1. CONHECENDO O BÁSICO
Agora que você já sabe o que é licitação, já parou para pensar que cada contratação pública é, na verdade, a materialização de uma política pública? Uma licitação bem-feita pode ser tão vital quanto o trabalho de um médico. Uma compra mal planejada de medicamentos pode causar problemas de fornecimento, sobrepreço e falta de remédios essenciais. Por isso, o planejamento em licitação é o pilar fundamental para garantir que as contratações públicas sejam eficientes, legais e impactem positivamente a vida das pessoas.
Como assegurar que uma licitação atenda às necessidades da sociedade? O primeiro passo é ver o planejamento como fase estratégica essencial para o sucesso da contratação. Não basta saber o que comprar; é preciso entender o porquê e como isso se conecta aos objetivos da política pública.
Mas como transformar esse ideal em prática?
A chave está em enxergar o planejamento como uma fase estratégica, e não apenas como uma formalidade. Não basta saber o que comprar; é essencial entender por que e como essa aquisição se conecta aos objetivos da política pública. Quando um município licita a construção de uma escola, está promovendo o direito à educação, mas, para isso, precisa planejar desde os recursos até os prazos.
Infelizmente, na prática municipal, limitações como falta de pessoal qualificado, urgências mal geridas e recursos escassos dificultam o cumprimento do que a lei exige. O planejamento, nesse contexto, torna-se um desafio e, ao mesmo tempo, a solução para otimizar o uso do dinheiro público e maximizar o impacto social.
O planejamento deve começar com uma análise criteriosa das necessidades públicas. Que problema a administração busca resolver? Quais os benefícios esperados? Sem responder a essas perguntas, corre-se o risco de contratações desnecessárias ou mal planejadas, desperdiçando recursos e frustrando a sociedade. Por isso, a fase interna da licitação, onde ocorre o planejamento, deve ser tratada com cuidado, pois aqui se define o sucesso ou fracasso do processo.
O desafio é transformar o planejamento em prática comum na administração pública. Muitas vezes, é visto como formalidade cumprida rapidamente, sem o devido cuidado nas etapas essenciais. Essa falta de cultura pode levar a contratações mal feitas, prejudicando a administração e a sociedade.
A Lei nº 14.133/2021 reforça a importância do planejamento nas fases interna e externa da licitação.
O planejamento envolve atividades preliminares antes do lançamento do edital, desde a identificação das necessidades, definição de estratégias, avaliação de riscos até a preparação dos documentos técnicos e jurídicos que embasam o processo.
O primeiro passo é elaborar o Plano de Contratações Anual (PCA), prevendo as necessidades ao longo do ano. Depois, é preciso fundamentar técnica e economicamente a contratação através dos Estudos Técnicos Preliminares (ETP). Esses estudos são a espinha dorsal do planejamento, analisando a demanda real, alternativas no mercado e viabilidade da solução. É fundamental perguntar: “Essa é a melhor solução?” ou “Existem alternativas mais econômicas ou eficientes?”. Essas reflexões evitam decisões baseadas em percepções imediatas ou pressões, fundamentando-as em análise objetiva e técnica.
Outro aspecto crítico do planejamento é a análise de riscos. Quais são os potenciais problemas que podem surgir ao longo da execução contratual? Como garantir que os prazos serão cumpridos e que a qualidade do objeto contratado será mantida? A gestão de riscos é uma ferramenta indispensável no planejamento, pois antecipa os desafios e permite que a administração esteja preparada para enfrentá-los. A próxima etapa é elaborar o Projeto Básico para obras, ou o Termo de Referência, que dará forma à licitação.
O planejamento não se resume à fase interna da licitação (ou seja, antes da publicação do edital); estende-se por todo o ciclo de contratação, incluindo gestão e fiscalização do contrato. Nesse contexto, os documentos de planejamento ganham mais relevância, servindo como guias para as etapas subsequentes.
A seguir, vamos entender como os documentos se encaixam no processo licitatório e o que ocorre se o planejamento der errado. Prepare-se para descobrir como um bom planejamento pode ser a diferença entre uma contratação bem-sucedida e um processo repleto de problemas. Então vamos em frente!
