Roteiro de Aula

O que arbitragem tem a ver com direito administrativo?

A administração pública solucionando seus conflitos fora do Judiciário

1. CONHECENDO O BÁSICO

Você já ouviu falar de arbitragem? Sabe para o que ela serve? De maneira muito simples, a arbitragem é um procedimento por meio do qual um conflito é solucionado por um terceiro imparcial, que analisa os argumentos das partes conflitantes e decide quem tem razão e o modo como a divergência deverá ser resolvida.

Com essa descrição, você deve ter lembrado de como funciona uma ação judicial, não é? E você tem razão: lembra mesmo. A diferença é que a arbitragem é um procedimento que ocorre fora do Poder Judiciário. As partes nomeiam um ou mais árbitros, sempre em número ímpar, para solucionar o conflito (normalmente, são escolhidos três árbitros para trabalharem juntos em uma arbitragem). Nomeado um árbitro ou um conjunto de árbitros, dizemos que foi constituído um tribunal arbitral.

O árbitro não é um juiz integrante do Judiciário. É um conhecedor do tema em disputa e, por isso, escolhido pelas partes para resolvê-lo. O cumprimento da decisão do árbitro é obrigatório para as partes. Caso haja resistência quanto a esse cumprimento, poderá ser ajuizada uma ação judicial pedindo que o Judiciário obrigue a execução da decisão arbitral (por isso, diz-se que a sentença arbitral é um título executivo extrajudicial).

A arbitragem é um instrumento muito utilizado para resolver conflitos em relações contratuais, sejam esses contratos privados — celebrados entre particulares — ou públicos — em que a administração pública é parte.

Na prática, funciona assim: o contrato prevê uma cláusula compromissória dizendo que os conflitos decorrentes daquela relação serão submetidos à arbitragem e instituindo uma câmara arbitral, na qual o procedimento irá acontecer (no Brasil e no mundo, existem várias câmaras arbitrais). Essa mesma cláusula dirá quais temas poderão ser objeto de uma arbitragem e, se for o caso, quais temas não poderão ser questionados por essa via, devendo ser encaminhados ao Judiciário.

Ah! Uma coisa que vale deixar clara: a arbitragem é um procedimento custeado pelas partes. Árbitro, câmara arbitral e representantes legais dos envolvidos são todos remunerados — como em um processo judicial, as partes contam com advogados e advogadas para lhes representar.

Diferente de um Código de Processo Civil, ou de um Código de Processo Penal, não há um código de arbitragem. Isso quer dizer: não há regras gerais detalhadas, instituindo prazos, recursos, procedimentos para produção de provas, etc. Cada arbitragem terá suas regras próprias, instituídas pelas partes com a aprovação do tribunal arbitral. Essas regras, bem como a especificação do que será decidido pelos árbitros, estarão estabelecidas em um documento chamado ata de missão ou termo de arbitragem, que formalmente dá início ao procedimento.

Embora não tenhamos um código de arbitragem, a Lei da Arbitragem (lei 9.307, de 1996) traz diretrizes básicas que todas as arbitragens devem seguir, buscando assegurar o respeito aos direitos constitucionais da ampla-defesa e do contraditório.

A essa altura, você pode estar se perguntando: por que fazer uso da arbitragem para solucionar um conflito? Por que simplesmente não levar a causa ao Poder Judiciário? São bons questionamentos. As respostas que você irá escutar mais comumente são: é um procedimento mais rápido em comparação a uma ação judicial; e a divergência é solucionada por pessoas especializadas, que entendem mais sobre o assunto do que um juiz que tem de lidar com temas muito diferentes entre si.

Tudo o que falamos até aqui são aspectos gerais, válidos para arbitragens que envolvam ou não a administração pública. Vamos agora aos temas especificamente ligados ao direito administrativo.

No Brasil, o debate acerca da possibilidade de a administração pública utilizar arbitragem se coloca ao menos desde 1946, no que ficou conhecido como Caso Lage. O problema foi devido a União ter incorporado ao patrimônio nacional bens da Organização Lage, bem como do espólio de Henrique Lage, seu controlador, por considerá-los relevantes ao exercício da defesa nacional. Divergência sobre o valor a ser pago em razão da incorporação levou à instauração de uma arbitragem para solucionar a questão. O caso gerou grande discussão no Poder Judiciário, finalizada em 1973, quando, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de a administração participar de procedimentos arbitrais (AI 52.181/GB, Plenário, rel. Min. Bilac Pinto, julgado em 14.11.1973).

Ainda assim, por muito tempo muitos sustentaram que a administração pública não poderia aderir a arbitragens. Os argumentos utilizados por elas foram, em síntese, dois: o primeiro, mais normativo, seria a ausência de previsão legal expressa autorizando que a administração pública o fizesse; o segundo, de ordem principiológica, seria a impossibilidade de a administração pública submeter seus direitos à arbitragem em função dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público (princípios não previstos na legislação, mas que ganharam popularidade nos manuais de direito administrativo).

