1. CONHECENDO O BÁSICO
Você já se perguntou se é do tipo que assume riscos? Riscos existem para todas as decisões das nossas vidas porque simplesmente não conseguimos garantir o futuro. Casar implica o risco de o relacionamento gerar frustrações e tristezas. Tomar um empréstimo para fazer um mestrado em outro país assimila o risco de ter dificuldade de conseguir honrar as parcelas de pagamento da dívida. Mudar de carreira pressupõe o risco de encontrar problemas iguais em instituições diferentes por salários equivalentes ou até piores.
Mas é possível refazer o prognóstico destes três exemplos? Claro que sim! Casar também implica o risco de o relacionamento gerar felicidade. Tomar um empréstimo também supõe o risco de viver uma experiência internacional incrível e ampliar sua empregabilidade. Mudar de carreira pressupõe o risco de maior satisfação pessoal e reconhecimento material. Então, para introduzir nossa conversa sobre risco em contratos de infraestrutura, tenho duas observações para refletirmos.
A primeira observação é a de que risco não é intrinsecamente bom ou ruim. Risco é um evento incerto, que, se ocorrer, pode gerar consequências boas ou ruins. O rol de possibilidades é surpreendente! Risco de obtenção de financiamento, risco de variação de demanda, risco de alteração legislativa… com o tempo, você vai notar que a boa estratégia não está em assumir ou não assumir riscos, mas em estudá-lo profundamente para fazer o melhor prognóstico e precificação possíveis e, só depois, tomar sua decisão. Ou seja, se você o conhece bem, assumir risco pode ser um bom negócio! Você vai perceber também que pode ser vantajoso desenhar mecanismos que te protejam das possíveis consequências negativas decorrentes da materialização de um risco, caso seu melhor prognóstico falhe.
E o que risco (evento incerto que pode gerar consequências positivas ou negativas para a parte que o assume) tem a ver com os contratos de infraestrutura? Tudo. Os contratos regulam qual parte vai assumir as consequências (positivas e negativas) da ocorrência dos muitos riscos existentes numa relação de longo prazo. Fazem isto numa cláusula, hoje trivialmente denominada cláusula de alocação de riscos, mas nem sempre foi assim. É que a nossa lei de concessões, lei 8.987, de 1995, afirma que o contratado prestará o serviço por sua conta e risco, o que foi por um tempo interpretado como atribuição exclusiva ao parceiro privado de todos os riscos do projeto. Além da literalidade que fundamentava esta interpretação, contou muito o contexto de um estado contratante que desejava se desvencilhar de qualquer risco justamente pela incompreensão de que assumir risco nem sempre é ruim. É também uma boa hipótese o fato de parte das primeiras experiências de concessões brasileiras terem tido como objeto ativos altamente atrativos, que davam conta de suportar uma transferência genérica e global de riscos ao concessionário.
Aos poucos, fomos observando que, ao contrário, atribuir todos os riscos à iniciativa privada significa fazer o projeto, e, portanto, a sociedade, pagar desnecessariamente por riscos que o poder público poderia assumir sem ou com baixo ônus. A chave dessa percepção está no comportamento da iniciativa privada ante a lista de riscos que estarão sob sua responsabilidade: o licitante tende a precificar estes riscos, o que impactará sua proposta econômica, fazendo o Governo receber uma outorga menor, por exemplo. Ocorre que muitas vezes o poder público tem melhores condições de evitar a ocorrência de certos riscos ou conduzir a mitigação de suas consequências. Ou seja, o Governo vai pagar antecipadamente (recebimento de outorga menor) por risco que pode não ocorrer ou cujas consequências poderia evitar ou mitigar. Isto é, se a iniciativa privada não tiver estes riscos sob sua responsabilidade, é provável que sua proposta seja mais competitiva, ganhando o poder público (a sociedade) com outorgas melhores, além de licitantes mais criteriosos nas suas decisões de investimento. Anote aí: licitante que assume qualquer risco tem tudo para não ser um bom parceiro contratual.
A segunda observação é que o mundo jurídico percebeu que era necessário discutir a eficiência na distribuição dos riscos. Um vocabulário meio de economia meio de gestão pública passou a circular e ecoou na lei de parcerias público-privadas, de 2004: contratos devem repartir os riscos entres as partes de forma eficiente. À época, a literatura jurídica que destrinchou o como fazer esta repartição eficiente era exceção, mas se fez ouvir. Hoje, os critérios iniciais de repartição de riscos viraram um mantra. Aloca-se o risco (i) à parte com melhor condição de evitar sua ocorrência; (ii) à parte com melhor condição de gerenciar os efeitos de sua ocorrência e (iii) à parte com menor incentivo de terceirizar os custos de sua ocorrência.
As matrizes de risco são atualmente identificadas como a bússola do contrato. É do respeito às matrizes de riscos que depreendemos o conteúdo do equilíbrio do contrato: o contrato está equilibrado se a parte que assumiu o risco é a mesma a sofrer o ônus ou se beneficiar do bônus da sua materialização. E evoluímos muito na customização dos riscos às características de cada ativo e às finalidades de cada projeto. A “matriz padrão”, que tanto auxiliou os responsáveis pelos primeiros programas de parcerias, persiste apenas em guidelines de divulgação. A experiência brasileira avança em discussões detalhistas e multidisciplinares sobre não apenas a quem alocar o risco, mas também em como facilitar o seu amplo conhecimento, como delimitar as fases de sua eventual materialização, como responder rapidamente aos seus efeitos e como automatizar o pagamento líquido de sua compensação. O tema foi tão naturalizado nas administrações públicas que perpassou o mundo das concessões e parcerias público-privadas e hoje se encontra normatizado também para os vários instrumentos contratuais à disposição, por meio da lei de licitações e contratos administrativos (a lei 14.133, de 2021).
2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
A primeira leitura sugerida para esta aula é de autoria de Maurício Portugal Ribeiro, que difundiu a alocação de riscos com seu livro sobre melhores práticas em Concessões e PPPs. No texto selecionado, ele descreve quais seriam os critérios para a distribuição eficiente dos riscos. Observe os seus argumentos e reflita sobre o assunto, colocando-se no papel de quem é responsável por modelar os contratos.
Concessões e PPPs
Melhores Práticas em Licitações e Contratos
Por Maurício Portugal Ribeiro
Disponível em: RIBEIRO, Mauricio Portugal. Melhores Práticas em Licitações e Contratos. São Paulo: Editora Atlas, 2011, pg.80.
“Há basicamente quatro critérios bastante simples que devem ser seguidos na decisão sobre repartição de riscos.