2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
A falta de impessoalidade é assunto presente no debate público. Ela causa desconforto e debate. Aqui vão alguns exemplos.
Estudo revela constantes estouros de orçamento em projetos públicos
The New York Times
Disponível em:https://www.nytimes.com/2002/07/11/us/study-finds-steady-overruns-in-public-projects.html (tradução nossa)
Os estouros de orçamento para grandes obras públicas permaneceram amplamente constantes durante a maior parte do último século, de acordo com um estudo de 258 projetos publicado nesta semana no The Journal of the American Planning Association.
Ao prever as despesas de projetos de transporte, economistas e promotores de projetos nos Estados Unidos, Europa e em outros lugares subestimaram os custos, gerando prejuízos de centenas de bilhões de dólares para o público, disse Bent Flyvbjerg, professor da Universidade de Aalborg, na Dinamarca, e autor do estudo.
As estimativas de projetos entre 1910 e 1998 ficaram, em média, 28% abaixo dos custos finais, constatou o estudo. Os maiores erros ocorreram em projetos ferroviários, que excederam os custos estimados, em média, em 45%. Pontes e túneis ultrapassaram em 34%; estradas, em 20%. Nove em cada dez estimativas foram subestimadas, informou o estudo.
O estudo também observou que as estimativas não são mais precisas hoje do que eram há 90 anos.
“Não há aprendizado ocorrendo entre os profissionais que elaboram esses orçamentos”, disse Flyvbjerg.
“Ou as pessoas que fazem os orçamentos são incrivelmente estúpidas, o que é altamente improvável”, acrescentou ele. “A outra possibilidade é que manipularam os orçamentos para garantir que os projetos fossem aprovados.”
Alan Altshuler, professor de política urbana e planejamento na Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, elogiou o estudo – embora tenha evitado rotular os contratantes como mentirosos.
“A estrutura de incentivos é extremamente forte para subestimar os custos”, disse ele. “A tentação de adotar a visão mais otimista é muito forte porque ajuda a obter a aprovação do projeto.”
Martin Wachs, professor de planejamento urbano e regional na Universidade da Califórnia, em Berkeley, concordou que grandes projetos eram particularmente vulneráveis às subestimações. “Você precisa fazer algumas suposições sobre o futuro ao preparar uma previsão”, disse ele. “Por que não desenvolver uma previsão que apoie uma posição específica?”
A conscientização pública sobre os custos subestimados permanece baixa, constatou o estudo, em parte porque a cobertura jornalística é inconsistente, disse Altshuler. O intervalo entre a primeira estimativa e a conclusão do projeto – que pode chegar a 20 anos em alguns casos – pode abranger gerações em algumas redações.
Um projeto de Nova York incluído no estudo é o Túnel Holland, concluído em 1927 a um custo de US$ 48 milhões. Flyvbjerg disse que as estimativas iniciais para o projeto eram 52% mais baixas.
O Túnel do Canal da Mancha, entre a Inglaterra e a França, teve um custo 80% superior ao orçamento inicial. O Big Dig de Boston – que colocou as principais rodovias da cidade no subsolo – começou há 15 anos com um custo projetado de US$ 4,5 bilhões e agora tem um preço de US$ 14,6 bilhões.
Flyvbjerg sugeriu maior transparência no processo de estimativa. Quanto maior a conscientização pública e a participação, mais precisas as estimativas podem se tornar, disse ele. O estudo, no entanto, encontrou pouco incentivo para mudanças. Flyvbjerg disse que teve dificuldade em fazer os construtores discutirem o assunto. “As pessoas fogem gritando”, disse ele. “Não parece bom para a profissão.”.
O estudo citado nos leva a pensar sobre como planejamentos ruins com estouros de orçamento e previsões subestimadas são problemas globais e impactam a administração pública de todos os países. Apesar de exemplos em obras de grande vulto, como pontes e túneis, os desafios são semelhantes em contratações menores, como a compra de materiais escolares ou medicamentos. Será que os mecanismos previstos na Lei nº 14.133/2021 realmente têm o potencial de mitigar esses problemas no Brasil? E como os países desenvolvidos lidam com suas próprias dificuldades de planejamento? Essa comparação poderia trazer insights valiosos para o aprimoramento das nossas práticas.