Quanto ao argumento da ausência de autorização legal expressa, ele foi superado. Com o passar os anos, a legislação brasileira passou a prever a possibilidade de a administração participar de arbitragens. A partir do meado da década de 1990, a legislação passou a autorizar o uso da arbitragem em contratos de concessão. E, em 2015, a Lei de Arbitragem foi modificada, passando a conter uma autorização ampla para que a administração pública direta e indireta pudesse utilizar a arbitragem para “dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis” (art. 1, § 1º). Ou seja, desde 2015, há na legislação uma autorização ampla e expressa para que a administração recorra a arbitragem para solucionar seus conflitos.

Essa modificação da Lei da Arbitragem também ajudou a superar, em parte, o argumento da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, pois a lei diz que apenas os direitos disponíveis da administração pública poderão ser objeto da arbitragem. O desafio passar a ser distinguir quais direitos são disponíveis e quais são indisponíveis — e pode apostar: isso dá bastante debate!

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Para começar, vamos ler dois artigos da redação atual da Lei da Arbitragem que abordam o uso do procedimento pela administração pública.

Lei da Arbitragem

(Lei 9.307, de 1995, com redação dada pela lei 13.129, de 2015)

Art. 1ºAs pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

§ 1o A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

§ 2o A autoridade ou o órgão competente da administração pública direta para a celebração de convenção de arbitragem é a mesma para a realização de acordos ou transações.

Art. 2ºA arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes.

§ 1ºPoderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.

§ 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.

§ 3o A arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.

A lei não deixa dúvidas quanto à possibilidade de a administração recorrer à arbitragem, concorda? Mas nem sempre foi assim. Foi bastante discutido, durante algum tempo, sobre se seria possível a administração participar de procedimentos arbitrais. A modificação feita na Lei da Arbitragem, em 2015, foi muito importante para ajudar a resolver essa discussão.

Além da alteração legal, a jurisprudência judicial recente já decidiu que, existindo a cláusula compromissória em contrato público, e versando a disputa sobre direito disponível, é o tribunal arbitral que deverá decidir o caso, não o Poder Público. Nesse sentido, vejamos, por exemplo, o julgado abaixo do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de 2017.

STJ, Conflito de Competência nº 139.519 – RJ

Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho; Relator para acórdão: Ministra Regina Helena Costa 

Suscitante: Petróleo Brasileiro S. A. – PETROBRAS

Suscitado: Tribunal Regional Federal da 2ª Região

Suscitado: Tribunal Arbitral da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI

Suscitado: Juízo Federal da 5ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro 

Interessado: Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP

EMENTA: CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL E ÓRGÃO JURISDICIONAL ESTATAL. CONHECIMENTO. ARBITRAGEM. NATUREZA JURISDICIONAL. MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITO. DEVER DO ESTADO. PRINCÍPIO DA COMPETÊNCIA-COMPETÊNCIA. PRECEDÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL EM RELAÇÃO À JURISDIÇÃO ESTATAL. CONTROLE JUDICIAL A POSTERIORI. CONVIVÊNCIA HARMÔNICA ENTRE O DIREITO PATRIMONIAL DISPONÍVEL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O INTERESSE PÚBLICO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA JULGADO PROCEDENTE. 

I – Conflito de competência entre o Tribunal Arbitral da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional e o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, suscitado pela Petróleo Brasileiro S/A – PETROBRAS. Reconhecida a natureza jurisdicional da arbitragem, compete a esta Corte Superior dirimir o conflito. 

II – Definição da competência para decidir acerca da existência, validade e eficácia da Cláusula Compromissória de Contrato de Concessão firmado para exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural, cujas condições para execução foram alteradas unilateralmente pela agência reguladora por meio da Resolução da Diretoria (RD) n. 69/2014.

III – O conflito de competência não se confunde com os pedidos e causa de pedir da ação originária, na qual se objetiva a declaração de indisponibilidade do direito objeto da arbitragem e consequente inaplicabilidade da cláusula arbitral e a declaração de nulidade do procedimento arbitral em decorrência da Resolução da Diretoria n. 69/14, alterando a área de concessão controvertida, cumulado com pedido de anulação do processo arbitral, qual Documento: 1518784 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 10/11/2017 Página 1 de 16 seja, de anti-suit injuction, destinada a evitar seu processamento junto ao Juízo Arbitral.

V – O CPC/2015 trouxe nova disciplina para o processo judicial, exortando a utilização dos meios alternativos de solução de controvérsia, razão pela qual a solução consensual configura dever do Estado, que deverá promovê-la e incentivá-la (art. 3º, §§ 1º e 2º). A parte tem direito de optar pela arbitragem, na forma da lei (art. 42).

VI – A Lei n. 13.129/15 introduziu no regime jurídico da arbitragem importantes inovações, com destaque para os princípios da competência-competência, da autonomia da vontade e da cláusula compromissória (arts. 1º, 3º e 8º, parágrafo único). 

VII – No âmbito da Administração Pública, desde a Lei n. 8.987/95, denominada Lei Geral das Concessões e Permissões de Serviços Públicos, com a redação dada pela Lei n. 11.196/05, há previsão expressa de que o contrato poderá dispor sobre o emprego de mecanismos privados para resolução de conflitos, inclusive a arbitragem. No mesmo sentido a Lei n. 9.478/97, que regula a política energética nacional, as atividades relativas à extração de petróleo e a instituição da ANP (art. 43, X) e a Lei n. 13.129/15, que acresceu os §§ 1º e 2º, ao art. 1º da Lei n. 9.307/96, quanto à utilização da arbitragem pela Administração Pública.