Os dois primeiros critérios são os principais para garantir a maximização da eficiência do contrato. O primeiro deles é que o risco deve ser sempre alocado à parte que a um custo mais baixo pode reduzir as chances do evento indesejável se materializar ou de aumentar as chances de o evento desejável ocorrer. Esse critério leva em conta a capacidade das partes de adotar ações preventivas para evitar eventos indesejáveis ou incentivar a ocorrência dos eventos desejáveis.
Por exemplo, é comum se atribuir ao parceiro privado em contratos de concessão comum e PPP o risco de sobrecusto ou atraso na construção do empreendimento. Isso é consequência do fato de haver no mercado privado expertise para gerenciamento do risco de construção, que pode ser obtida a custos mais baixos pelo parceiro privado, que pelo Poder Concedente. Também é bastante comum em contratos de concessão comum e PPP atribuir ao parceiro privado o risco de disponibilidade do serviço, pois, em regra, a iniciativa privada tem capacidade e experiência em se organizar para prestar adequadamente os serviços nos setores de infraestrutura que já foram objeto de desestatização.
O segundo critério para alocação de riscos, considera, ao invés da capacidade de prevenção dos eventos indesejados, a capacidade de gerenciar as consequências danosas, caso o evento indesejado se realize. Por esse critério, o risco deve ser alocado à parte que pode melhor mitigar os prejuízos resultantes do evento indesejável.
(…)
Tendo mencionado os dois principais critérios para a alocação de riscos, existem dois outros temas que precisam ser levados em conta na definição da matriz de riscos contratuais.
O primeiro é a capacidade das partes do contrato de “externalizar” o custo de prevenir ou remediar os eventos indesejáveis. Por esse critério, os riscos devem ser alocados sempre sobre a parte que tem menores possibilidades de “externalizar” as consequências do evento indesejável, ou seja, repassar para terceiros o custo desses eventos. Isso porque a possibilidade de repassar facilmente o custo para um terceiro tira geralmente o incentivo da parte para prevenir e remediar adequadamente a ocorrência de eventos indesejáveis.
Considerando que a Administração Pública sempre repassa os seus custos direta ou indiretamente para os contribuintes, a utilização desse critério levaria a priorizar a transferência para o parceiro privado dos riscos”. Por outro lado, ao repassar para o parceiro privado riscos que ele não tem como controlar, ou seja, que ele não tem como prevenir ou remediar a ocorrência dos eventos indesejáveis, o parceiro privado tenderá a:
- fazer seguro e repassar o custo do prêmio para o preço cobrado da Administração Pública ou usuário; ou
- embutir no seu preço à Administração Pública o custo total de lidar com os eventos indesejáveis.
Se houver seguro disponível no mercado a preços razoáveis, o contrato de concessão comum ou PPP estará promovendo a repartição social do risco, por meio do uso do mercado securitário, pois o preço que será repassado para o usuário e o Poder Público considerará a probabilidade de ocorrência dos eventos indesejáveis e a dimensão do dado esperado, na eventualidade de sua ocorrência.Se, contudo, o parceiro privado não puder encontrar cobertura securitária no mercado, ele, para se resguardar contra o risco de evento indesejável, incluirá no seu preço o custo total de lidar com os eventos indesejáveis. Isso significa que a Administração Pública e/ou os usuários estarão a pagar pelas consequências do evento indesejado, mesmo em um cenário em que tal evento não ocorra. Por isso, no caso de não haver no mercado securitário cobertura para o risco que se pretende transferir para o parceiro privado – a despeito do parceiro privado não ter controle sobre a prevenção de sua ocorrência ou minoração das suas consequências danosas – , ou no caso dos prêmios para tais coberturas serem proibitivos (o que acontece geralmente por subdesenvolvimento do mercado de seguros, e, portanto, fala de histórico e bases estatísticas para precificar adequadamente o risco), faz sentido alocar o risco sobre a Administração Pública.”
Note que os critérios elencados pelo autor para as concessões e PPPs sobre distribuição de riscos estão inseridos num debate maior sobre qual é o papel do Estado junto à sociedade e iniciativa privada, na regulação e na economia. Não são critérios estanques, mas que procuram um arranjo de incentivos para que as partes envolvidas se engajem no propósito definido. Mais do que isto, a percepção do risco que merece tratamento flutua culturalmente, tem conotação (inclusive a negativa) contestada e se diferencia de incerteza. Trechos selecionados de artigo de Julia Black, professora da London School of Economics (LSE), vai te indicar que existe um mundo grande a ser explorado sobre compreensão e avaliação de riscos, construção de incentivos e custos-benefícios de sua alocação. Espero que te deixe curioso!
The Role of Risk in Regulatory Processes
Por Julia Black
Disponível em: BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Lodge (eds). The Oxford Handbook of Regulation (Oxford Academic, 2010, p. 5-6 (tradução livre).
“Risco, em um sentido negativo, é a possibilidade de que algo indesejável ocorra, seja como resultado de eventos naturais ou atividades humanas, ou uma combinação dos dois (ver, por exemplo, Giddens, 1990). Nessa noção aparentemente simples, existem, de fato, três questões latentes, cada uma fonte e local de contestação sociopolítica. Primeiro, o que constitui um estado de coisas ‘indesejável’ é claramente um julgamento normativo sobre o que constitui algo ‘ruim’ (Renn, 1990). Existem, além disso, diferentes graus e formas de indesejabilidade, e eles podem não ser comensuráveis. Resultados comensuráveis são, por sua natureza, relativamente simples de comparar. A maioria das pessoas consideraria uma amputação de perna mais indesejável do que um tornozelo torcido, por exemplo. Mas, quando as ‘coisas ruins’ são de natureza completamente diferente, é difícil fazer tais classificações e comparações. Seria muito mais difícil obter consenso, por exemplo, sobre a questão de qual é mais indesejável: uma amputação de perna ou falência pessoal; ou, para fornecer um exemplo mais politicamente relevante, a perda de biodiversidade ou a pobreza rural em países em desenvolvimento. No entanto, os formuladores de políticas frequentemente têm que tentar equilibrar ou compensar o incomensurável, uma tarefa contestada, pois muitas vezes a mesma política (por exemplo, agricultura intensiva) pode evitar um estado de coisas indesejável (pobreza rural), mas agravar o outro (perda de biodiversidade) e vice-versa (proteção de habitat, como a floresta amazônica, pode negar oportunidades de agricultura/exploração madeireira às comunidades rurais). Além disso, as ‘coisas ruins’ tendem a ser distribuídas de forma desigual entre e dentro das sociedades, gerando questões distributivas.
