Roteiro de Aula

O que é interesse público nas desapropriações?

A história de um Decreto-Lei de 1941 ainda em vigor

1. CONHECENDO O BÁSICO

Imagine-se na seguinte situação: você é morador da cidade do Rio de Janeiro, construiu sua moradia no centro da cidade e um dia é surpreendido pela pintura em sua porta das letras “PR”, que significa que você teria que sair de sua casa para dar lugar à realeza, recém-chegada em terras brasileiras. Agora imagine-se em outra: você é proprietário de uma fazenda no interior de Minas Gerais, que emprega boa parte da população de uma pequena cidade e recebe uma carta de uma empresa privada informando que sua fazenda deverá ser vendida para construção de uma ferrovia de propriedade desta empresa, cabendo a você apenas discutir o valor desta “venda forçada”.

A primeira situação reflete o evento histórico da chegada da coroa portuguesa em 1808 e o ato, popularmente conhecido como “Ponha-se a Rua”, que expropriou 10 mil casas para abrigar a corte. Já o segundo é um complexo ato de construção de uma ferrovia pelo regime de autorização, que permite que a desapropriação seja utilizada em um projeto de direito privado, nos termos da Lei nº. 14.273/2021.

Não temos mais Príncipes Regentes e nem cortes para expulsar a população de suas casas, mas entre as duas situações há o mesmo instituto de direito administrativo: a desapropriação. Foi o instituto da desapropriação que proporcionou permitiu a realização grandes obras de infraestrutura ao longo da história brasileira, mas também é o responsável pelo deslocamento de milhares de famílias e pela extinção de atividades econômicas.  

Mas o que permite que o Estado retire a propriedade de alguém? A resposta está no próprio fundamento do Estado Moderno e na construção do conceito jurídico indeterminado do “interesse público”, que parte da noção de que o Estado é o instrumento do bem comum e que suas escolhas são as mais adequadas para a sociedade. 

Essa resposta, contudo, não soluciona o tema, ainda temos que entender o que é o tal “interesse público” que justifica a desapropriação. Por que ele é mais importante do que o interesse que um particular possui de ter sua propriedade, seja para moradia ou para uma atividade econômica? Existem interesses privados mais importantes do que públicos?  

Esses questionamentos estão no dia a dia dos inúmeros gestores que tomam suas decisões nos Decretos de Utilidade Pública, ato administrativo que expressa a vontade de desapropriar um imóvel. Eles estão também no centro de diversas discussões sobre qual é o papel do Estado na sociedade, como nas remoções que foram feitas para as Olimpíadas na cidade do Rio de Janeiro e até mesmo na recente aquisição de um imóvel para construção do estádio do Clube de Regatas do Flamengo, que foi proporcionada pelo instituto da desapropriação por hasta pública. 

A doutrina tradicional do Direito Administrativo traz o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que consiste na ideia de que os interesses do indivíduo não podem se sobrepor aos interesses da sociedade como um todo, sendo estes expressados na atuação da Administração Pública. Afinal, o indivíduo é tão somente parte da coletividade, não podendo superá-la. Desta forma, caso haja um conflito entre o interesse público e o interesse privado, aquele terá preponderância sobre este.

Mas os interesses do indivíduo não podem ser levados em consideração em nenhum grau? Afinal, uma das características mais marcantes do Direito contemporâneo é justamente o discurso sobre direitos. No caso brasileiro, sobretudo a partir de 1988, direitos fundamentais vêm ganhando a posição de protagonistas nas mais diversas discussões jurídicas. Do que valem nossos direitos individuais se basta uma menção genérica do Administrador ao “primado do interesse público” para que estes sejam desconsiderados do caso concreto e o interesse estatal seja tido como supremo?

Direitos, sobretudo os individuais, são comumente compreendidos como formas de limitar a atuação do Estado. O seu direito à vida limita drasticamente as hipóteses pelas quais um agente público poderá (legalmente) interrompê-la. Não à toa, uma das definições mais conhecidas de “direitos” é a de Ronald Dworkin, que os define como trunfos que podem ser invocados pela minoria contra uma decisão tomada pela maioria, tal como o direito constitucional à liberdade de expressão impede que a maioria censure a minoria.

O discurso do primado do interesse público, portanto, esvazia o conteúdo de nossos direitos individuais e exclui suas capacidades de efetivamente limitar a atuação do Estado?

O objetivo desta aula é aprofundar esta discussão, mas sob um viés específico: o da desapropriação. Até hoje regido Decreto-lei nº 3.365, editado em 21 de junho de 1941 por Getúlio Vargas durante a ditadura do Estado Novo e sob a vigência da Constituição de 1937, a desapropriação é uma das formas mais tradicionais de intervenção do Estado no domínio econômico, que consiste em quando a Administração (União, Estados, Municípios ou o Distrito Federal) transfere para si a propriedade de um terceiro por motivos de utilidade pública, pagando indenização ao antigo proprietário.

Mais detalhes sobre o processo de desapropriação serão discutidos abaixo, mas por ora é suficiente termos em mente que este não é um processo simples, especialmente na medida em que, quando feito sobre uma propriedade privada, interfere com um dos mais conhecidos e tradicionais direitos fundamentais individuais: o direito à propriedade.