VIII – A jurisdição estatal decorre do monopólio do Estado de impor regras aos particulares, por meio de sua autoridade, consoante princípio da inafastabilidade do controle judicial (art. 5º, XXXV, da Constituição da República), enquanto a jurisdição arbitral emana da vontade dos contratantes.

IX – A jurisdição arbitral precede a jurisdição estatal, incumbindo àquela deliberar sobre os limites de suas atribuições, previamente a qualquer outro órgão julgador (princípio da competência-competência), bem como sobre as questões relativas à existência, à validade e à eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória (arts. 8º e 20, da Lei n. 9.307/96, com a redação dada pela Lei n. 13.129/15).

X – Convivência harmônica do direito patrimonial disponível da Administração Pública com o princípio da indisponibilidade do interesse público. A Administração Pública, ao recorrer à arbitragem para solucionar litígios que tenham por objeto direitos patrimoniais disponíveis, atende ao interesse público, preservando a boa-fé dos atos praticados pela Administração Pública, em homenagem ao princípio da segurança jurídica.

XI – A arbitragem não impossibilita o acesso à jurisdição arbitral por Estado-Membro, possibilitando sua intervenção como terceiro interessado. Previsões legal e contratual. 

XIII – Prematura abertura da instância judicial em descompasso com o disposto no art. 3º, § 2º, do CPC/2015 e os termos da Convenção Arbitral.

XIV – Conflito de competência conhecido e julgado procedente, para declarar competente o Tribunal Arbitral da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional. Agravos regimentais da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis e do Estado do Espírito Santo prejudicados.

Agora que você já tem uma ideia sobre o panorama legal e jurisprudencial, vamos conhecer uma cláusula compromissória de arbitragem. No quadro abaixo, há um exemplo extraído de um contrato de concessão rodoviária, celebrado pela União Federal, por meio da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e uma empresa privada, com algumas adaptações feitas para simplificar a sua compreensão aqui na aula.

Contrato referente ao edital ANTT nº 1/2008

Termo Aditivo nº 3/18

Disponível em: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/rodovias/concessionarias/lista-de-concessoes/via-bahia/documentos-de-gestao/contratos-e-aditivos/3o-termo-aditivo.pdf/view

33. Resolução de Controvérsias

33.1 Arbitragem

33.1.1 As Partes obrigam-se a resolver por meio de arbitragem as controvérsias e/ou disputas oriundas ou relacionadas ao Contrato e/ou a quaisquer contratos, documentos, anexos ou acordos a ele relacionados.

33.1.2 Não poderão ser objeto de arbitragem as questões relativas a direitos indisponíveis, a exemplo da natureza e titularidade públicas do serviço concedido e do poder de fiscalização sobre a exploração do serviço delegado e nem sobre o pedido de rescisão do contrato de concessão por parte da Concessionária.

33.1.3 A submissão à arbitragem, nos termos deste item, não exime o Poder Concedente nem a Concessionária da obrigação de dar integral cumprimento a este Contrato, nem permite a interrupção das atividades vinculadas à Concessão, observadas as prescrições deste Contrato.

33.1.4 A arbitragem será realizada pela Câmara Arbitral escolhida conforme os critérios a serem definidos em ato regulamentar a ser editado pelo Poder Executivo, e far-se-á segundo as regras previstas no regulamento da Câmara escolhida vigente na data em que a arbitragem for iniciada.

33.1.4.1 Na pendência de edição do referido ato regulamentar, a arbitragem será administrada pela Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, segundo as regras previstas no seu regulamento, vigente na data em que a arbitragem for iniciada.

33.1.4.2 O tribunal arbitral será composto por 3 (três) árbitros, cabendo a cada Parte indicar um árbitro. O terceiro árbitro será escolhido de comum acordo pelos árbitros indicados pelas Partes e presidirá o tribunal.

33.1.5 A arbitragem será realizada em Brasília, Distrito Federal, Brasil, utilizando-se a língua portuguesa como idioma oficial para a prática de todo e qualquer ato.

33.1.6 A lei substantiva a ser aplicável ao mérito da arbitragem será a lei brasileira, excluída a equidade.

33.1.7 As partes poderão requerer ao Poder Judiciário medidas coercitivas, cautelares ou de urgência, antes da constituição do tribunal arbitral.

33.1.7.1 Caso o regulamento da Câmara Arbitral escolhida, nos termos do item 33.1.4, admita requerimento de medidas coercitivas, cautelar ou de urgência, antes da constituição do tribunal arbitral, a ela poderão peticionar as partes.

33.1.7.2 Após a constituição do tribunal arbitral, sua competência é exclusiva para apreciação dos pedidos de medidas coercitivas, cautelar ou de urgência.

33.1.8 A Parte vencida no procedimento de arbitragem arcará com todas as custas do procedimento, incluindo os honorários dos árbitros.

33.1.9 Haverá divisão de responsabilidade das Partes pelo pagamento das custas no caso de condenação recíproca. As custas e despesas relativas ao procedimento arbitral, quando instaurado, serão antecipadas pela concessionária e, quando for o caso, serão restituídas conforme posterior deliberação final em instância arbitral.

