. O fato de não haver previsão da arbitragem no edital de licitação ou no contrato celebrado entre as partes não invalida o compromisso arbitral firmado posteriormente.
7. A previsão do juízo arbitral, em vez do foro da sede da administração (jurisdição estatal), para a solução de determinada controvérsia, não vulnera o conteúdo ou as regras do certame.
8. A cláusula de eleição de foro não é incompatível com o juízo arbitral, pois o âmbito de abrangência pode ser distinto, havendo necessidade de atuação do Poder Judiciário, por exemplo, para a concessão de medidas de urgência; execução da sentença arbitral; instituição da arbitragem quando uma das partes não a aceita de forma amigável.
9. A controvérsia estabelecida entre as partes – manutenção do equilíbrio econômico financeiro do contrato – é de caráter eminentemente patrimonial e disponível, tanto assim que as partes poderiam tê-la solucionado diretamente, sem intervenção tanto da jurisdição estatal, como do juízo arbitral.
10. A submissão da controvérsia ao juízo arbitral foi um ato voluntário da concessionária. Nesse contexto, sua atitude posterior, visando à impugnação desse ato, beira às raias da má-fé, além de ser prejudicial ao próprio interesse público de ver resolvido o litígio de maneira mais célere.
11. Firmado o compromisso, é o Tribunal arbitral que deve solucionar a controvérsia.
12. Recurso especial não provido.

No caso em análise, o STJ decidiu que a Administração Pública pode utilizar a arbitragem mesmo quando não há previsão no Edital de licitação e no instrumento contratual. Para entender melhor o julgado, vamos precisar dar um passo atrás. A Lei de Arbitragem permite dois tipos de convenção arbitral: (i) a cláusula compromissória, inserida no próprio contrato, e (ii) o compromisso arbitral, celebrado entre as partes após a instauração da disputa em instrumento apartado do contrato.

A maior relevância desse caso está no que ele não diz. Reparem que a manutenção do compromisso arbitral teve, como fundamento, a não vulneração do conteúdo ou regras do certame. A sua higidez é protegida como forma de resguardar a estrutura econômica da proposta. O racional é o seguinte: se o conteúdo do certame muda após a conclusão, a sua condição econômica muda, aumentando (ou reduzindo) a sua atratividade. Nas condições alteradas, a contratação promovida pela Administração Pública não necessariamente teria sido a mais vantajosa. Ou seja: premissa do fundamento do acórdão parece não considerar que a arbitragem representa algum tipo de ganho econômico para as partes.

Ainda estamos muito longe de ter um consenso sobre o tema, especialmente no que diz respeito às evidências empíricas dos benefícios econômicos gerados sobre a arbitragem. Embora muitas pesquisas de grande qualidade tenham sido feitas sobre o tema, algumas inclusive usadas nesta aula, ainda é muito difícil quantificar a importância da arbitragem para a Administração Pública e seu impacto real na atratividade e precificação de contratos públicos. Ainda assim, é essencial aprender a raciocinar criticamente sobre o tema, para não demonizarmos a arbitragem (ou colocá-la em um pedestal).

Se esta aula ajudar você a analisar o tema de forma mais pormenorizada, ela terá sido um grande sucesso.