Além disso, precisamos lembrar que a pressão política e o otimismo excessivo frequentemente distorcem previsões, enquanto uma coleta de dados inadequada compromete a base de sustentação do planejamento. Essa falta de informações robustas resulta em planos superficiais e vulneráveis a falhas durante a execução. Para agravar a situação, a escassez de recursos financeiros força escolhas baseadas no que é viável, muitas vezes em detrimento do ideal ou do que teria maior impacto social e econômico. Essa combinação de fatores reforça como o planejamento, embora essencial e bem-intencionado, está constantemente sob o efeito de influências externas e limitações práticas que enfraquecem a qualidade das decisões tomadas.
Essa realidade demonstra a necessidade urgente de mudanças profundas na forma como o planejamento é conduzido. Não basta implementar novas leis ou regulamentações; é preciso criar uma cultura de planejamento estratégico e fundamentado, onde as decisões sejam guiadas por dados concretos e alinhadas aos objetivos de longo prazo da administração pública. Então, como podemos melhorar o planejamento? Será que todas as respostas estão dentro do mundo jurídico? E se estiverem fora, onde? Vamos pensar juntos analisando mais dois exemplos de um país desenvolvido:
Como fazer grandes coisas
Por Bent Flyvbjerg e Dan Gardner
Editora Citadel
Em 2008, os eleitores do “estado dourado” foram convidados a se imaginarem na Union Station, no centro de Los Angeles, a bordo de um elegante trem prateado. Saindo da estação, o trem desliza silenciosamente pela área urbana e seus intermináveis engarrafamentos e acelera, à medida que entra nos espaços abertos do Vale Central, até que os campos parecem apenas borrões nas janelas. O café da manhã é servido. No momento em que os atendentes limpam copos e pratos do café, o trem desacelera e desliza para outra estação. Está no centro de São Francisco. Toda a viagem levou duas horas e meia, quase o tempo que levaria para um cidadão comum se dirigir até o aeroporto, passar pela segurança e entrar em um avião esperando pela partida. O custo da passagem do trem era de US$ 86.
O projeto chamava-se California High-Speed Rail. Ele conectaria duas das maiores cidades do mundo, unindo-as ao Vale do Silício, a capital global da alta tecnologia. Costumamos ver palavras como “visionário” sendo usadas sem muito critério, mas nesse caso realmente se tratava de algo visionário. E por um custo total de US$ 33 bilhões estaria pronto em 2020. O projeto foi estimado entre US$ 32,785 bilhões e US$ 33,625 bilhões.
(…)
Depois que os eleitores aprovaram o projeto, a construção começou em vários pontos ao longo da rota, mas a execução sofreu atrasos constantes. Os planos foram alterados repetidas vezes. As estimativas de custos subiram para US$ 43 bilhões, US$ 68 bilhões, US$ 77 bilhões e depois quase US$ 83 bilhões. Enquanto escrevo, a estimativa mais atual é de US$ 100 bilhões. Mas a verdade é que ninguém sabe qual será o custo final total.
Em 2019, o governador da Califórnia anunciou que o estado entregaria apenas parte da rota: o trecho de 275 quilômetros entre as cidades de Merced e Bakersfield, no Vale Central da Califórnia, a um custo estimado de US$ 23 bilhões. Mas, quando esse trecho estiver concluído, o projeto vai parar. Caberá a algum futuro governador decidir se lançará o projeto novamente e, em caso afirmativo, descobrir como obter os cerca de US$ 80 bilhões necessários — ou qualquer que seja o número até lá — para estender os trilhos e finalmente conectar Los Angeles a São Francisco.
(…)
Para se ter uma ideia, considere que o custo da linha apenas entre Merced e Bakersfield é o equivalente ao Produto Interno Bruto anual de Honduras, Islândia e cerca de cem outros países. E esse dinheiro construirá a linha férrea mais sofisticada da América do Norte entre duas cidades das quais a maioria das pessoas fora da Califórnia nunca ouviu falar. Será – como dizem os críticos – o “trem-bala para lugar nenhum”.