A posição tradicional da doutrina e da jurisprudência tem sido de que o mérito da decisão de desapropriação não pode ser reavaliado pelo Judiciário, eis que não deve discutir o interesse público subjacente ao ato de expropriação. A premissa é que não se pode discutir se aquele imóvel será ou não desapropriado, somente o valor da indenização ou eventuais vícios no processo administrativo. 

Será que essa premissa é aplicável em todas as hipóteses de desapropriação que hoje são admitidas no Direito Administrativo? Com a complexificação da sociedade e as mudanças das fronteiras entre público e privado, ainda é possível falar em um interesse público supremo? 

Afinal, não se discute o benefício coletivo que uma obra de uma grande usina hidrelétrica, por exemplo, traz para a população brasileira, mas nem sempre estamos diante de grandes obras e mesmo nestas há inúmeras discussões sobre como ponderar esses interesses que, muitas vezes, parecem opostos.

 Vale lembrar também que o atual regime da Constituição Federal de 1988 se preocupou em conferir ao indivíduo uma postura ativa na consolidação de direitos fundamentais. Será que a forma que a desapropriação é feita pelo Decreto-Lei nº 3.365/1941, fruto do Estado Novo, ainda é mais adequada para permitir a aquisição derivada da propriedade pelo Poder Público? Com base nessas inquietudes iremos, agora, conduzir a discussão em sala de aula.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Para entendermos as discussões desta aula, precisamos nos situar sobre o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Cabe, portanto, trazer algumas definições da doutrina tradicional sobre o seu significado:

Direito Administrativo Brasileiro

Por Hely Lopes Meirelles
23. ed. Malheiros Editores, 1998, p. 44

Com efeito, enquanto o Direito Privado repousa sobre a igualdade das partes na relação jurídica, o Direito Público assenta em princípio inverso, qual seja, o da supremacia do Poder Público sobre os cidadãos, dada a prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais. Dessa desigualdade originária entre a Administração e os particulares resultam inegáveis privilégios e prerrogativas para o Poder Público, privilégios e prerrogativas que não podem ser desconhecidos nem desconsiderados pelo intérprete ou aplicador das regras e princípios desse ramo do Direito. Sempre que entrarem em conflito o direito do indivíduo e o interesse da comunidade, há de prevalecer este, uma vez que o objetivo primacial da Administração é o bem comum. As leis administrativas visam, geralmente, a assegurar essa supremacia do Poder Público sobre os indivíduos, enquanto necessária à consecução dos fins da Administração. Ao aplicador da lei compete interpretá-la de modo a estabelecer o equilíbrio entre os privilégios estatais e os direitos individuais, sem perder de vista aquela supremacia.

Curso de Direito Administrativo

Por Celso Antônio Bandeira de Mello
32. ed. Malheiros Editores, 2015, p. 99-101

O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. […]. Afinal, o princípio em causa é um pressuposto lógico do convívio social. Para o Direito Administrativo interessam apenas os aspectos de sua expressão na esfera administrativa. Para não deixar sem referência constitucional algumas aplicações concretas especificamente dispostas na Lei Maior e pertinentes ao Direito Administrativo, basta referir os institutos da desapropriação e da requisição (art. 5º, XXIV e XXV), nos quais é evidente a supremacia do interesse público sobre o interesse privado.

Como expressão desta supremacia, a Administração, por representar o interesse público, tem a possibilidade, nos termos da lei, de constituir terceiros em obrigações mediante atos unilaterais. Tais atos são imperativos como quaisquer atos do Estado. […]

Segue-se que tais poderes são instrumentais: servientes do dever de bem cumprir a finalidade a que estão indissoluvelmente atrelados. Logo, aquele que desempenha função tem, na realidade, deveres-poderes. Não “poderes”, simplesmente. Nem mesmo satisfaz configurá-los como “poderes-deveres”, nomenclatura divulgada a partir de Santi Romano.

[…]Ora, a Administração Pública está, por lei, adstrita ao cumprimento de certas finalidades, sendo-lhe obrigatório objetivá-las para colimar interesse de outrem: o da coletividade. É em nome do interesse público – o do corpo social – que tem de agir, fazendo-o na conformidade da intentio legis. Portanto, exerce “função”, instituto – como visto – que se traduz na ideia de indeclinável atrelamento a um fim preestabelecido e que deve ser atendido para o benefício de um terceiro. É situação oposta à da autonomia da vontade, típica do Direito Privado. De regra, neste último alguém busca, em proveito próprio, os interesses que lhe apetecem, fazendo-o, pois, com plena liberdade, contanto que não viole alguma lei.

Todavia, temos que analisar criticamente estes textos também a partir do contexto em que foram escritos. Considerações doutrinárias tradicionais acerca da supremacia do interesse público em geral foram originalmente escritas não só antes da vigência da Constituição de 1988, mas também ainda durante a ditadura militar, marcada justamente pela falta de limitação dos poderes do Estado.

Será que a supremacia do interesse público sobre o privado envelheceu como vinho ou como leite?