(…) O governo deve ‘enfatizar a importância da resiliência, autossuficiência, liberdade, inovação e espírito de aventura na sociedade atual’ e intervir apenas se realmente estiver na melhor posição para gerenciar o risco (BRC, 2006: 38). Os indivíduos devem ser responsáveis por gerenciar riscos ‘quando têm o conhecimento para fazer uma avaliação informada do risco, consideram o risco aceitável e consideram o custo de mitigá-lo acessível ou segurável’ (BRC, 2006: 29). A regulação deve ser direcionada àqueles que estão mais expostos ao risco, deve ser econômica e levar em conta os custos de oportunidade de gerenciar riscos (BRC, 2006: 38). As diretrizes da gestão de risco econômica, portanto, devem definir o papel apropriado do Estado.
(…) Essa distinção entre risco e incerteza é útil não apenas em finanças, mas também na formulação de políticas, mas é importante reconhecer que ela distingue três, e não duas, condições radicalmente diferentes de conhecimento. Nos termos famosos de Rumsfeld, existem os ‘conhecidos conhecidos’ (probabilidades estatísticas e impactos quantificáveis: riscos); os ‘conhecidos desconhecidos’ (sabemos sobre modificação genética ou nanotecnologia, mas não sabemos quais podem ser seus efeitos: incertezas); e os ‘desconhecidos desconhecidos’ (não estamos nem mesmo cientes de que certas coisas ou atividades podem produzir impactos adversos, como, por exemplo, o estado do conhecimento sobre os riscos dos aerossóis no início do século XX: o que poderia ser chamado de ignorância radical). Cada estado de conhecimento diferente tem implicações sobre como tentamos gerenciar riscos, em outras palavras, como buscamos reduzir os riscos a um nível considerado tolerável pela sociedade, e os limites dessas tentativas (ver, por exemplo, Klinke e Renn, 2001).”
Depois de observar a relevância de estudar riscos e consolidar as regras básicas para sua repartição, vamos conhecer como a customização dos riscos tem ocorrido, levando em consideração o risco de demanda no setor rodoviário, um setor experimentado, com histórico e aprendizagem. A delimitação deste risco vem sendo discutida pela literatura, diante das profundas mudanças identificadas no conteúdo dos contratos.
O avanço regulatório no setor rodoviário e o risco de demanda
Por Rodrigo Barata
Disponível em: TOJAL, Sebastião Botto de Barros; SOUZA, Jorge Henrique de Oliveira. Direito e infraestrutura. Rodovias e Ferrovias – 20 anos da Lei 10.233/2001. Belo Horizonte: Editora Fórum, p. 348 e 350-353.
“4. A discussão do risco de demanda fica cada mais vez inadiável
Proponho uma hipótese circunstancial para que a compreensão da concessão de serviços públicos – especialmente de rodovias – como instrumento de repasse integral de riscos ao concessionário tenha se arraigado de forma tão densa na prática brasileira, com representação em legislações e nos manuais de direito administrativo. Considerando que o Brasil é um país de dimensões continentais e com matriz de transportes eminentemente rodoviária, é natural que o fluxo de automóveis (passageiros e cargas) seja intenso em diversas ligações entre cidades e regiões. Assim, quando do início dos programas de concessões rodoviárias, notadamente na década de 1990, foram selecionados corredores de fluxo intenso e bastante conhecido para a realização das primeiras concessões rodoviárias. Sintomático, neste contexto, notar que a primeira concessão rodoviária foi a Ponte Rio-Niterói, assim como o lote 1 do Programa de Concessões Rodoviárias do Estado de São Paulo é o da Rodovia dos Bandeirantes, que representa a ligação do eixo São Paulo-Campinas.
(…)
Confirmadas ou não as hipóteses levantadas acima para justificar a prática arraigada de delegação quase automática do risco de demanda à iniciativa privada, especialmente nas concessões rodoviárias, é certo que este ponto merece nova reflexão e debate, notadamente quando pensamos em novos contratos de concessão rodoviária e na limitação das grandes e consolidadas ligações viárias. Devemos considerar que outros modais de transporte tiveram crescimento no país, como as conexões aéreas. As ligações ferroviárias ainda estão muito aquém do que o país demanda, mas também avançam, sem falar dos impactos do desenvolvimento tecnológico na redução de alguns deslocamentos antes consolidados. Todos esses fatores, entre outros, impactam e justificam que deixemos ainda de considerar que o risco de tráfego é um elemento para a gestão privada única e exclusivamente. Não se pretende com isso dizer que o risco de tráfego deva sempre ser assumido pelo Estado nas concessões rodoviárias, mas, na realidade, reforçar que há fundamento jurídico (além de técnico e econômico) para que este risco seja estudado caso a caso e alocado da maneira mais eficiente em cada projeto, de acordo com as condições do sistema objeto de concessão. Nesse contexto que se inserem, por exemplo, projetos greenfield, como a implantação de anéis viários em regiões metropolitanas ou a criação de novas rotas rodoviárias, cujo histórico de tráfego inexiste. Para esses projetos, mecanismos de compartilhamento do risco de tráfego (ou mesmo sua assunção pelo poder concedente) podem se mostrar fundamentais para viabilizar a implementação da infraestrutura ou mesmo assegurar a chamada financiabilidade do projeto.
Tanto essa reflexão é legítima que, ao buscarmos compreender o desenvolvimento de concessões rodoviárias fora do Brasil, notamos que diversos modelos foram concebidos nos mais variados países para viabilizar a adequada disponibilidade da infraestrutura rodoviária e os serviços públicos correspondentes, sempre com vistas à melhor forma de tratar os riscos contratuais percebidos -inclusive e especialmente os de demanda – para atrair o capital privado e permitir uma estrutura financeira viável ao empreendimento. Existem diversas variações desenvolvidas, mas o objetivo aqui é discutir apenas o que implica diretamente a assunção e tratamento do risco de tráfego, de modo que se destacam alguns modelos, como:
- Assunção integral do risco pela concessionária: este é o modelo tradicionalmente mais visto no Brasil, no qual não há compartilhamento do risco e a concessionária assume integralmente o risco de tráfego ao longo do prazo predeterminado da concessão. Eventualmente, os contratos trazem regras que excepcionam esta disposição, como na hipótese de implantação de infraestruturas concorrentes ou novos modais de transporte na região da concessão.
- Compartilhamento do risco de tráfego pela implementação de mecanismo de receita mínima garantida: neste modelo, o poder concedente assegura uma receita mínima à concessionária, periodicamente avaliada e, caso a arrecadação tarifária não atinja o montante mínimo, um pagamento público ou outra compensação (como aumento tarifário) se tornam devidos.