Como as ideias se tornam planos que concretizam projetos de sucesso? Não dessa maneira. Uma ideia ambiciosa é uma coisa maravilhosa. A Califórnia foi ousada. Sonhou alto. Mas, mesmo com baldes de dinheiro, uma ideia não é suficiente.
(…)
[Por outro lado], a construção do Empire State foi estimada em US$ 50 milhões. Na verdade, custou cerca de US$ 41 milhões (US$ 679 milhões em 2021). Isso é 17% abaixo do orçamento, ou US$ 141 milhões em 2021. A construção ficou pronta várias semanas antes da cerimônia de inauguração. Chamo o padrão seguido pelo Empire State e por outros projetos de sucesso de “Pense devagar, aja rápido”.
Chamo o padrão seguido pelo Empire State e por outros projetos de sucesso de “Pense devagar, aja rápido”.
O conceito de “pensar devagar, agir rápido”, ilustrado pela construção do Empire State Building, traz lições preciosas para o planejamento público. Ele nos mostra que grandes ideias só se tornam realidade com um planejamento bem pensado e uma execução eficiente. Dedicar tempo para refletir, detalhar e estruturar um projeto é o que permite que a sua realização aconteça de forma ágil e eficaz. Isso não significa apenas evitar erros, mas também potencializar os benefícios que um projeto pode trazer, seja ele uma grande obra de infraestrutura ou uma contratação menor, mas igualmente relevante para a sociedade.
No âmbito da administração pública, onde os recursos são limitados e as demandas são enormes, esse planejamento cuidadoso é ainda mais importante. Aqui entra em cena o papel essencial dos Estudos Técnicos Preliminares (ETP). Esses estudos vão muito além de uma formalidade prevista na Lei nº 14.133/2021; eles são a base para que as decisões sejam tomadas com segurança, alinhando os objetivos do projeto às necessidades reais da sociedade. Sem um ETP bem-feito, os riscos de falhas na execução aumentam consideravelmente.
Um dos pontos mais valiosos do ETP é a possibilidade de incorporar perspectivas multidisciplinares. Ele permite que o planejamento se abra para outras áreas do conhecimento, como a economia, trazendo insights que podem fazer toda a diferença. Por exemplo, a análise de custos de transação é uma ferramenta poderosa para avaliar alternativas e prever impactos financeiros. Essa abordagem permite uma visão mais clara das opções disponíveis, ajudando a escolher soluções que sejam economicamente viáveis e alinhadas às necessidades da população. Ao mesmo tempo, evita problemas como expectativas irreais ou orçamentos que não correspondem à realidade.
Bem, agora que entendemos a importância do planejamento, precisamos entender como ele se operacionaliza na prática, suas fases e a importância de cada documento. O planejamento é um elemento essencial não apenas para garantir a regularidade e a eficiência das licitações, mas também para alinhar as contratações aos objetivos estratégicos das políticas públicas. Este aspecto é fundamental para assegurar que os recursos sejam aplicados de forma ótima e atendam ao interesse público, gerando impacto positivo na sociedade.
O texto a seguir, de Carlos Cox, aborda de forma clara os diferentes tipos de planejamento que envolvem as contratações públicas, conforme a Lei nº 14.133/2021. Cox apresenta os conceitos de planejamento estratégico, tático e operacional, destacando suas respectivas responsabilidades e níveis hierárquicos, além de mostrar como cada tipo de planejamento contribui para a efetividade das contratações públicas.
PLANEJAMENTO OPERACIONAL DAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS: CONFORME A LEI N.º 14.133/2021
Por Carlos Henrique Harper Cox
Ed. Juspodivm
É possível identificar na literatura técnica três tipos de planejamento, cujo critério de diferenciação é alcance dos objetivos organizacionais e o nível hierárquico que mobilizam. São eles o planejamento estratégico, planejamento tático e o planejamento operacional.