3. DEBATENDO

  1. Ao longo da aula, foram trabalhados textos de autores com diferentes perfis: advogados públicos, advogados privados, acadêmicos etc. Você acha que existe uma diferença perceptível de opiniões dos autores que possa ser atribuível ao lado que eles ocupam profissionalmente nestas disputas? Se sim, qual diferença?
  2. Com base na pergunta anterior, você acha possível, a partir das discussões desta aula, afirmar que há convergência ou divergência nas posições de entes privados e da Administração Pública com relação à arbitragem?
  3. A arbitragem é um tipo de processo, mas é muito vinculada ao direito material. Com frequência, opiniões de autores sobre arbitragem refletem certos conceitos de direito material. Você consegue identificar quais são as grandes discussões de Direito Administrativo por trás dos conceitos de arbitragem apresentados nesta aula?
  4. Em complemento à pergunta anterior, relacione às divergências teóricas entre o Prof. Ricardo Marcondes Martins e o Min. Eros Grau, conforme os textos trabalhados na aula, e as visões diferentes de institutos de Direito Administrativo que eles demonstraram.
  5. Dados empíricos mostram uma crescente adesão à arbitragem da parte dos entes públicos. Na sua opinião, esta adesão acompanha uma mudança de paradigmas no Direito Administrativo ou ela está vinculada aos resultados empíricos verificados em diferentes arbitragens com a Administração Pública?
  6. A arbitragem gera um ganho econômico para a Administração Pública? Qual? E para os particulares?
  7. Assumindo que a arbitragem não gere vantagem econômica para nenhuma parte, você acha que algum outro aspecto justificaria a adesão da Administração Pública à arbitragem?
  8. Na sua opinião, a escolha pela arbitragem é compatível com o interesse público? Justifique.
  9. Muitos decretos foram criados, em diferentes níveis, para regulamentar a forma como a Administração Pública participa de arbitragens. Se você fosse um gestor público encarregado da elaboração de um destes decretos, como você lidaria com a questão da arbitrabilidade?

4. APROFUNDANDO

ACCIOLY, João Pedro. Arbitrabilidade objetiva em conflitos com a administração pública. Revista dos Tribunais, v. 101, p. 47–92, jul. 2020.

ACCIOLY, João Pedro. Arbitragem em Conflitos com a Administração Pública. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2019. 1ª ed.

CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. São Paulo. Editora Atlas. 2023. 4ª ed.

GIACOMUZZI, José Guilherme. Uma Breve Genealogia do Interesse Público. In. O Direito Administrativo na Atualidade: Estudos em homenagem ao centenário de Hely Lopes Meirelles (1917-2017). Org. WALD, Arnoldo et alli. São Paulo. Malheiros. 2017. 1ª edição.

LEMES, Selma. Arbitragem na Administração Pública: Fundamentos Jurídicos e Eficiência Econômica. São Paulo. Quartier Latin. 2007.

MAIA, Alberto Jonathas. Fazenda Pública e Arbitragem: do contrato ao processo. Salvador. Editora JusPodium. 2020. 1ª ed.

MAROLLA, Eugênia Cristina Cleto. A Arbitragem e os contratos da Administração Pública. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2016. 1ª ed.

OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Especificidades do processo arbitral envolvendo a Administração Pública. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/49/edicao-1/especificidades-do-processo-arbitral-envolvendo-a-administracao-publica, último acesso em 26/06/2023.

OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de; ESTEFAM, Felipe Fawichow. Curso Prático de Arbitragem e Administração Pública. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2019. 1ª ed., 2ª tiragem.

SALLES, Carlos Alberto. Arbitragem em Contratos Administrativos. Rio de Janeiro. Editora Gen | Forense. 2011. 1ª ed

SANTOS, José Marinho Séves. MONEGALHA, Guilherme Afonso. Arbitrabilidade Objetiva além do Interesse Público: O Critério da Negociabilidade. Disponível em https://www.fgvblogdearbitragem.com.br/post/arbitrabilidade-objetiva-al%C3%A9m-do-interesse-p%C3%BAblico-o-crit%C3%A9rio-da-negociabilidade. Último acesso em 11.01.2024.

SOMBRA, Thiago Luís. Mitos, crenças e a mudança de paradigma da arbitragem com a administração pública. Revista Brasileira de Arbitragem. Kluwer Law International. 2017, Vol. XIV, nº 54.

PAULSSON, Jan. The Idea of Arbitration. Oxford University Press. 2013. 1ª ed.

SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. O Cabimento da Arbitragem nos Contratos Administrativos. Revista de Direito Administrativo, n. 248, 2008.