Vejamos o que parte da doutrina administrativista contemporânea tem a dizer sobre a questão:

Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo

Por Gustavo Binenbojm
Revista de Direito Administrativo, 239, 1–32, p. 19-20

A grande inovação das Constituições da modernidade consiste em que, permeadas pelos ideais humanistas, posicionam o homem no epicentro do ordenamento jurídico, verdadeiro fim em si mesmo, a partir do qual se irradia um farto elenco de direitos fundamentais. Tais direitos têm assento, sobretudo, nas idéias de dignidade da pessoa humana e de Estado Democrático de Direito, servindo, concomitantemente, à legitimação e à limitação do poder estatal. […]

Depreende-se, assim, que as dimensões individual e coletiva convivem, lado a lado, no texto constitucional, impondo-se como paradigmas normativos a vincular a atuação do intérprete da Constituição. A despeito da dificuldade em torno da caracterização do que seja interesse público, conceito jurídico indeterminado por excelência, pode-se afirmar que a expressão aponta, em sentido lato, para os fundamentos, fins e limites a que se subordinam os atos e medidas do Poder Público.

Nesse contexto, os valores encampados constitucionalmente, tidos como paradigmas da ordem jurídica, representam interesses públicos, ou seja, diretrizes efetivamente vinculantes para a máquina estatal. Ato contínuo, partindo da premissa de que interesses privados e coletivos coexistem como objeto de tutela constitucional, conclui-se que a expressão interesse público consiste em uma referência de natureza genérica, a qual abarca a ambos, interesses privados e coletivos, enquanto juridicamente qualificados como metas ou diretrizes da Administração Pública. Conseguintemente, o interesse público, num caso específico, pode residir na implementação de um interesse coletivo, mas também na de um interesse eminentemente individual. Este é o caso, v. g., da manipulação do aparato policial em defesa de um cidadão, situação que prestigia o valor segurança individual.O reconhecimento da centralidade do sistema de direitos fundamentais instituído pela Constituição e a estrutura maleável dos princípios constitucionais inviabiliza a determinação a priori de uma regra de supremacia absoluta do coletivo sobre o individual. A fluidez conceitual inerente à noção de interesse público aliada à natural dificuldade em sopesar quando o atendimento do interesse público reside na própria preservação dos direitos fundamentais, e não na sua limitação em prol de algum interesse contraposto da coletividade, impõem ao legislador à Administração Pública o dever jurídico de ponderar os interesses em jogo, buscando a sua concretização até um grau máximo de otimização.

Marçal Justen Filho sistematiza quatro diferentes objeções ao princípio da supremacia do interesse público (abreviada como SIP pelo autor). Vejamos:

Curso de Direito Administrativo

Por Marçal Justen Filho
14. ed. Forense, 2022

8.1 A primeira objeção: a ausência de conteúdo do “interesse público” 

A primeira dificuldade reside na inviabilidade de definir “interesse público”. A doutrina costuma invocar o “interesse público” sem definir a expressão nem apresentar um conceito mais preciso. Aliás, Tercio Sampaio Ferraz Junior observou que interesse público é lugar-comum, e que, justamente por isso, dispensa definição precisa, permitindo utilização mais flexível – o que deve ser entendido não como vantagem, mas como sério defeito. Afinal, a indeterminação dos critérios de validade dos atos governamentais dificulta seu controle. […]

8.2 A segunda objeção: a pluralidade de princípios jurídicos

[…] Tal como exposto, o ordenamento jurídico é composto por uma pluralidade de princípios, que refletem a multiplicidade dos valores consagrados constitucionalmente. Pela própria natureza dos princípios, é usual a colidência na sua aplicação. Isso não significa que se configure contradição no ordenamento jurídico, nem se impõe a eliminação de um dos princípios colidentes. Portanto, a SIP não afasta a existência de outros princípios, destinados inclusive a assegurar a propriedade e a liberdade privadas.

Por outro lado, não existe supremacia entre os princípios. Todos os princípios têm assento constitucional idêntico e se encontram no mesmo nível hierárquico. A determinação da solução concreta depende da ponderação dos diversos princípios, de modo a promover a mais intensa realização de todos eles – tal como melhor será examinado a propósito da proporcionalidade. […]

8.3 A terceira objeção: a ausência de um interesse público unitário

Quando se afirma que os conflitos de interesse se resolvem por via da prevalência do interesse público, produz-se uma simplificação que impede a perfeita compreensão da realidade. Assim se passa porque as normas jurídicas de direito público protegem interesses indisponíveis, todos eles merecendo a categorização de interesses públicos. Logo, há interesses públicos em situação de colisão. […]

Uma das características do Estado contemporâneo é a fragmentação dos interesses, a afirmação conjunta de posições subjetivas contrapostas e a variação dos arranjos entre diferentes grupos. Nesse contexto, a utilização do conceito de interesse público tem de fazer-se com cautela, diante da pluralidade e contraditoriedade entre os interesses dos diferentes integrantes da sociedade. 

8.4 A quarta objeção: contraposição entre direitos e interesses

Ademais, a concepção da supremacia e indisponibilidade do interesse público sobre o privado reflete um cenário jurídico que não mais existe. Para compreender a questão, é necessário examinar os conceitos de direito subjetivo e interesse jurídico.