O planejamento estratégico das contratações públicas é de competência da Alta Administração e precisa ser elaborado a partir da própria Lei nº 14.133/21, que já trouxe um rol de cinco objetivos das contratações. (…)
Esses objetivos, que decorrem de lei, devem ser desdobrados pela Alta Administração em metas e objetivos estratégicos, que deverão ser perseguidos em determinado horizonte temporal, geralmente de longo prazo – plano decenal, por exemplo. Djalma Oliveira ensina que “(…) o planejamento estratégico relaciona-se com objetivos de longo prazo e com estratégias e ações para alcançá-los que afetam a empresa como um todo (…)”.
Em um município, a Alta Administração é representada pelo Prefeito, que é a autoridade máxima das compras públicas.
O planejamento tático, a seu turno, é um desdobramento do planejamento estratégico, envolvendo um nível intermediário da hierarquia organizacional e tendo um horizonte de médio prazo a curto prazo.
Trata-se de um planejamento setorial e temático. Em um município, o planejamento tático ficará a cargo dos Secretários e geralmente versarão sobre temas afetos às respectivas pastas. Por exemplo, integram o planejamento tático das contratações o plano de logística sustentável, plano de contratações anual, plano de capacitação anual e plano diretor de tecnologia da informação.
Já no planejamento operacional é de competência dos órgãos de execução das contratações, sendo um desdobramento do planejamento estratégico e tático, consistindo nas atividades rotineiras da organização e se materializando nas contratações individuais de curto prazo.
Esse nível trata do processo de planejamento das contratações em si, como a aquisição de medicamentos, contratação de empresa para transporte escolar ou construção de uma maternidade.
O planejamento estratégico das contratações é uma função atribuída à alta administração e tem como foco definir objetivos amplos que orientam as ações dos órgãos e entidades públicas. Esse tipo de planejamento deve estar alinhado aos princípios da administração pública, tais como a eficiência, a economicidade e a transparência, conforme estabelecido pela Lei nº 14.133/2021. A partir dessas diretrizes estratégicas, é possível estabelecer metas claras e objetivos a serem alcançados no médio e longo prazo, garantindo que todas as ações sejam direcionadas para a obtenção de resultados concretos e mensuráveis. O planejamento tático, por sua vez, envolve um nível intermediário da hierarquia administrativa e abrange o desenvolvimento de planos setoriais e temáticos que desdobram as diretrizes estratégicas em ações específicas.
No entanto, uma questão essencial permanece: como saber se um planejamento foi bom? Seria suficiente avaliar os resultados, ou devemos olhar apenas para o processo que levou a essas escolhas? Essa reflexão é crucial para avançarmos em direção a uma gestão pública mais eficaz, responsável e conectada às demandas reais da população.
Vamos ver um caso prático cujo resultado foi ruim, mas que não parece ter havido problema no planejamento (mesmo que no curto prazo):
INSPEÇÃO ESPECIAL 10409/20 – TCE-PB
Versam os autos acerca de Inspeção Especial de Acompanhamento de Gestão instaurada para análise da aquisição de ventiladores pulmonares, pela Secretaria de Estado da Saúde (SES/PB), através do Consórcio Nordeste, para o enfrentamento da situação de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19.
Em março de 2020 a Secretaria de Estado da Saúde do Estado da Paraíba (SES/PB) assinou o contrato 085/2020, decorrente da Dispensa de Licitação 086/2020, com a empresa Intermed Equipamento Médico Hospitalar Ltda. para aquisição de 84 ventiladores pulmonares com vistas ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia por coronavírus. O referido procedimento de dispensa ocorreu sob a égide do estado de calamidade pública declarado pelo Decreto Estadual 41.134/20 e aplicando-se, portanto, as disposições da Lei Federal n° 13.979/2020, no tocante à dispensa do procedimento licitatório. A necessidade de aquisição e utilização da dispensa foi justificada pela busca à regular prestação dos serviços de saúde aos pacientes da rede hospitalar estadual.
(…)
Ocorre que, conforme explica a Defesa, em 02-04-2020 a empresa fornecedora comunicou a impossibilidade de cumprimento do contrato uma vez que toda sua produção fora requisitada pelo Ministério da Saúde. Os efeitos desta requisição administrativa só foram superados em junho mediante a Ação Civil Pública nº 0804292-6.2020.4.5.05.8200 proposta pelo Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual.