33.1.10 Em caso de conflito entre as disposições deste contrato de concessão acerca da arbitragem e a resolução da ANTT específica sobre o tema, deve prevalecer esta última.

No geral, as cláusulas compromissórias em contratos públicos são muito semelhantes a essa, com pequenas variações. Note que, no item 33.1.6 é dito que a arbitragem será resolvida de acordo com as leis brasileiras, excluída a possibilidade de resolução por equidade. A resolução por equidade — que busca resolver o problema não com base em normas, mas em um senso de justiça dos árbitros aplicado ao caso concreto — pode ser utilizada em arbitragens entre particulares, mas a Lei da Arbitragem proibiu que fosse adotada como critério para solucionar casos envolvendo a administração pública (art. 2º, § 3º).

Veja agora um exemplo de uma ata de missão (que, lembre-se, também pode ser chamada termo de arbitragem) envolvendo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e uma empresa privada. O trecho selecionado revela como é delimitado o objeto da arbitragem e os pedidos das partes. Acessando a íntegra do documento no link indicado ao final, você também verá que nele estão apontados os árbitros do caso, o cronograma que o procedimento seguirá e outras informações necessárias para o seu desenvolvimento organizado. Foram feitas algumas simplificações do texto, para facilitar a assimilação.

Ata de Missão

Nova Petróleo S/A – Exploração e Produção (Requerente) vs. Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Requerida)

Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/composicao/procuradoria-geral-federal-1/subprocuradoria-federal-de-consultoria-juridica/equipe-nacional-de-arbitragens-enarb/9NovaPetroleovANPAtadeMisso.pdf

7. SUMÁRIO DAS PRETENSÕES DAS PARTES

7.1 Não obstante o sumário das pretensões das Partes formulado abaixo, as alegações e pedidos das Partes poderão ser melhor especificados e fundamentados nas Alegações

Iniciais das Partes.

7.2 Nenhuma das Partes, ao celebrar esta Ata de Missão, subscreve ou aceita o resumo ou os pedidos formulados pela outra parte, conforme descrição a seguir.

7.2.1 ALEGAÇÕES DA REQUERENTE

A NOVA PETRÓLEO arrematou, no Leilão denominado 11ª RODADA, realizado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – (“ANP”), 5 (cinco) blocos localizados na Bacia do Recôncavo. Após apresentação de extensa documentação, incluindo garantias bancárias para os investimentos mínimos pactuados, foram assinados, em 30 de agosto de 2013, os Contratos de Concessão para Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural dos Blocos REC-T-84, REC-T105, REC-T-106, REC-T-115 e REC-T-116 (“CONTRATOS”), somando área de 142,3 km² com Programa Exploratório Mínimo (PEM) de 9.031 Unidades de Trabalho (UT’s), equivalentes, à época da assinatura, a um valor monetário de R$ 34.431.800,00 (trinta e quatro milhões, quatrocentos e trinta e um mil e oitocentos reais).

No dia 15 de junho de 2016, a Requerente protocolou junto à ANP o Pedido Administrativo nº NPEP-ANP058/2016 (…), buscando a prorrogação dos prazos contratuais dos seus blocos REC-T-84, REC-T104, REC-T-105, REC-T-115, REC-T-116, SEAL-T-279, SEAL-T-280, SEAL-T-291 e SEAL-T-292, com fundamento em fatos supervenientes, em função da incontroversa crise histórica que assolou o setor de óleo e gás, bem como em função das crises política e econômica que se instalaram no Brasil.

Analisando o pedido administrativo da Requerente, a Diretoria da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (“ANP”), na Reunião de Diretoria nº 0855/2016, entendeu que as situações narradas não configurariam fatos supervenientes suficientes para que fosse deferido o pedido de prorrogação dos prazos contratuais, decisão essa que foi atacada pelo recurso cabível. [C]ontudo a Requerida através da Reunião de Diretoria nº 985/2016 manteve sua posição. Em face da decisão final que indeferiu a prorrogação dos prazos contratuais, a Superintendência de Exploração, vinculada a Requerida, oficiou a Requerente (…) informando que os contratos haviam sido rescindidos no dia 20 de setembro de 2016. 

Ocorre que no mesmo dia, 14 de dezembro de 2016, em que a Requerente era intimada da decisão da Resolução de Diretoria nº 985/2016, o Conselho Nacional de Política Energética (“CNPE”), órgão presidido pelo Ministro de Estado de Minas e Energia, o qual serve de assessoramento do Presidente da República para formulação de políticas e diretrizes de energia, ou seja, órgão ao qual resta vinculada a ANP, se reuniu, através da 33ª Reunião Ordinária, e em estreita sintonia com os fundamentos apresentados pela Requerente em seu pedido administrativo de prorrogação dos prazos contratuais, aprovou proposta de resolução para autorizar a ANP a prorrogar os prazos contratuais, face a ocorrência de fatos supervenientes. 

O CNPE reconheceu a ocorrência de fatos supervenientes que impediram os concessionários das 11ª e 12ª Rodadas de cumprirem seus contratos, exatamente como vinha sendo alertado pela Requerente. Foram ressaltados a situação dos baixos preços do petróleo no mercado internacional, com a consequente redução da capacidade de investimentos das empresas petroleiras atuantes no Brasil, e a possibilidade de prorrogação da Fase de Exploração, previsão contida no Edital e no Contrato.