- Compartilhamento do risco de tráfego com utilização de bandas: no modelo de banda, ao invés de apenas um piso de arrecadação, é possível também adotar um teto (ou seja, o excedente se torna estatal), assim como bandas intermediárias de compartilhamento. Por exemplo, pode-se dizer que variações de 10% até 20%, para mais ou para menos, serão compartilhadas em determinada proporção pelas partes e variações superiores a 20% seriam assumidas pelo poder concedente. Os valores aqui propostos são hipotéticos e devem ser estudados caso a caso. Aqui os riscos assumidos pelo concedente, quando materializados sob a ótica negativa, desencadeariam a necessidade de pagamento público ou outra compensação, na forma apontada acima, assim como o superávit de receitas demandaria a transferência de recursos ao Estado ou alguma forma de compensação a ele, como a redução do prazo do contrato ou ajuste tarifário.
- Mitigação do risco de tráfego mediante contratação pelo valor presente da arrecadação tarifária: neste modelo, conhecido pela aplicação no Chile, estabelece-se que o contrato permanecerá vigente até que a concessionária aufira determinado montante de receita acumulada (calculada em uma mesma base financeira – por isso fala-se em valor presente das receitas), de modo que seus custos e remuneração sejam atendidos. Assim, como há garantia de um montante de receita, o risco de tráfego é minimizado, sendo apenas ponderado o tempo necessário para que o valor presente das receitas seja atingido.
- Mitigação do risco de tráfego pela realização de pagamentos públicos regulares: neste modelo o Estado realiza pagamentos periódicos à concessionária, que se somam à arrecadação tarifária direta dos usuários. No Brasil, seria necessário implementá-lo por meio de uma concessão patrocinada. A mitigação do risco de tráfego se percebe na medida em que o fluxo financeiro da concessionária não está integralmente fundado no número de usuários que pagam tarifa na rodovia, havendo um pagamento periódico para assegurar a viabilidade do projeto (comumente, este valor busca assegurar o pagamento dos investimentos realizados ou, ao menos, a expectativa de pagamento aos financiadores do projeto).
Eliminação do risco de tráfego pelo pagamento estatal pela disponibilidade da infraestrutura: nesta estrutura o Estado realiza pagamentos diretos à concessionária, em função da disponibilidade da infraestrutura pública, sem levar em consideração, a princípio, o volume de tráfego verificado. Estabelece-se um pagamento periódico, geralmente fixo e estável, para assegurar a disponibilidade e qualidade da infraestrutura e serviços prestados. Assim, o risco de tráfego é eliminado, dado que o pagamento pela infraestrutura e serviços é dimensionado por sua mera disponibilidade. É possível neste modelo que haja uma parcela variável nos pagamentos para atender aos custos variáveis da concessionária no atendimento dos usuários”.
Outro conjunto de riscos cujo tratamento tem sido bastante discutido é o de licenciamentos e passivos ambientais. É claro que há estimativas de prazos, procedimentos e conformidade com requisitos mínimos para a realização dos licenciamentos ambientais, fundamentadas inclusive em normativas específicas e na experiência dos atores envolvidos. Mas, e se o órgão ambiental demorar demais para deliberar sobre o licenciamento? Como fica a situação do concessionário se o órgão licenciador estipular obrigações pouco usuais, que eventualmente sejam necessárias, a partir do exercício do seu juízo discricionário?
Por outro lado, note que passivos ambientais são, numa linguagem pouco técnica, problemas ambientais que precisam ser resolvidos para que o projeto se torne ambientalmente adequado. É possível que o concessionário já encontre passivos ambientais no ativo logo no início da concessão, mas que também gere novos passivos ambientais durante a execução contratual, derivados da sua operação. Como saber se os passivos ambientais já existiam no início da concessão ou foram causados pela própria concessionária? É fácil passar esta régua de divisão?
Segue exemplo de cláusula que enfrenta estes riscos e reflete lições aprendidas. Mas aproveite para observar que risco é diferente de obrigação. A consequência da atribuição de uma obrigação é o dever de fazer ou não fazer. Já a consequência da atribuição de um risco é o dever de assimilar os efeitos (notadamente financeiros) positivos ou negativos de sua materialização. Isto significa, por exemplo, que a concessionária pode ter a obrigação de corrigir todos os passivos de uma concessão (realizar a adequação ambiental), mas que o poder concedente terá que pagar a conta da parcela dos passivos ambientais cujo risco foi a ele alocado. Neste caso, a concessionária terá a obrigação de reparar todos os passivos, mas terá o direito à compensação sobre a parcela dos passivos que não havia assumido como risco.
Lote Rodoviário Litoral Paulista
Disponível em: http://www.artesp.sp.gov.br/Style%20Library/extranet/novas-paginas/CustomPage.aspx?page=89.
Minuta de Contrato
“CLÁUSULA VIGÉSIMA – ALOCAÇÃO DE RISCOS DOS RISCOS DA CONCESSIONÁRIA
20.1. A CONCESSIONÁRIA assume integral responsabilidade pelos riscos inerentes à realização de investimentos, execução das obras, operação e execução dos serviços previstos no objeto deste CONTRATO, excetuados unicamente aqueles alocados de maneira diversa por disposição expressa deste CONTRATO e incluindo os principais riscos relacionados a seguir:
(…)
ii. A obtenção das aprovações das LICENÇAS AMBIENTAIS cabíveis, bem como sua manutenção, e dos prazos e custos envolvidos com os processos, nos limites estabelecidos no CONTRATO, salvo nos casos em que sejam exigidos no processo de licenciamento ambiental (i) novos investimentos em ampliações principais ou obras de arte especiais (OAEs) não previstas no EVTE ou (ii) métodos construtivos não convencionais, sendo que, para este último observar-se-á o disposto na Cláusula 22.2.7;
(…)
v. Passivos e/ou irregularidades ambientais e sociais, em qualquer das seguintes hipóteses: (i) que constem da listagem de condicionantes, passivos e programas ambientais e sociais, constante do ANEXO 2 e APÊNDICE B, ou desta listagem 40 decorram; ou (ii) caso não constem do LEVANTAMENTO COMPLEMENTAR DETALHADO, nos termos do ANEXO 15, aprovado pela ARTESP”.
Anexo 15 do Contrato
“3.2. O LEVANTAMENTO COMPLEMENTAR DETALHADO terá por objetivo exclusivo a identificação de novos passivos socioambientais não indicados no APÊNDICE B.