A distinção entre direito subjetivo e interesse jurídico foi desenvolvida pela Teoria Geral do Direito Privado, encontrando-se na origem das disputas dos privatistas do século XVIII. A controvérsia envolveu especificamente as divergências entre Windscheid e Jhering. Essas divergências foram superadas em virtude do reconhecimento da supremacia do direito objetivo relativamente ao direito subjetivo. Em suma, reconheceu-se que toda posição jurídica subjetiva deriva de uma norma jurídica.

As posições jurídicas subjetivas produzidas pelo direito apresentam conteúdo e efeitos diversos. Em alguns casos, configura-se um direito subjetivo. Assim se passa quando o ordenamento jurídico atribui a um ou a mais sujeitos a possibilidade de exigir uma conduta específica (consistente num dar, fazer ou não fazer) relativamente a um ou a mais sujeitos. No âmbito do direito administrativo, pode-se lembrar o direito do servidor público de receber uma remuneração. 

Já o interesse apresenta outra configuração jurídica. O interesse consiste numa posição decorrente do relacionamento entre os sujeitos e da instauração de uma ordem jurídica, mas que não envolve a atribuição do dever de algum sujeito realizar uma prestação específica em benefício de outro sujeito determinado. O interesse traduz uma relação de conveniência e adequação que deriva reflexamente da disciplina normativa. O exemplo é a situação do cidadão que pode obter a invalidação de ato administrativo defeituoso. Ao promover ação popular, o cidadão não invoca um direito subjetivo, mas o interesse de evitar a malversação do patrimônio público. 

O ordenamento jurídico assegura proteção jurídica reforçada ao direito subjetivo. Nesses casos, a ocorrência do pressuposto fático previsto na norma jurídica acarreta o surgimento de uma posição jurídica protegida de modo intenso pelo ordenamento. A própria Constituição assegura que o “direito adquirido” não pode ser restringido, eliminado ou modificado nem sequer pela lei posterior (art. 5.º, XXXVI, da CF/1988). 

Somente em termos impróprios se poderia aludir a um conflito entre direito subjetivo e interesse público. Assim se passa porque a proteção jurídica assegurada ao direito subjetivo significa a sua tutela diante de interesses contrapostos. Portanto, a existência de um direito subjetivo reconhecido a um particular significa, de modo necessário e inafastável, a sua prevalência em face de outros interesses – inclusive públicos. Nunca se poderá defender que um interesse prevaleça, pura e simplesmente, sobre um direito subjetivo. Isso acontece porque a existência do direito subjetivo reflete a escolha da ordem jurídica por uma proteção intensa para uma determinada situação jurídica. Não é excessivo afirmar que o direito subjetivo é um interesse protegido e reforçado pela ordem jurídica. 

O debate, porém, ainda está longe de ter alcançado uma posição unânime na doutrina administrativista, vejam:

Manual de Direito Administrativo

Por José dos Santos Carvalho Filho
34. ed. Atlas, 2020, Páginas 34-36

Algumas vozes se têm levantado atualmente contra a existência do princípio em foco, argumentando-se no sentido da primazia de interesses privados com suporte em direitos fundamentais quando ocorrem determinadas situações específicas. Não lhes assiste razão, no entanto, nessa visão pretensamente modernista. Se é evidente que o sistema jurídico assegura aos particulares garantias contra o Estado em certos tipos de relação jurídica, é mais evidente ainda que, como regra, deva respeitar-se o interesse coletivo quando em confronto com o interesse particular. A existência de direitos fundamentais não exclui a densidade do princípio. Este é, na verdade, o corolário natural do regime democrático, calcado, como por todos sabido, na preponderância das maiorias. A “desconstrução” do princípio espelha uma visão distorcida e coloca em risco a própria democracia; o princípio, isto sim, suscita “reconstrução”, vale dizer, adaptação à dinâmica social, como já se afirmou com absoluto acerto.

Portanto, sob este prisma, a supremacia do interesse público não é vista como sendo excluída pela existência de direitos fundamentais, e sim como condição necessária para a efetivação destes. Pode-se dizer, por exemplo, que a assumpção da primazia do interesse coletivo é necessária para que o Poder Público realize desapropriações que serão necessárias para a construção de um hospital público que irá colaborar na efetivação do direito à saúde dos membros daquela comunidade. 

Inclusive, é justamente nas desapropriações em que o conceito de supremacia do interesse público se materializa de forma mais contundente. Mas antes de entrarmos neste debate, precisamos esclarecer: o que é a desapropriação?

A desapropriação é uma das formas mais drásticas de intervenção do Estado na propriedade privada, pois implica a perda completa do direito de propriedade em favor de um objetivo de interesse público, devidamente reconhecido em lei. Essa medida deve ser acompanhada de uma indenização justa e prévia ao proprietário. A necessidade dessa compensação é essencial para garantir a legitimidade da desapropriação, já que não é aceitável que um indivíduo suporte sozinho o ônus de uma ação estatal realizada em benefício de toda a sociedade.