Destaca-se que os argumentos destacados pelo Conselho Nacional de Política Energética são os mesmos argumentos amplamente sustentados pela Requerente no seu pedido administrativo, e refutados pela Requerida, posição que claramente está na contramão do posicionamento do MME, ao qual a Requerida se encontra vinculada. Ou seja, no mesmo dia em que a Requerente tomou conhecimento da decisão da Diretoria da Requerida, a qual não reconheceu os fatos narrados como caso fortuito ou força maior, indeferindo o seu pedido de prorrogação dos prazos contratuais, o Conselho Nacional de Política Energética (“CNPE”), em posicionamento completamente contrário ao da Requerida, reconheceu como caso fortuito ou força maior e, aprovou proposta para recomendar a prorrogação dos prazos contratuais da 11ª Rodada e da 12ª Rodada.

A negativa da ANP, claramente revelou-se na contramão do posicionamento do MME, tanto é que, posteriormente, esta Agência reviu sua decisão e considerou válidos os argumentos do CNPE, emitindo resolução concedendo a extensão dos contratos do BID 11 e 12. Diante de tal diretriz publicada pelo Conselho Nacional de Política Energética e aceita, posteriormente pela ANP é que a Requerente uma vez mais, diligentemente, protocolou pedido de Revisão Administrativa, em respeito a cláusula 33.2 dos Contratos de Concessão, a qual prevê que as Partes se comprometeriam a buscar resolver amigavelmente toda e qualquer controvérsia decorrente dos contratos.

No decorrer da Revisão Administrativa a própria Requerida publicou a Resolução ANP nº 708/2017 possibilitando a prorrogação dos contratos em vigência por mais 2 anos, reconhecendo a existência dos fatos supervenientes ocorridos no decorrer da vigência dos contratos da 11ª Rodada e da 12ª Rodada. Porém, na análise da Revisão Administrativa, a Diretoria da ANP, alegou que os contratos da Requerente estariam extintos e por maioria (…) decidiu indeferir o pleito da Requerente (…).

A decisão da ANP de não prorrogar os contratos da 11ª Rodada agiu em desacordo com o ordenamento jurídico. Não se pode olvidar que a atuação estatal deve primar por um tratamento isonômico a todos administrados, regra que decorre da própria Constituição Federal, insculpido em seu artigo 5º, bem como no artigo 14 da Lei 8.987/1993. Assim é imperativo que os concessionários devem ser tratados de forma igualitária, portanto, a prorrogação dos contratos permitida através da Resolução ANP nº 708/2017 deve ser estendida a todos os concessionários da 11ª Rodada e 12ª Rodada. Até mesmo porque os fatos supervenientes que justificaram a publicação de tal Resolução foram suportados por todas as concessionárias, independente dos contratos estarem ou não vigentes. (…)

PEDIDO DA REQUERENTE

Diante do exposto, ressalvando que as alegações iniciais é o momento oportuno de trazer os pedidos específicos, informa que a presente arbitragem tem por fundamento os fatos supervenientes ocorridos no decorrer da vigência dos Contratos de Concessão que acabaram por configurar excludente de responsabilidade para a Requerente. Assim a Requerente busca através da presente arbitragem: (i) a prorrogação dos seus contratos (…); ou (ii) caso não se entenda que os contratos devem ser prorrogados, que a Requerida se abstenha de aplicar quaisquer penalidades a Requerente, inclusive abster-se de executar as garantias financeiras; (iii) condenação da Requerida a ressarcir a Requerente pelos custos suportados em face do tratamento desigual que a Requerida lhe recomendou, a ser liquidado após a sentença arbitral; (iv) a condenação da Requerida nos ônus sucumbenciais incluindo honorários advocatícios nos moldes do Termo Arbitral e custas arbitrais, inclusive as já adiantadas pela Requerente. Protesta pela produção de todas as provas admitidas em direito, inclusive, mas não se limitando, a juntada de pareceres jurídicos.

7.2.2. ALEGAÇÕES DA REQUERIDA 

(…)

O pleito da Requerente descrito no requerimento de arbitragem não possui base jurídica para acolhimento, por três motivos distintos. 

Primeiro, tanto a análise técnica quanto a análise jurídica foram em sentido contrário à prorrogação. (…) Sob o aspecto jurídico, a Procuradoria Federal considerou que na ‘atividade de exploração e produção de petróleo e gás natural, executada por 27 empresas petrolíferas por sua conta e risco, com base em contrato de natureza aleatória, a acentuada desvalorização do Real frente ao Dólar e a vertiginosa queda do valor do Brent não justificam a suspensão nem a isenção das obrigações contratuais, caracterizando situação da álea ordinária da atividade, ou seja, a riscos normais a serem suportados pelo Concessionário, quando do cumprimento de programa exploratório mínimo’; ou seja, não considerou hipótese de aplicação da Teoria da Imprevisão. (…) Sob o aspecto jurídico, o não provimento do recurso foi motivado pelo entendimento da Procuradoria Federal junto à ANP de que ‘Apesar de haver previsão contratual no sentido de que o concessionário pode vir a ser exonerado de obrigação prevista em contrato quando caracterizada situação de caso fortuito ou força maior, não está, o caso concreto, inserido nesse contexto’. 