3.2.1. Caso sejam identificados novos PASSIVOS AMBIENTAIS deverá ser elaborado laudo técnico individual da evolução de cada ocorrência, o qual deverá ser assinado por profissional competente e com recolhimento de Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as seguintes informações:
(i) Localização do passivo socioambiental;
(ii) Caracterização geral da área, incluindo um mapeamento geológico e geotécnico e de uso e cobertura do solo em escala detalhada (1:1.000);
(iii) Descrição geral do tipo de passivo e da situação identificada por meio de levantamento in loco;
(iv) Análise temporal da área em estudo, por meio da utilização de imagens de satélite atualizadas e antigas, para fins de comparação;
(v) Resultados de investigações geotécnicas de campo e laboratoriais que venham a demonstrar a situação de estabilidade do local, segundo Normas do DER/SP, nos casos em que esse tipo de investigação é aplicável;
(vi) Apresentação das soluções para recuperação do passivo ambiental;
(vii) Croqui da situação identificada e das soluções propostas para o passivo ambiental;
(viii) Registro fotográfico da situação observada;
3.3. Os passivos socioambientais constantes do LEVANTAMENTO COMPLEMENTAR DETALHADO, elaborado conforme metodologia aprovada pelas PARTES, nos termos do item 3.1.1, ou conforme metodologia adotada pelo PODER CONCEDENTE, na forma do item 3.1.2, na forma como aprovado pela ARTESP, constituirão EVENTOS DE DESEQUILÍBRIO do CONTRATO, desde que não constem ou não decorram da lista disposta no APÊNDICE B.
3.4. O reequilíbrio econômico-financeiro com base no item 3.3, acima, será realizado nos termos do CONTRATO.
3.5. Após a implementação do reequilíbrio econômico-financeiro, a CONCESSIONÁRIA não terá nada mais a reclamar sobre os passivos socioambientais existentes no SISTEMA RODOVIÁRIO, inclusive aqueles identificados no LEVANTAMENTO COMPLEMENTAR DETALHADO, salvo vícios ocultos, nos termos do CONTRATO.
4. DO COMPARTILHAMENTO DE RISCO E SEUS EFEITOS
4.1. Os passivos socioambientais que constem do APÊNDICE B deverão ser corrigidos pela CONCESSIONÁRIA, nos termos e condições constantes do CONTRATO e ANEXOS, e não constituirão EVENTOS DE DESEQUILÍBRIO do CONTRATO.
4.2. Nos casos de incorreções ou falhas identificadas na versão aprovada pela ARTESP do LEVANTAMENTO COMPLEMENTAR DETALHADO, que atendam aos termos e às condições deste ANEXO, a CONCESSIONÁRIA será obrigada a realizar as respectivas correções após determinação da ARTESP, configurando EVENTO DE DESEQUILÍBRIO do CONTRATO”.
Agora te convido a olhar para um risco que refletia nossa compreensão intuitiva de eventos remotos e por isso nos municiava com pequeno arsenal de exemplos: risco de força maior. Note que o risco de força maior era listado de forma quase retórica nas matrizes de riscos, habitualmente atribuído ao Poder Concedente, desde que não seguráveis sob determinadas condições. Estava lá no contrato, era previsto em lei, mas não tínhamos muito o que contar sobre ele e o mundo do direito privado parecia dar um baile quanto à intimidade e relevância jurídica que com ele desenvolvia.
Acontece que este risco suscitou debates quando vivenciamos a pandemia de Covid-19, que impactou severamente muitos contratos em função do isolamento a que estivemos submetidos. Por exemplo, de um lado, tivemos a reação da Agência Nacional de Aviação Civil, que conferiu alívio financeiro imediato às concessionárias de aeroportos, conforme trecho de decisão a seguir.
Voto no Processo 00058.012651/2020-39 – ANAC
“INTERESSADO: FRAPORT BRASIL S.A – AEROPORTO DE PORTO ALEGRE., FRAPORT BRASIL S.A. AEROPORTO DE FORTALEZA, CAIF – CONCESSIONÁRIA INTERNACIONAL FLORIANÓPOLIS S.A, CONCESSIONÁRIA DO AEROPORTO DE SALVADOR S.A., CONCESSIONÁRIA DO AEROPORTO DO RIO DE JANEIRO – GALEAO, CONCESSIONÁRIA DO AEROPORTO INTERNACIONAL DE CONFINS S.A. – BH AIRPORT
RELATOR: TIAGO SOUSA PEREIRA
2. DA ANÁLISE E FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Os esforços governamentais no sentido de atenuar os impactos sociais, econômicos e de saúde pública, decorrentes da decretação da pandemia de Covid-19 pela Organização Mundial de Saúde – OMS, têm abrangência multissetorial e alcançaram o setor aéreo por meio da Medida Provisória nº 925 (MP 925), de 18 de março de 2020.
2.2. Conforme abordado no Relatório, no intuito de mitigar possíveis dificuldades financeiras de curto prazo, a MP 925 permite a postergação do pagamento, pelas concessionárias de aeroportos, das contribuições fixas e variáveis relativas a 2020, até o dia 18 de dezembro deste ano.
2.3. Na presente sessão, apresentam-se instruídos para deliberação os aditivos contratuais referentes às terceira e quarta rodadas de concessões aeroportuárias (respectivamente, aeroportos do Galeão e de Confins e aeroportos de Florianópolis, Fortaleza, Porto Alegre e Salvador).
2.4. Com relação aos aeroportos da 3ª rodada, a contribuição é constituída pelas parcelas de Contribuições Fixa, Variável e Mensal, sendo que a MP 925 não alcança a Contribuição Mensal.
2.5. Especificamente sobre as Contribuições Fixas, cabe rememorar que em 2017 foi reprogramado o fluxo de pagamento da outorga fixa da concessão do Galeão, de forma que não há previsão de parcela com vencimento em 2020. Por outro lado, a parcela anual da Contribuição Fixa relativa à concessão de Confins vencerá em 7 de maio de 2020, próximo, ocasião que deverá ser reajustada a garantia de execução contratual.
2.6. Já os contratos da 4ª rodada estabeleceram que a Contribuição Fixa Anual iniciará a partir do 6º ano da concessão, ou seja, em 2023. Logo, para estes aeroportos, a MP 925 alcança apenas a parcela da Contribuição Variável.
2.7. Cabe esclarecer que as Contribuições Variáveis – percentual da receita anual bruta – referentes ao ano de 2019 são devidas por todas as concessionárias e vencerão em 15 de maio.
2.8. Assim, a Superintendência de Regulação Econômica de Aeroportos – SRA preparou aditivos contratuais individualizados, no sentido de permitir a postergação do pagamento das contribuições variáveis vincendas em 15/05/2020 para até 18/12/2020, cujos valores serão atualizados pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA acumulado entre os meses de maio e novembro de 2020.
2.9. Todas as Concessionárias envolvidas foram consultadas e anuíram com a proposta.
2.10. Na mesma linha, a Procuradoria Federal concluiu pela inexistência de óbices, recomendando apenas que nas ementas dos Termos Aditivos conste a fundamentação na Medida Provisória nº 925/2020, e que seja citado o número do processo que instruiu o aditamento.