(…)
IRREGULARIDADES QUE PERMANECEM
4.2.1 De responsabilidade do Sr. XXX, Governador do Estado, e do Sr. XXXX , Secretário de Estado da Saúde:
a) No que tange ao Contrato Administrativo nº 005/2020, não foram entregues à Paraíba os 30 (trinta) ventiladores pulmonares adquiridos, através do Consórcio Nordeste, à empresa HEMPCARE PHARMA REPRESENTAÇÕES LTDA. (subitens 3.3.1.2 e 3.3.1.4 do relatório inicial);
b) Os numerários, totalizando R$ 4.947.535,80 (quatro milhões, novecentos e quarenta e sete mil, quinhentos e trinta e cinco reais e oitenta centavos) devem ser ressarcidos imediatamente ao erário estadual, pois correspondem a despesas realizadas sem que tenha havido o fornecimento do material (subitem 3.3.1.4 do relatório inicial);
c) Os gestores, apesar da situação de pandemia, não podem se esquivar da transparência exigida na execução da despesa pública (subitem 3.3.2 do relatório inicial).
O exemplo da aquisição de ventiladores pulmonares pelo Consórcio Nordeste é emblemático. Apesar de um planejamento que aparentava estar alinhado com as demandas urgentes da pandemia, o resultado foi ruim: recursos foram gastos sem que os equipamentos fossem entregues. Nesse cenário, a questão central é: devemos julgar o processo apenas pelo seu desfecho, ou é preciso considerar o contexto, os desafios enfrentados e as escolhas feitas ao longo do caminho?
O mundo jurídico, com sua tradição de analisar e julgar situações a partir de suas consequências, frequentemente coloca os resultados no centro das avaliações. Contudo, essa ênfase exclusiva nos resultados pode levar a um julgamento inadequado do processo, desconsiderando as decisões racionais e os esforços realizados para enfrentar circunstâncias adversas.
O caso destaca a dificuldade de conciliar o tempo exíguo exigido por situações emergenciais com a necessidade de um planejamento minucioso. E se houve o planejamento detalhado, mas ocorreu um fato imprevisível (como a requisição administrativa) será que os gestores devem ser responsabilizados?
A requisição administrativa da produção de ventiladores pelo Ministério da Saúde, por exemplo, é um fator externo que escapou ao controle dos gestores estaduais. Embora o resultado tenha sido desfavorável, o processo revelou-se coerente com os princípios de legalidade e razoabilidade exigidos pelo contexto.
Ainda vale a reflexão sobre outra situação: é aceitável desistir de um projeto depois que ele começou quando as condições indicam que ele está fadado ao fracasso? Essa é uma questão complexa, especialmente no âmbito da administração pública, onde a desistência pode ser vista como uma forma de desperdício ou inércia administrativa. Vejamos uma situação ocorrida na Dinamarca:
Como fazer grandes coisas
Por Bent Flyvbjerg e Dan Gardner
Editora Citadel
A Dinamarca é uma península com ilhas espalhadas ao longo de sua costa leste. Os dinamarqueses, portanto, há muito tempo se tornaram especialistas em operar balsas e construir pontes. Logo, não foi nenhuma surpresa, no final da década de 1980, quando o governo anunciou o projeto do Grande Cinturão. Compreendia duas pontes, uma das quais seria a ponte suspensa mais longa do mundo, para conectar duas das maiores ilhas, incluindo Copenhague. Haveria também um túnel submarino para trens – o segundo mais longo da Europa –, que seria construído por um empreiteiro dinamarquês. Isso era interessante porque os dinamarqueses tinham pouca experiência com túneis. Assisti ao anúncio no noticiário com meu pai, que trabalhava na construção de pontes e túneis. “Má ideia”, ele resmungou. “Se eu precisasse cavar um buraco tão grande, contrataria alguém que já tivesse feito isso antes.”