O fundamento prévio para a desapropriação está no art. 5º, inciso XXIII da Constituição Federal, que estabelece que o direito de propriedade está subordinado ao cumprimento de sua função social, estando sujeito, portanto, a restrições, limitações e até mesmo sua perda, nos casos em que colide com outros direitos fundamentais disciplinados na Constituição. Por tal razão, o art. 5º, inciso XXIV, admite que a desapropriação seja realizada, em regra, mediante justa e prévia indenização em dinheiro. 

A consequência é que o Estado deve lidar não só com seus interesses primários que justificam a desapropriação, mas também garantias fundamentais que orientam o uso de seu patrimônio em prol do bem-estar coletivo. Esses princípios devem ser considerados na aplicação das normas de desapropriação, como o Decreto-Lei nº 3.365/1941, interpretando-os de maneira alinhada ao sistema de garantias previsto pela Constituição de 1988. 

Pode-se questionar, contudo, se esse parâmetros estão refletidos no processo administrativo de desapropriação disciplinado no Decreto-Lei nº 3.365/1941. Tal processo é composto por duas etapas, que se inicia com a fase declaratória, tem como objetivo oficializar e tornar públicos os motivos e as finalidades que justificam a desapropriação de um bem. Tal fase é de competência exclusiva dos entes ou entidades legalmente autorizados a desapropriar, e sua condução deve ser feita com cautela, pois a simples declaração já afeta os direitos do proprietário.

Após a conclusão da fase declaratória, o ente ou entidade responsável pela desapropriação inicia as medidas concretas para sua efetivação. Esse processo começa no âmbito administrativo, mas pode evoluir para a esfera judicial caso não seja possível chegar a um acordo amigável com o proprietário. A etapa executória deve respeitar os motivos e finalidades definidos na fase declaratória, que servem como referência para eventual análise judicial de todo o procedimento de desapropriação.

Uma das principais consequências da interpretação que o interesse público é superior ao dos particulares nas desapropriações é o entendimento de que não se deve rever o mérito do ato expropriatório, isto é, a impossibilidade de que se questione se o imóvel deve ou não ser desapropriado. Tal interpretação se funda no art. 20 do Decreto-Lei nº. 3.365/1941, que dispõe que “a contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta”.

Sobre o tema, vejam as lições de Egon Bockmann Moreira e Bernardo Strobel Guimarães:

A desapropriação no Estado Democrático de Direito

Por Egon Bockmann Moreira e Bernardo Strobel Guimarães
In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.).
Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

[…]

O primeiro tema diz respeito à recepção do Decreto-Lei nº 3.365/1941 pela Constituição de 1988 (e aquelas que a antecederam, desde a de 1946). Como se sabe, em 1941 o Brasil vivia sob um regime de golpe de Estado, apenas formalmente constitucional. O Presidente da República havia outorgado a Constituição de 1937 e se autoproclamado “autoridade suprema” da Nação (art. 73 da Carta), atribuindo-se as funções Executiva e Legislativa (quando não o controle do controle jurisdicional). Não obstante o fundamento ditatorial para a sua expedição, fato é que o Decreto-Lei nº 3.365/1941 foi recepcionado pelas Ordens Constitucionais subsequentes, em razão da necessária estabilidade normativa e eficácia construtiva das normas constitucionais.21 A nova Constituição recebe a ordem normativa infraconstitucional anterior no que com ela seja compatível: num primeiro momento, em termos formais, e depois paulatinamente mediante um exame substancial da norma recepcionada. Isto é, a recepção não significa só a incorporação às cegas de toda a legislação infraconstitucional anterior. A Constituição superveniente recebe e confere uma nova leitura à legislação ordinária pretérita (afinal de contas, confere-lhe um novo fundamento de validade que exige uma nova construção hermenêutica, incluindo incidências até então inéditas e excluindo antigas aplicações). Daí a proposta de discussão que vai a seguir, com foco preciso nos seguintes quatro temas do Decreto-Lei nº 3.365/1941: a) a validade da discussão do “mérito” na ação de desapropriação e sua submissão ao devido processo legal; b) a invalidade de desapropriações por meio de lei com efeitos concretos; c) a invalidade de desapropriações decorrentes de valorização de imóveis em decorrência de atos estatais; e d) a invalidade de desvio aleatório quanto ao destino do bem expropriado. O primeiro foco de análise recairá na norma que retira do âmbito da ação de desapropriação a possibilidade de qualquer impugnação direta em relação ao mérito da decisão que fixa determinado bem à força expropriatória do Estado, limitando a discussão aos vícios do processo judicial e à definição do quantum da indenização (art. 20 do decreto-lei). Essa norma visa dar operacionalidade ao comando contido no art. 9º do decreto-lei, que pretende vedar ao Judiciário a manifestação acerca da presença de utilidade pública. A previsão tem cheiro e cor de um preceito arbitrário, que se funda nas “razões do Estado” como fundamento para exclusão do exame jurisdicional dos atos administrativos. Usualmente, na defesa do decreto-lei aponta-se que a norma em tela visa garantir a celeridade do processo de expropriação e que tal proceder não causaria agravos ao particular, que poderia discutir em sede autônoma as demais matérias que reputasse convenientes. Com a devida venia aos que pensam em sentido diverso, a limitação das matérias arguíveis pelo expropriado na contestação constitui agravo às garantias inerentes ao instituto da desapropriação. 