3. DO VOTO
3.1. Ante o exposto, VOTO FAVORAVELMENTE pela celebração de Termo Aditivo bilateral aos Contratos de Concessão nº 001/ANAC/2014-SBGL – Galeão, nº 002/ANAC/2014-SBCF – Confins, nº 001/ANAC/2017-SBPA – Porto Alegre, nº 002/ANAC/2017-SBFL – Florianópolis, nº 003/ANAC/2017-SBSV – Salvador e nº 004/ANAC/2017-SBFZ – Fortaleza, na forma proposta pela Superintendência de Regulação Econômica de Aeroportos – SRA (documentos SEI nº 4186356, 4222019, 4191517, 4190079, 4186386 e 4191686) e considerando as adequações pontuadas no item 2.10 deste Voto.
3.2. Fica a SRA incumbida da adoção das providências administrativas necessárias à formalização do referido termo.
É como voto. TIAGO SOUSA PEREIRA”.
Por outro lado, parte da literatura cogitava uma repartição dos custos decorrentes da pandemia entre público e privado, desconsiderando, portanto, o que estabeleciam as matrizes de riscos dos contratos. Contra este posicionamento, segue trecho de texto de Eduardo Jordão, publicado no JOTA. Por outro lado, parte da literatura cogitava uma repartição dos custos decorrentes da pandemia entre público e privado, desconsiderando, portanto, o que estabeleciam as matrizes de riscos dos contratos. Contra este posicionamento, segue trecho de texto de Eduardo Jordão, publicado no JOTA.
Pandemia e concessões: a criação de uma álea ‘muito’ extraordinária?
Repartição de custos entre as partes da concessão não é solução justa
Por Eduardo Jordão
Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/pandemia-e-concessoes-a-criacao-de-uma-alea-muito-extraordinaria.
“Até pouco tempo, uma pandemia como evento atinente à álea extraordinária, cujos impactos sobre contratos de concessão deveriam ser suportados pelo Poder Concedente, era o chamado “exemplo de manual”, tão didático quanto óbvio, na linha do art. 65, II, d, da Lei 8666/93. Mas foi só ele se materializar para que alguns questionassem o entendimento estabelecido, pontificando “não ser justo” o poder público arcar “sozinho” com custos tão relevantes.
A solução, digamos, engenhosa seria as partes repartirem esses custos. Acaba-se, assim, por criar novo conceito: além das áleas ordinária e extraordinária, previstas na legislação, passaria a existir a álea “muito extraordinária”, cujos riscos precisariam ser divididos entre as partes, por uma suposta questão de justiça.
Acontece que a “justiça” desta solução ad hoc é ilusória e aparente.
Primeiro porque ignora tudo que antecede a pandemia, querendo julgar com olho na foto e não no filme. Agora parece injusto que apenas o Poder Concedente arque com os custos do evento incerto? Mas a obrigação de manter o serviço sempre foi dele, por determinação constitucional. Então, não é da concessão, mas da titularidade do serviço, que decorrem os custos que o Poder Concedente terá de suportar. Além disso, se as partes não afastaram a solução da legislação, por cláusula expressa, este risco específico se manteve com o Poder Público. O particular não o precificou, nem avaliou a conveniência e viabilidade de assumi-lo ao firmar o contrato.
Segundo porque negligencia tudo que dela advirá como consequência para o futuro. A solução supostamente justa tenderia a gerar, nas licitações para futuras concessões, um dos três cenários seguintes, todos socialmente inconvenientes: i) os licitantes precificam este risco que passa a ser-lhes atribuído.
Assim, incluem em sua proposta margem para enfrentá-lo, passando para a sociedade os custos eventuais deste evento não apenas se ele se materializar, mas sempre; se o risco não se materializar, a margem incluída na proposta para enfrentar o evento acaba sendo assimilada pelo empresário como lucro adicional; ii) num segundo cenário, mais provável, os licitantes têm dificuldade de precificar o risco que lhe foi atribuído, gerando competição desigual entre licitantes que disputam não no que é essencial para a prestação de um serviço adequado, mas na capacidade que detêm para lidar com incertezas; iii) no último cenário, esta nova atribuição de risco favorece licitante aventureiro e propenso a altos riscos, que deixa de precificar o evento futuro e incerto nas suas propostas e apenas aposta na sua não ocorrência.A magnitude dos custos da pandemia tem sensibilizado alguns juristas, que supõem ser necessária solução ad hoc para a sua justa alocação entre as partes de uma Concessão. Análise mais completa – retrospectiva e prospectiva –, no entanto, mostra que a justiça, no caso, está em honrar a solução legal e contratual atribuindo os custos deste evento extraordinário ao Poder Concedente”.
Mas lembra que falei que as possibilidades de riscos são surpreendentes? Os riscos não apenas mudam com os ativos e com o setor, mas também com novos desafios que surgem para a sociedade. Neste sentido, vale refletir sobre aquele que tem sido um risco perturbador em função de sua escala e crescente frequência: o risco de desastres, refazimentos e adaptações decorrentes das mudanças climáticas. Contrato recente enfrenta a customização deste risco, diferenciando medidas preventivas, de contenção, emergenciais e restauradoras, refletindo seus respectivos procedimentos e efeitos. Importante: torna objetivo o marco que desencadeia o reconhecimento de Evento Climático Extremo, prevê possibilidades de a concessionária se desvencilhar de obrigações durante sua ocorrência e organiza quem paga a conta nas diversas frentes que lidam com sua complexidade. Se o risco é granulado, a solução de seu tratamento não pode ser uma tacada só, não pode ser genérica. Confira e reflita, com os pés no chão e de olho na planilha.
Lote Rodoviário Rota Sorocabana
Disponível em: http://www.artesp.sp.gov.br/Style%20Library/extranet/novas-paginas/CustomPage.aspx?page=128.
“Dos eventos climáticos extremos
14.4. A CONCESSIONÁRIA deverá implementar medidas de prevenção e mitigação dos impactos de EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO e realizar obras de manutenção emergencial para a restauração da fluidez do tráfego e segurança dos USUÁRIOS nos trechos afetados.
14.5. Para a prevenção de impactos de EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO, a CONCESSIONÁRIA deve apresentar RELATÓRIO DE MONITORAMENTO DE RISCOS CLIMÁTICOS em até 180 (cento e oitenta) dias da assinatura do TERMO DE TRANSFERÊNCIA INICIAL.
14.6. O RELATÓRIO DE MONITORAMENTO DE RISCOS CLIMÁTICOS deve garantir o monitoramento contínuo de todo o SISTEMA RODOVIÁRIO, identificando eventuais áreas de risco e o tipo de impacto a que estas se encontram expostas, além de propor medidas preventivas de curto, médio e longo prazo, na forma do ANEXO 6, para a redução do risco de danos ao SISTEMA RODOVIÁRIO.