O segundo motivo pelo qual a pretensão não tem como prosperar é que a regulação que tratou da prorrogação dos Contratos de Concessão celebrados quando da 11º Rodada de Licitações permitiu a celebração de aditivos para prorrogar por dois anos os Contratos de Concessão que estivessem em vigor. Os Contratos de Concessão celebrados pela Requerente quando da 11ª Rodada de Licitações não se encontravam nessa situação quando sobreveio a regulação. (…) As condições a serem atendidas pelos Concessionários para possibilitar a prorrogação dos contratos foram estabelecidas pela ANP, no exercício do seu poder regulatório. Dentre as condições, a ANP estabeleceu expressamente no art. 1º Resolução ANP nº 708/2016 a necessidade de que os contratos estivessem vigentes. Considerando que os Contratos de Concessão mencionados no requerimento de arbitragem já se encontravam extintos, quando da edição da resolução, não foi possível celebrar os aditivos para prorrogação do prazo contratual. 

Terceiro, não se pode reconhecer violação ao princípio da isonomia. Com efeito, a ANP elaborou uma regra impessoal (Resolução ANP Nº 708/2016), previamente submetida a consulta e audiência públicas, que se limitou a dar tratamento diferenciado a situações distintas (contratos em vigor e contratos já extintos). Em respeito ao princípio da isonomia, a ANP permitiu, por óbvio, a aditivação para prorrogação dos contratos vigentes. Cabe observar, por outro lado, que a aplicação da resolução aos Contratos celebrados pela Requerente – para permitir a aditivação de contratos já extintos – é que levaria à violação da isonomia, já que todos aqueles Concessionários cujos contratos encontravam-se extintos quando da publicação da resolução não tiveram a possibilidade de prorrogá-los.

Destarte, a decisão administrativa de indeferimento do pleito de prorrogação dos Contratos de Concessão é legal, tem fundamento nas cláusulas 4.4, 5.17 e 29.9, “b” do Contrato de Concessão da 11ª Rodada, e art. 28, inciso I da Lei nº 9.478/97, e deve ser mantida. Nesse contexto, a ANP demonstrará a total improcedência dos pedidos que vierem a ser formulados pela Requerente, bem como sua condenação nos consectários legais da sucumbência, inclusive honorários advocatícios e ressarcimento de eventuais custos que venha a ter com a presente arbitragem. Para isso, fará uso de todos os meios de prova admitidos pela legislação. A ANP requer ainda a condenação da Requerente a suportar definitivamente todas as custas do processo e aos honorários advocatícios, nos termos do Compromisso Arbitral. 

Além disso, a ANP ressalva o direito de apresentar eventuais preliminares ou objeções a depender da forma pela qual os pedidos venham a ser detalhados nas Alegações Iniciais. No Requerimento, a Nova Petróleo estima o valor de suas pretensões em R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), sem prejuízo dos valores que vierem a ser apurados ao longo do procedimento arbitral. Também esclarece que as despesas necessárias para instauração, condução e desenvolvimento da arbitragem serão por ela adiantadas. A ANP, na Resposta, afirma não possuir pedido reconvencional, esclarecendo, ainda, que o Requerimento não descreve detalhadamente o valor dos ativos, custos e/ou indenizações requeridas, ficando inviabilizada eventual impugnação.

Reserva-se, por isso, à oportunidade de manifestar-se sobre o tema em momento oportuno, assim que o objeto do litígio e sua expressão econômica sejam detalhados pela Nova Petróleo. Nos termos do Regulamento e a qualquer momento no curso do litígio, o Tribunal poderá, mediante provocação ou de ofício, determinar a alteração do valor atribuído à causa.

Você achou fácil a leitura? Caso tenha sido difícil, não se preocupe: depois de um tempo, você pegará o jeito e conseguirá se virar com facilidade quando estiver com uma ata de missão em mãos. Em um primeiro contato, podem parecer intimidadoras, mas você perceberá que elas são essenciais para organizar o procedimento e deixar claro aos árbitros e às partes os direitos que estão sendo debatidos e sobre o que o tribunal arbitral deverá decidir.

Você deve ter percebido que, no caso, estava em jogo se uma concessionária teria direito ou não à prorrogação do prazo de seus contratos de concessão, como forma de compensar um desequilíbrio econômico-financeiro que teria impactado no valor dos contratos. Esse é um bom exemplo para entrarmos naquele tema sobre quais direitos podem ser levados à arbitragem pela administração pública. Para você, o equilíbrio econômico-financeiro de um contrato de concessão pode ser compreendido como direito disponível e, portanto, arbitrável?

Vamos ver o que já se andou dizendo sobre a questão.

O cabimento da arbitragem nos contratos administrativos

Por Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara
In: Contratações Públicas e seu Controle. Carlos Ari Sundfeld (org.).
São Paulo: Malheiros, 2013, p. 262 – 263.