O argumento de que tais restrições visam assegurar a celeridade do processo não se sustenta à luz de uma análise sistemática do instituto. Tal conclusão decorre do fato de o procedimento de desapropriação já conhecer mecanismos que garantem o acesso do Poder Público ao bem antes de definida a perda da propriedade, instituindo regras que disciplinam a imissão provisória na posse. Embora seja claro que a desapropriação reveste-se em certos casos de urgência (situação de usual criada pela própria Administração e respectiva ausência de planejamento), para essas hipóteses é assegurado ao Poder Público, desde logo, imitir-se na posse. Tal garantia basta para tutelar a “urgência” referente à desapropriação, nada justificando impor restrições ao particular no que tange à defesa que é possível de ser por ele apresentada em prol da celeridade. Ora, a única urgência que pode ser alegada pelo Poder Público é a de ter a posse do bem o quanto antes. Não há qualquer urgência em relação à discussão de se deve, ou não, impor a perda da propriedade particular em determinado caso concreto. Em sede constitucional, nada obsta que o expropriado possa exercer sua ampla defesa e submeter as suas razões a um devido processo legal. Ao contrário: tais direitos-garantias são assegurados aos cidadãos. Se a Administração atua mal (ou se pratica ato viciado, em desvio de poder), que arque com as consequências e custos de sua desídia (máxime os agentes responsáveis pelo ato materialmente viciado). Mais do que isso: nosso sistema constitucional impõe que o sacrifício da propriedade se dê com a observância de todas as garantias ao particular, o que se reflete no plano processual vedando que se trate essa grave questão de modo parcial ou abreviado. A questão analisada é eminentemente de devido processo legal, ampla defesa e contraditório (Constituição, art. 5º, incs. LIV e LV).

A apresentação de defesa íntegra pelo expropriado na ação em que se poderá produzir o resultado “perda da propriedade” é imperativo do due process of law. Nem se argumente que a possibilidade de discussão da matéria por vias outras que não a ação de desapropriação bastaria para escoimar qualquer ofensa ao devido processo legal. Quando menos, essa postura implicaria obstáculos materiais ao acesso à Justiça, impondo ao expropriado os ônus da multiplicação de demandas judiciais (e respectivos custos). Contudo, isso não é o mais grave. No caso do fracionamento da defesa, é de se admitir, em tese, que o resultado perda definitiva da propriedade possa ser alcançado antes de se analisarem os argumentos de defesa do expropriado.

Em razão da exclusão do exercício da ampla defesa no processo expropriatório, dificilmente se poderia considerar a lide ordinária como uma questão prejudicial externa à desapropriação (CPC, art. 265, IV, “a”). Exatamente aí reside o punctum saliens da questão: a Constituição de 1988 não admite a perda da propriedade antes do exercício da ampla defesa! A simples cogitação desse resultado demonstra que restrições ao direito de defesa não se coadunam com o devido processo legal.Assim, não parece haver dúvida de que a regra contida no art. 20 do decreto-lei não está materialmente conforme ao Texto Constitucional, pois permite que se imponha ao particular o sacrifício de seu direito de propriedade sem que se garanta a ele aduzir todos os argumentos necessários à defesa de seu direito fundamental.

A discussão também deve ser contextualizada com os parâmetros previstos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que em seu artigo 20 consagra o dever de que o gestor público avalie as circunstâncias concretas em suas decisões. Veja-se o tratamento legal do tema:

DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942

Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

O dever de motivar ganha ainda mais relevância quando estas se fundamentam em valores abstratos, impondo ao decisor a obrigação de explicitar as consequências previstas. Além disso, o dispositivo exige que as possíveis consequências sejam devidamente avaliadas e ponderadas. Dessa forma, ao exigir tal análise, a norma torna a aplicação de princípios passível de controle e crítica, caso a decisão não seja acompanhada de uma reflexão adequada sobre os seus impactos. 

Há, portanto, diferentes interesses juridicamente relevantes de importância prática que podem envolver um processo de desapropriação. Sob um viés social, uma desapropriação também pode gerar grandes traumas em uma comunidade. Sobre a questão, leia esta reportagem comentando sobre conflitos sociais advindos do processo conduzido para viabilizar as obras da Vila Autódromo, destinadas às Olimpíadas do Rio em 2016:

Remoções na Vila Autódromo expõem o lado B das Olimpíadas do Rio

Moradores resistem a deixar a Vila Autódromo, comunidade ao lado do Parque Olímpico Milhares de pessoas deixaram suas casas devido à organização do megaevento

El País, 05 de agosto de 2015
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/20/politica/1434753946_363539.html

“Bem-vindos” à Vila Autódromo, “a comunidade que venceu o prêmio internacional de urbanismo”. Ali, espremidos entre o Parque Olímpico —que concentrará as principais atividades das Olimpíadas de 2016— e a lagoa de Jacarepaguá, no meio do gigante canteiro de obras que se tornou a zona oeste do Rio de Janeiro, os adolescentes andam de bicicleta nas ruas de terra batida e as crianças brincam no parquinho. Não há tráfico e nem milícia. O terreno é plano, de fácil acesso. E a vida, mesmo com todas as suas dificuldades, sempre foi tranquila, feliz. Seus moradores, há décadas vivendo lado a lado, batem papo nas esquinas, nos comércios e nos botecos. Mas o assunto parece ser único: resistir a deixar o local. “Todos nós temos medo, mas não podemos nos acovardar”, discursa Maria da Penha Macena, de 50 anos, diante de duas dezenas de vizinhos que, às seis horas da tarde de um sábado, se reúnem na pequena igreja da comunidade.