14.6.1 A CONCESSIONÁRIA deve encaminhar à ARTESP, anualmente, versões atualizadas do RELATÓRIO DE MONITORAMENTO DE RISCOS CLIMÁTICOS, contendo a descrição da metodologia utilizada e a consolidação dos resultados do monitoramento do SISTEMA RODOVIÁRIO, com a indicação dos riscos identificados e as medidas preventivas propostas.
14.6.2 O RELATÓRIO DE MONITORAMENTO DE RISCOS CLIMÁTICOS será elaborado pela CONCESSIONÁRIA sem o prejuízo da execução dos demais relatórios previstos nos ANEXOS.
14.6.3 O RELATÓRIO DE MONITORAMENTO DE RISCOS CLIMÁTICOS será analisado pela ARTESP, que poderá determinar a inclusão das medidas preventivas na CONCESSÃO.
14.6.4 As medidas preventivas de curto prazo, se não previstas originalmente como responsabilidade da CONCESSIONÁRIA, serão incluídas na CONCESSÃO em processo de REVISÃO EXTRAORDINÁRIA.
14.6.5 As medidas preventivas de médio e longo prazo, se não previstas originalmente como de responsabilidade da CONCESSIONÁRIA, serão incluídas no SISDEMANDA, para avaliação na REVISÃO ORDINÁRIA subsequente, após a devida priorização técnica perante os demais investimentos demandados durante o CICLO DE REVISÃO ORDINÁRIA.
14.6.6 Em qualquer cenário, a inclusão de medidas preventivas de curto, médio e longo prazo no CONTRATO estará sujeita aos limites estabelecidos pela Cláusula 24.2.
14.7. A ocorrência de EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO no SISTEMA RODOVIÁRIO será reconhecida pela ARTESP, de forma unilateral ou mediante provocação da CONCESSIONÁRIA, em face da publicação no DOE do decreto de calamidade pública pelo PODER CONCEDENTE e da identificação de avarias no SISTEMA RODOVIÁRIO que demandem a realização de obras de manutenção emergencial para a restauração do tráfego e para a segurança dos USUÁRIOS.
14.8. Com o reconhecimento de que o SISTEMA RODOVIÁRIO se encontra sob os efeitos de EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO, a CONCESSIONÁRIA será responsável pela implementação imediata das obras previstas pelo item 5 do ANEXO 6. O PODER CONCEDENTE será responsável pelas medidas relacionadas à defesa civil.
14.8.1 Na hipótese de previsões meteorológicas ou climáticas indicarem a possibilidade de ocorrência EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO, a CONCESSIONÁRIA deverá implementar medidas exigidas para a contenção de adversidades climáticas, previstas pelo item 7 do ANEXO 5.
14.8.2 A implantação das medidas para a contenção de adversidades climáticas indicadas na Cláusula 14.8.1 acima não configura evento de desequilíbrio econômico-financeiro do CONTRATO e deverá ser executado às expensas da CONCESSIONÁRIA.
14.8.3 A CONCESSIONÁRIA deverá apresentar à ARTESP, em até 7 (sete) dias, prorrogáveis por igual período, mediante justificativa, a contar do reconhecimento do EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO, um Plano de Retomada Operacional do SISTEMA RODOVIÁRIO, em que deverá especificar o cronograma e as medidas emergenciais necessárias à restauração do tráfego e da segurança dos USUÁRIOS, bem como para que o SISTEMA RODOVIÁRIO volte a operar normalmente. Em razão dos efeitos do EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO sobre o SISTEMA RODOVIÁRIO, a ARTESP poderá, a seu critério:
14.9.1 Não aplicar penalidades pelo descumprimento de obrigações cujo adimplemento tenha se tornado inviável em razão do EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO;
14.9.2 Suspender a apuração dos INDICADORES DE DESEMPENHO cujo cumprimento tenha se tornado inviável em razão do EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO; e
14.9.3 Dispensar a aprovação dos projetos de engenharia, bem como a certificação destes últimos, para as obras necessárias à restauração do tráfego e da segurança dos USUÁRIOS em virtude do EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO.
14.9.3.1 O disposto nesta Cláusula 14.9 não será aplicado caso reste comprovado que ação ou omissão da CONCESSIONÁRIA culminaram na inviabilidade de cumprimento das obrigações contratuais e/ou restrição de tráfego no SISTEMA RODOVIÁRIO.
14.11. Os investimentos aprovados pela ARTESP que sejam realizados pela CONCESSIONÁRIA para a restauração do tráfego e garantia da segurança dos USUÁRIOS em razão dos impactos do EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO serão objeto de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, desde que: (i) não se enquadrem como medidas de contenção, nos termos da Cláusula 14.8.2; e (ii) não tenham sido previstas pelo CONTRATO como de risco da CONCESSIONÁRIA. A inclusão de investimentos necessários à restauração do tráfego e garantia dos USUÁRIOS em razão dos impactos de EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO não estará sujeita aos limites da Cláusula 24.2.
14.12. A recomposição do equilíbrio econômico-financeiro em razão de investimentos necessários para a restauração do tráfego e garantia da segurança dos USUÁRIOS em razão dos impactos do EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO será realizada em REVISÃO EXTRAORDINÁRIA ou na REVISÃO ORDINÁRIA subsequente à conclusão de sua implementação, observada a Cláusula 21.2.2.1.
14.12.1. Os valores recebidos pela CONCESSIONÁRIA a título de cobertura de seguros que abranjam o EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO ou os impactos diretos e indiretos causados por este último serão descontados pela ARTESP do valor da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, independentemente de anuência da CONCESSIONÁRIA.
14.12.2. A CONCESSIONÁRIA deverá envidar todos os esforços cabíveis para o recebimento das indenizações previstas nos seguros contratados, inclusive mediante a adoção de medidas extrajudiciais, arbitrais ou judiciais, até o esgotamento dos recursos aplicáveis, para assegurar o recebimento destes valores.
14.12.3. A CONCESSIONÁRIA deverá comprovar à ARTESP as medidas extrajudiciais, judiciais ou arbitrais adotadas para o recebimento das indenizações previstas pelos seguros contratados, sob pena de tais valores serem descontados da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do CONTRATO. 14.13. Os impactos causados pelo EVENTO CLIMÁTICO EXTREMO sobre a receita da CONCESSIONÁRIA serão considerados exclusivamente no mecanismo de compartilhamento do risco de demanda, na forma do ANEXO 22.
Cabe destacar, no entanto, que tais “normas gerais” não vinculam os demais entes da Federação, que podem aderir voluntariamente a seus comandos ou, alternativamente, elaborar legislação própria.