As coisas já começaram mal. Primeiro, houve um atraso de um ano na entrega de quatro máquinas gigantes de perfuração de túneis. Depois, assim que as máquinas tocaram o chão, mostraram-se ineficientes e precisaram ser redesenhadas, atrasando o trabalho por mais cinco meses. Finalmente, as grandes máquinas começaram, aos poucos, a abrir caminho sob o assoalho do oceano.
Na superfície, os construtores de pontes levaram uma enorme draga oceânica para preparar o local de trabalho. Para realizar sua tarefa, a draga se estabilizou abaixando imensas pernas de apoio no fundo do mar. Quando o trabalho ficou pronto, as pernas foram levantadas, deixando buracos profundos no local. Acontece que um dos buracos estava no caminho projetado para o túnel. Nem os construtores de pontes nem os escavadores viram o perigo.
Um dia, após algumas semanas perfurando o solo, uma das quatro máquinas foi parada para manutenção. Estava a cerca de 250 metros mar adentro e presumidamente 10 metros abaixo do fundo do mar. A água estava se infiltrando na área de manutenção em frente à máquina, e um empreiteiro não familiarizado com o tunelamento ligou uma bomba para escoá-la. Os cabos da bomba foram dispostos através de um bueiro para a máquina de perfuração. De repente, a água começou a entrar a uma velocidade que indicava a existência de uma brecha no túnel. A evacuação foi imediata – sem tempo para remover a bomba e os cabos nem fechar o bueiro.
A máquina e o túnel inteiro foram inundados, assim como um túnel paralelo e a máquina de perfuração dentro dele. Felizmente, ninguém foi ferido ou morto. Mas a água salgada no túnel era como ácido para o metal e os componentes eletrônicos. Os engenheiros do projeto me disseram na época que seria mais barato abandonar o túnel e começar de novo do que retirar as brocas, drenar o túnel e repará-lo. Mas os políticos descartaram essa hipótese, porque um túnel abandonado seria algo muito embaraçoso. Inevitavelmente, todo o projeto atrasou e custou muito acima do orçamento.
A tendência natural é optar por seguir em frente, baseado no argumento de que “já investimos demais para desistir agora”. Contudo, a decisão racional deveria considerar apenas os custos futuros e os benefícios potenciais. Persistir em um projeto sem viabilidade pode levar a desperdícios ainda maiores e comprometer outros recursos públicos que poderiam ser aplicados de maneira mais eficiente.
A economia comportamental desempenha um papel crucial na compreensão das escolhas humanas, especialmente em situações de incerteza e pressão, como no contexto da administração pública. Uma das lições mais relevantes que essa área nos oferece é o entendimento da falácia do custo afundado, que ocorre quando decisões futuras são influenciadas por custos já incorridos, em vez de se basearem nas reais perspectivas de retorno ou eficácia.
Essa falácia explica por que muitas vezes é tão difícil abandonar um projeto que já consumiu recursos consideráveis, mesmo quando as condições indicam que continuar não é a melhor opção. Um exemplo claro pode ser ilustrado pela construção de uma escola. Imagine que um município iniciou a obra e, após construir a fundação, descobre que os custos restantes para finalizar a estrutura são significativamente maiores do que o previsto devido à alta nos preços de materiais e problemas técnicos não antecipados. O que fazer? Continuar e arcar com os custos adicionais, ou abandonar o projeto e buscar alternativas mais viáveis? Essa reflexão nos leva à questão da responsabilização. Quando é cabível responsabilizar gestores por decisões tomadas diante de custos afundados?
O exemplo do túnel na Dinamarca, mencionado no texto acima, é um caso emblemático. Apesar de evidências técnicas indicando que seria mais barato abandonar a obra, a pressão política impediu essa decisão, levando a custos exorbitantes e atrasos. Esse tipo de situação demonstra como a falácia do custo afundado pode ser agravada por dinâmicas políticas e emocionais, desviando o foco do que realmente importa: maximizar o valor entregue à sociedade.