Na verdade, o projeto de urbanismo premiado internacionalmente nunca foi implantado. A maioria das casas parecem ter sido bombardeadas —e nesse caso, pela própria Prefeitura do Rio. A tranquilidade é apenas aparente, parte de um passado não muito distante. Hoje, vivendo entre escombros, em um cenário de guerra, 192 famílias (cerca de 800 pessoas) prometem lutar até o final para não terem que deixar a Vila Autódromo. Esse número representa cerca de um terço das 583 famílias (cerca de 2.450 pessoas) que, segundo os moradores, viviam na comunidade até fevereiro de 2014, quando o governo municipal começou a desocupá-la —ao mesmo tempo que, cabe ressaltar, reassentava essas famílias ou pagava indenizações.

A história da Vila Autódromo simboliza todo um legado de remoções e desapropriações deixado pela organização das Olimpíadas do Rio de Janeiro. Apenas entre 2009 e 2013, 20.299 famílias (cerca de 67.000 pessoas) foram removidas — e indenizadas ou reassentadas — de suas casas pela Prefeitura devido as recentes intervenções urbanas ou ao argumento de que moram em zonas de risco, segundo os dados da Secretaria Municipal de Habitação (SMH) apresentados no livro SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico (Mórula Editorial), do arquiteto e pesquisador da UFRJ Lucas Faulhaber e da jornalista Lena Azevedo. Outras milhares —não se sabe o número exato— foram desapropriadas por decreto (quando a família possui a propriedade legal do imóvel).

Trata-se, de qualquer forma, do período histórico com o maior número absoluto de remoções na cidade, ultrapassando os governos de Carlos Lacerda (1961-1965; 30.000 remoções) e de Pereira Passos (1902-1906; 20.000 remoções), que sempre foram os principais representantes dessa política. Hoje, na metade do segundo mandato do prefeito Eduardo Paes (PMDB), a cifra de pessoas removidas ultrapassa os 70.000, mas o governo municipal não atendeu a solicitação deste jornal de confirmar o número exato —entre outras mais.

“Não vou sair da minha casa porque a Prefeitura quer. Se eu tenho o direito de ficar lá, eu vou lutar para ficar”, continua Maria da Penha seu discurso. O encontro dos moradores da Vila Autódromo na Igreja tem como objetivo reafirmar a união entre eles. Dez dias antes, no dia 3 de junho, foram reprimidos pela polícia municipal ao tentar impedir a reintegração de posse de duas casas pelo governo municipal. Nove pessoas ficaram feridas, entre elas a própria Penha, que terminou com o olho esquerdo ensanguentado. “Os guardas nos bateram, mas não nos derrubaram. A comunidade tem que estar unida”.

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Quando o Rio de Janeiro foi eleito para sediar as Olimpíadas de 2016, o fantasma da remoção apareceu novamente. O plano da Prefeitura previa demolir o antigo autódromo de Jacarepaguá para construir o Parque Olímpico, uma série de obras públicas em seu entorno e a remoção completa da Vila Autódromo. No primeiro semestre de 2013, em conjunto com uma equipe técnica da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os moradores da Vila Autódromo apresentaram o Plano Popular de Urbanização, uma alternativa ao plano do governo municipal para que a comunidade não precisasse ser removida. O projeto, cuja implantação não chegava a 14 milhões de reais, ganhou o prêmio internacional Urban Age Award, do Deutsche Bank e da London School of Economics and Political Science.

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Bienenstein conta que o projeto foi enviado para o governo municipal ainda em 2013, mas que o prefeito só decidiu negociar após as manifestações de junho do mesmo ano. “Ele fez uma autocrítica e disse que já não queria retirar a Vila. Montou um grupo com secretários da Prefeitura, os moradores da comunidade e seus assessores técnicos, no caso nós da UFF e da UFRJ. Começamos a debater e a Prefeitura apresentou uma proposta. E sobrava muito pouco da Vila, muitos teriam que sair”. Isso porque, entre as intervenções previstas, estão as vias de acesso ao Parque Olímpico, que deverão passar por dentro da favela.

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Depois que apresentaram esta última versão do plano, as negociações foram rompidas e o governo municipal passou a negociar individualmente com os moradores. Começou, a partir de então, um assédio cotidiano dos funcionários da Prefeitura, segundo relatam os moradores. “O prefeito mente. Os moradores estão sendo coagidos a aceitar a indenização”, diz uma pichação logo na entrada da vila. Bienenstein explica: “Esses funcionários dizem que a família deve sair senão vão perder tudo. Fazem pressão, dentro da comunidade e dentro das famílias”.