3. DEBATENDO
Após realizadas as leituras acima e tomado um tempo de reflexão, os estudantes estarão aptos a debater em sala, com a mediação e a orientação do professor, sobre temas relacionados aos riscos, sua distribuição entre as partes e sua distinção das obrigações e dos incentivos existentes nos contratos de longo prazo. Algumas perguntas podem ser feitas inicialmente pelo professor para verificar a compreensão da leitura e para fixação de noções básicas:
1.O que é matriz de riscos e por que ela é relevante nos contratos de infraestrutura?
2. Quais são as primeiras diretrizes de avaliação sobre como repartir riscos?
3. Quais são os dilemas de quem elabora as matrizes de riscos dos contratos públicos?
4. Por que se passou a buscar uma repartição eficiente dos riscos entre as partes de um contrato, em detrimento de atribuir exclusivamente ao parceiro privado todos os riscos?
5. Por que Rodrigo Barata cogita a existência de projetos greenfield como exemplo de circunstância na qual o risco de demanda precisa ser customizado, ao invés de simplesmente atribuído ao parceiro privado?
6. Como a abordagem negativa da teoria regulatória sobre risco de Julia Black é adaptada para as concessões e parcerias públicas?
7. Qual é a diferença entre risco e incerteza?
8. Por que o risco de passivo ambiental é diferente da obrigação de recuperar passivo ambiental?
9. Como a ANAC lidou com o enfrentamento da pandemia?
10. Por que a pandemia foi objeto de debate, considerando as matrizes de riscos dos contratos?
Em seguida, se o professor acreditar que a leitura já está bem compreendida, eis algumas perguntas que podem ajudar a fomentar o debate na turma a partir das leituras realizadas:
11. Por que os estudos de modelagem de um projeto são importantes na avaliação da matriz de riscos prevista no contrato?
12. De quem você acredita que deva ser o risco de obras, num contrato de infraestrutura? Quais critérios orientam sua resposta?
13. E se a obra estiver pela metade, o que muda na avaliação de riscos? Na hipótese de a obra estar pronta e o concessionário que vai operá-la assumir seu risco, quais considerações você faria para o licitante que lhe contratou para avaliar riscos?
14. Quais tipos de setor você acredita caber a discussão sobre pagamento por disponibilidade?
15. Você entende ser possível revisar a matriz de riscos de um contrato durante sua execução?
16. Como o desenvolvimento do setor de seguros se relaciona com o desenvolvimento das matrizes de risco?
17. “Devo, não nego, pago quando puder”. Discuta a capacidade de adimplemento dos Poderes Públicos sob a ótica do risco político.
18. Como você lidaria com o risco de inadimplência do usuário, sob o ponto de vista de serviços fundamentais, como água e esgoto e resíduos sólidos?
19. Por que um concessionário que assume todos os riscos não será potencialmente um bom parceiro privado?
20. As preocupações do poder público são as mesmas do parceiro privado na avaliação de riscos? Como você justifica sua resposta?
21. “Mas vale um risco conhecido que uma certeza superficial”. Discuta, considerando que você é um tomador de decisão.
22. Agências reguladoras assumem riscos ou apenas Poder Concedente e Concessionária?
23. O que você faria se não fosse possível precificar um risco que lhe foi alocado num contrato?
4. APROFUNDANDO
A discussão sobre compreensão, distribuição e avaliação de riscos é bastante ampla, com experiências nacionais e internacionais interessantes. É um tema que vai te acompanhar, seja você um advogado de transação, um gestor público, um acadêmico, um executivo ou um curioso sobre como planejar e gerenciar o futuro. Seguem sugestões, lembrando que o mundo é grande.
YESCOMBE, E.R. Princípios do Project Finance. São Paulo: Contracorrente, 2022, Capítulo IX – Riscos Comerciais, pp. 315.
OECD Legal Instruments. Recommendation of the Council on Principles for Public Governance of Public-Private Partnerships. 2024. Disponível em: https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/oecd-legal-0392
RIBEIRO, Maurício Portugal. O reequilíbrio econômico-financeiro e o mito do regresso ao “status quo ante”. 2020. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/mauricio-portugal-ribeiro/o-reequilibrio-economico-financeiro-e-o-mito-do-regresso-ao-statu-quo-ante.
Portugal Ribeiro Advogados e Pezco Economic and Business Development. Regras padronizadas sobre distribuição de riscos, equilíbrio econômico-financeiro e modelos regulatórios. 2020. Estudo preparado para a Abcon Sidcon. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/350620533_Regras_padronizadas_sobre_distribuicao_de_riscos_equilibrio_economico-financeiro_e_modelos_regulatorios
Minuta do Contrato de Concessão da Concorrência Pública ARTESP 1/2022 – Rodoanel Norte – Cláusula de Alocação de Risco. Disponível em: http://www.artesp.sp.gov.br/Shared%20Documents/Licita%C3%A7%C3%B5es/Republicacao_RodoanelNorte/00%20-%20CONTRATO.pdf.
Contrato de Concessão 01/2024 – Contrato de Concessão de Serviços Públicos de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário nos Municípios integrantes da URAE-1 (e constantes do Anexo I). Disponível em: https://semil.sp.gov.br/desestatizacaosabesp/wp-content/uploads/sites/24/2024/08/Contrato-de-Concessao-Assinado_assinado_dp_assinado.pdf.
IFC Advisory Services in Public-Private Partnerships – Lessons From our work In Infrastructure, health and education, 2010. Disponível em: https://ppp.worldbank.org/public-private-partnership/sites/ppp.worldbank.org/files/2022-06/IFC_SmartlessonsInPPPs.pdf
Guidance on PPP Contractual Provisions. 2019. Disponível em: https://ppp.worldbank.org/public-private-partnership/sites/ppp.worldbank.org/files/2021-03/Guidance%20on%20PPP%20Contractual%20Provisions_2019%20edition.pdf
IRWIN, Timothy C. Government Guarantees, Allocating and Valuing Risk in Privately Financed Infrastructure Projects, 2007 The International Bank for Reconstruction and Development/The World Bank. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/zh/287611468339900724/pdf/394970Gov0guar101OFFICIAL0USE0ONLY1.pdf.
CAGGIANO, Heloísa Conrado, Alocação de riscos em concessões rodoviárias federais no Brasil: análise do caso da BR 153/TO/GO. Revista de Direito Público da Economia – RDPE | Belo Horizonte, ano 15, n. 59, p. 25-59, jul./set. 2017
MARTINS, Antônio Fernando da Fonseca e BENEDITO VIANA, Felipe, Alocação de riscos em contratos de parceria público-privada: a (expressiva) distância entre teoria e prática. 2019. Revista BNDES, Rio de Janeiro, v. 27, n. 51, p. 53-100.
BOCKMAN MOREIRA, Egon. Quando as Concessões Mudam? Incompletudes e superveniências em contratos de longo prazo. Carlos Ari et al. Direito Administrativo em Ação. São Paulo: JusPodivm, 2024, pp.525-544.