É preciso criar mecanismos institucionais que incentivem o abandono de projetos inviáveis sem que isso seja encarado como derrota ou inércia administrativa. Nesse sentido, a Lei nº 14.133/2021 oferece instrumentos que podem contribuir para essa mudança de cultura, como os Estudos Técnicos Preliminares (ETP), a análise de riscos e o planejamento estratégico das contratações. Esses mecanismos permitem uma avaliação criteriosa das condições de continuidade de projetos e abrem espaço para que decisões de desistência sejam fundamentadas em dados técnicos, e não em pressões externas ou na falácia do custo afundado.
A reflexão final é clara: como podemos estruturar nossas instituições para que a decisão de desistir de um projeto seja vista como um ato de responsabilidade, e não como um fracasso? Integrar plenamente os instrumentos da nova lei nesse debate é essencial, pois eles promovem maior transparência, eficiência e accountability, incentivando decisões que maximizem o valor público gerado pelas contratações.
O planejamento não é apenas uma etapa obrigatória, mas um elemento estratégico que influencia diretamente o sucesso das contratações públicas. Ao investir em um planejamento robusto, a administração pública reduz o risco de que os recursos sejam aplicados de forma inadequada, atendendo ao interesse público e contribuindo para o desenvolvimento social e econômico do país.
3. DEBATENDO
- No caso do trem de alta velocidade da Califórnia, citado, com os custos do projeto do trem de alta velocidade quadruplicados em relação ao orçamento inicial, é possível afirmar que houve falhas no planejamento ou que o contexto mudou drasticamente? Como o ETP poderia ter ajudado nesse caso?
- Ainda sobre o caso anterior, se o governo da Califórnia decide abandonar o projeto após a construção de uma parte da rota, quais seriam as implicações dessa decisão? A responsabilidade seria exclusivamente dos gestores atuais ou também dos que aprovaram o projeto inicial?
- Agora, no caso da compra dos respiradores, citado no texto, se a requisição administrativa do Ministério da Saúde inviabilizou a entrega dos respiradores contratados, os gestores estaduais ainda podem ser responsabilizados? Quais critérios devem ser analisados para decidir isso?
- A ausência de cláusulas contratuais prevendo medidas para mitigar o risco de não entrega dos respiradores poderia ser considerada falha grave no planejamento? Como isso impacta a avaliação de responsabilidade?
- Com relação aos túneis na Dinamarca, diante das evidências de que a perfuração do túnel apresentava riscos técnicos elevados, como a análise de riscos prevista na Lei nº 14.133/2021 poderia ter evitado ou mitigado os problemas relatados?
- Se os engenheiros recomendaram o abandono do túnel e os políticos optaram por continuar, quem seria responsável pelos custos adicionais e atrasos? Essa decisão deveria ser investigada sob a perspectiva de má gestão ou improbidade administrativa?
- Um município licita a construção de uma escola, mas não realiza os Estudos Técnicos Preliminares (ETP). A licitação pode ser considerada inválida? Caso afirmativo, quais são os efeitos da invalidação?
- Se a licitação for declarada inválida após a assinatura do contrato e início da execução, o que ocorre com os valores já pagos ao contratado? (veja o art. 147 da Lei 14.133).
- A ausência de um Termo de Referência detalhado resultou na entrega de bens de qualidade inferior ao esperado. A administração pode aplicar sanções ao contratado? Em quais condições? E o gestor pode ser responsabilizado?
4. APROFUNDANDO
Para saber mais, busque, além dos textos citados ao longo da aula, os seguintes livros e artigos:
CHRISPIM, Anna; SANTANA, Jair; CAMARÃO, Tatiana. Termo de Referência nas Licitações e Contratações Públicas. Belo Horizonte: Editora SGP, 2023.
COX, Carlos Henrique Harper. Planejamento Operacional das Contratações Públicas: como planejar as contratações públicas de acordo com a Lei 14.133/21. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2022.
FORTINI, Cristiana; CAMARÃO, Tatiana; OLIVEIRA, Rafael (Coord.). Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Vol. 1. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2021
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133/2021. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.
MENEZES, Flávio Amaral Garcia de. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 1. ed. São Paulo: Editora Forense, 2022.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 7. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2022.
TORRES, Ronny Charles Lopes. Licitações Públicas Comentadas. 15. ed. Salvador: Juspodivm, 2024.