A maioria dos que deixaram a vila foi reassentada no Parque Carioca, um conjunto habitacional a um quilômetro de distância “com área verde, piscina, espaço gourmet, creche e espaço comercial”. Outros optaram por receber a indenização em dinheiro. O valor total das compensações é de 96 milhões de reais, muito superior, portanto, ao plano de urbanização apresentado.

As remoções na Vila Autódromo começaram em fevereiro de 2014 e, desde então, cerca de dois terços de sua população deixou a comunidade —os moradores calculam 390 famílias, enquanto que a Prefeitura fala em 590. O governo municipal ainda mantém o discurso oficial de que não tem a intenção de desapropriar a área por completo. “Os que tiveram que deixar o local ocupavam uma área ambientalmente protegida, na margem da lagoa, ou estavam na rota de vias públicas em construção. Além disso, 246 famílias não precisavam sair, mas pediram à Prefeitura para serem reassentadas mesmo assim, porque não queriam permanecer no local”, argumenta. Os moradores têm certeza que o objetivo é a remoção completa das famílias para que, finalmente, algum tipo de empreendimento imobiliário seja realizado.

Essas compensações, no entanto, são uma exceção: a maioria dos cidadãos que são obrigados a deixar suas casas nas favelas do Rio de Janeiro são reassentados em áreas distantes da cidade, onde são construídos os edifícios do programa Minha Casa, Minha Vida (Governo Federal) ou Morar Carioca (Prefeitura do Rio), e sem poder de escolha. Esses programas habitacionais são, segundo conclui o mencionado livro, um instrumento de “segregação espacial”, uma vez que “libera” as áreas mais valorizadas da cidade para a especulação imobiliária e remove a população mais humilde para as margens da área urbana, longe de suas relações sociais, familiares e de trabalho.No caso específico da Vila Autódromo, a resistência de seus vizinhos fez com que as compensações fossem mais justas. Mas para os que ainda mantêm a esperança de continuar na comunidade, a questão não é conseguir uma boa indenização, mas sim de respeitar o direito de permanecer onde desejam. “O que queremos é urbanização!”, gritava Penha e outras dezenas de vizinhos em um ato de Copacabana no último domingo. Há uma semana, entregaram na prefeitura um abaixo-assinado e tentaram marcar uma audiência com o prefeito Eduardo Paes para, mais uma vez, pedir a implantação do plano de urbanização. Ainda não receberam uma resposta. […]

Neste caso há, portanto, diferentes interesses tutelados juridicamente que foram atingidos pelo processo de desapropriação, sendo o principal deles justamente o direito fundamental à propriedade, considerado um direito negativo de primeira geração.

Será que em um cenário destes, marcado justamente pela complexidade socio-econômica do tema, é certo que o Direito forneça uma resposta simples, direta e já previamente formulada, isto é, de que o mérito da decisão de desapropriação não pode ser reavaliado pelo Judiciário em razão da supremacia do interesse público sobre o privado?

3. DEBATENDO

  1. Por que a doutrina moderna do Direito Administrativo questiona o princípio da supremacia do interesse público? 
  2. Na sua visão, o princípio da primazia do interesse público é compatível com a atual ordem constitucional? Trata-se de um instituto necessário para que o Estado faça obras públicas essenciais, um cheque em branco para que a Administração viole direitos fundamentais ou nem uma coisa e nem outra?
  3. Existem hoje fundamentos para questionar judicialmente o mérito da desapropriação? Quais?
  4. É possível que o Estado utilize o instituto da desapropriação em favor de particulares? Em que condições?
  5. É possível questionar  a constitucionalidade do art. 20 do Decreto-Lei 3.365/1941?
  6. É desejável que o Judiciário possa rever o mérito de desapropriações ou isto poderá paralisar obras públicas que dependam de desapropriações até que o questionamento judicial atinja o trânsito em julgado, potencialmente causando insegurança jurídica e morosidade?

4. APROFUNDANDO

Humberto Bergmann Ávila, Repensando o “Princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”, in O Direito Público em Tempos de Crise – Estudos em Homenagem a Ruy Ruben Ruschel, 1999, p. 99-127.

MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Bernardo Strobel. A desapropriação no Estado Democrático de Direito. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Para que Desapropriar Bens de Particulares? Regimes de Desapropriação por utilidade pública, interesse social e reforma agrária. Curso de Direito Administrativo em Ação: casos e leituras para debates. São Paulo: Editora Jus Podivnm,2024,

SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda; SOUZA, Rodrigo Pagani de. Desapropriação em favor de particular: proibição, limites e possibilidades. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 12, n. 47, p. 89-90, jan./mar. 2012.

ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. A lei geral de desapropriação em face da Constituição de 1988. In: DIAS, Maria Tereza Fonseca et al. (Coord.). Estado e propriedade: estudos em homenagem à professora Maria Coeli Simões Pires. Belo Horizonte: Fórum, 2015.