(…) Outro argumento levantado para impugnar a arbitragem envolve especificamente seu emprego em matéria afeta à prestação de serviço público. Sempre que o contrato envolvesse tal objeto, a avença não poderia se submeter ao procedimento arbitral. O argumento recai sobre o já debatido princípio da indisponibilidade do interesse público. A arbitragem, reservada a direitos disponíveis, não seria aplicável a um contrato que versasse sobre serviço público.

Como se sabe, a titularidade do serviço público é irrenunciável. Este aspecto de seu regime jurídico está, realmente, fora do plexo de direitos negociáveis do Estado. Isso, porém, não significa dizer que tudo o mais que seja relacionado à prestação de serviços públicos não possa vir a ser objeto de contratação e, consequentemente, de compromisso arbitral. Ninguém discute que a prestação de serviços públicos pode ser objeto de delegação a particulares, o que se faz mediante contratação. Logo, os direitos oriundos da exploração do referido serviço por terceiros são, indiscutivelmente, passíveis de negociação. Preços, condições de pagamento, cronograma de investimento, financiamentos, enfim, tudo o que estiver relacionado à exploração econômica do serviço pode ser objeto de contratação e, nesta condição, ter seus conflitos dirimidos por arbitragem, se as partes assim pactuarem.

As condições de exploração são objeto de negociação desde um primeiro momento, quando o poder concedente delega o serviço do qual é titular para ser explorado por terceiros. As condições econômicas de prestação do serviço são determinadas contratualmente entre o Poder Concedente e as empresas. Depois, no relacionamento de tais empresas com outros agentes do mercado, mais uma vez, o que se tem é a livre disposição sobre condições econômicas. Nesses casos não há qualquer tratativa sobre questões de império, ou seja, sobre temas insuscetíveis de negociação. As partes envolvidas definem, fazendo uso de seu respectivo poder de autotutela, quais as condições econômicas do relacionamento.

A duração do contrato, a remuneração do contratado e as condições de pagamento, multas pecuniárias e, se assim dispuserem, a sujeição do contrato à arbitragem, são exemplos de temas que, embora digam respeito à prestação de um serviço público, podem ser perfeitamente objeto de negociação entre as partes envolvidas.

Conseguir estabelecer quais direitos são disponíveis para discutir em uma arbitragem e quais não são é um dos temas que ocupa a mente daqueles que trabalham com direito administrativo nos últimos tempos. Outros são, por exemplo: como escolher árbitros e câmaras arbitrais? É preciso fazer algum tipo de procedimento de seleção? É necessário licitar? E se houver condenação para a administração pagar algum valor, deverá ser adotado o sistema de precatórios? Se não for necessário, isso seria uma burla ao sistema de precatórios?

Note que a discussão passou de “é possível a administração pública participar de arbitragens?” para “como compatibilizar a participação da administração em arbitragens com exigências legais e constitucionais vinculadas ao direito público?”. Sobre o tema do regime de precatórios, por exemplo, o texto abaixo conta como tem ocorrido na prática.

Arbitragem contra a Fazenda Pública e precatórios: As recentes decisões do TJ/SP, STJ e STF

Por Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira e Marcelo Bonizzi
Portal Migalhas, 9/08/2022; Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/observatorio-da-arbitragem/371239/arbitragem-contra-a-fazenda-publica-e-precatorios

A sentença arbitral constitui título executivo judicial, passível de cumprimento de sentença no Judiciário1 (artigo 515, VII do Código de Processo Civil de 20152 e art. 31, da Lei da Arbitragem), também sujeito a impugnação ao cumprimento de sentença, nos termos do artigo 525 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015, conforme prevê o artigo 33 § 3º da Lei de Arbitragem. Em poucas palavras, aplicável no cumprimento de sentença arbitral o mesmo regime jurídico da sentença judicial3.

Ocorre que quando a execução da sentença arbitral é proferida em desfavor da Fazenda Pública é aplicável o regime comum de cumprimento de sentença em face dos entes públicos (artigos 534 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015) culminando na expedição de precatório.

Todavia, essa regra encontrou três exceções em Acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo.

i) No Agravo de Instrumento nº 3004318-77.2020.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Souza Nery, julgado em 03 de março de 2021, interposto pela Fazenda Pública do Estado de São Paulo, visando reformar decisão que determinou o cumprimento de obrigação de fazer, consistente no pagamento direto e imediato de débito reconhecido em sentença arbitral de cunho declaratório, equivalente a mais de cento e onze milhões de reais, consistente em deduções de impostos feitas pela Fazenda Pública, a 12ª Câmara de Direito Público do citado Tribunal assentou:

“Embora a decisão exequenda empregue o termo pagamento tratam estes autos de clara obrigação de fazer, consistente em dar regular e integral cumprimento a contrato a que as partes, Estado e particular, livremente acederam – demais disso, não se trata de obrigação que tenha sido criada, ou estabelecida, pela decisão exequenda – já constava de contrato, cujo inadimplemento parcial teve início há quase dez anos – O sinalagma converte-se em obrigação de fazer, ainda que expressa monetariamente.” (TJSP; Agravo de Instrumento 3004318-77.2020.8.26.0000; Relator (a): Souza Nery; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 16ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 03/03/2021; Data de Registro: 13/04/2021).

Diante dessa decisão, a Fazenda Pública do Estado de São Paulo interpôs o REsp nº 1.962.305/SP e, em 08 de outubro de 2021, o Min. Og Fernandes deferiu o pedido liminar formulado para o fim de suspender a aplicação da multa cominatória e a exigência de imediato pagamento da quantia executada, estando o recurso pendente de julgamento.

ii) No Agravo de Instrumento 3003450-36.2019.8.26.0000, da relatoria da Desembargadora Maria Olívia Alves, a 6ª Câmara de Direito Público, em 03 de fevereiro de 2020, também afastou a aplicação do regime de pagamento por precatório:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO – Cumprimento de sentença arbitral – Contrato administrativo – Reconhecimento da ilegalidade das retenções de pagamento realizadas pelo Estado – Decisão por meio da qual foi rejeitada a impugnação ofertada pelo Estado, com afastamento da adoção do regime de precatórios para o cumprimento da obrigação e determinação de imediata liberação dos valores correspondentes à contraprestação dos serviços prestados, no prazo de 15 (quinze) dias, sob pena de multa – Irresignação do Estado – Título executivo judicial – Situação específica dos autos que não é caso de sujeição ao regime de precatórios, previsto no artigo 100 da Constituição Federal – Hipótese em que não se verifica condenação em obrigação de pagar quantia, mas de mero reconhecimento do dever de cumprir o contrato, como decorrência lógica do reconhecimento, pelo Tribunal Arbitral, da ilegalidade da conduta do ente contratante em reter as contraprestações relativas aos serviços inequivocamente prestados – Continuidade de relação contratual pré-existente que, no caso, envolve o dispêndio de valores já previstos em orçamento – Exequibilidade do título reconhecida pelo Estado – Excesso de execução não demonstrado – Recurso não provido” (TJSP;  Agravo de Instrumento 3003450-36.2019.8.26.0000; Relator (a): Maria Olívia Alves; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 2ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 03/02/2020; Data de Registro: 04/02/2020)

Essa decisão foi impugnada no REsp nº 1.870.456 – SP, tendo a Corte Superior não conhecido do recurso sob o fundamento de que a controvérsia não se referiu à natureza jurídica da sentença arbitral, mas ao seu conteúdo, encontrando óbice na Súmula 7/STJ. Consta do Voto observação do D. Relator:

“Atente-se: não se está afirmar, neste Voto, que a arbitragem interna seja um mundo paralelo, indene à incidência das regras constitucionais, inclusive relativas à necessidade de, como regra, o pagamento de obrigações por quantia, devidas pela Fazenda Pública, observar o regime do art. 100 da CF. Isso, evidentemente, violaria o princípio da igualdade, permitindo, em detrimento dos que litigam perante o Poder Judiciário, que os subscritores da convenção de arbitragem, no recebimento dos créditos que tem com o Poder Público, obtivessem expressiva e insustentável vantagem sobre as camadas mais carentes da população, que certamente não dispõem de recursos para acesso à jurisdição privada. O caso presente guarda as particularidades já expostas, atinentes ao conteúdo do pronunciamento arbitral à luz dos elementos fáticos da demanda (análise do contrato, ocorrência de financiamento internacional da aquisição, modo como se operou a retenção de valores, etc.), cuja apreciação não pode ocorrer nesta via ante o já apontado óbice da Súmula 7/STJ”.

A questão subiu ao STF, por meio do RE nº 1.387.787/SP interposto pela Fazenda Pública do Estado de São Paulo, com fundamento no art. 102, inc. III, al. “a”, da Constituição Federal, mas, em 01 de julho de 2022, foi negado seguimento ao recurso, ao fundamento de que “divergir do entendimento adotado pelo Tribunal a quo, de forma a conferir nova interpretação à sentença arbitral, demandaria a análise de cláusulas contratuais, bem como o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, o que inviabiliza o processamento do apelo extremo, nos termos da Súmula 279 do STF”. Há agravo regimental interposto e concluso ao Relator, desde 15 de julho de 2022.

iii) No Agravo de Instrumento nº 2265933-72.2018.8.26.0000, também de relatoria da Desembargadora Maria Olívia Alves, a 6ª Câmara de Direito Público do TJSP reafirmou o entendimento de que ilegalidade reconhecida em procedimento arbitral, consistente na abstenção de efetuar retenções de pagamentos em contrato administrativo não admite mais discussão, sendo o caso de execução imediata da obrigação de não fazer. Referida decisão transitou em julgado.

Portanto, em que pese o deferimento do pedido liminar no REsp nº 1.962.305/SP, para o fim de suspender a aplicação da multa cominatória e a exigência de imediato pagamento da quantia executada, estando esse recurso pendente de julgamento, a jurisprudência do TJSP tem, excepcionalmente, afastado a aplicação do regime precatorial nos casos de cumprimento de obrigação envolvendo a imediata liberação dos valores correspondentes à contraprestação dos serviços prestados e retenções tributárias indevidas, observando-se acórdãos no STJ e no STF que têm negado seguimento a REsp e RE interpostos em face dessas decisões, diante da ausência de requisitos constitucionais.

Ainda que existam desafios relevantes para serem enfrentados, o fato é que a arbitragem “pegou” nos contratos públicos. A modificação da Lei da Arbitragem em 2015 e o respaldo jurisprudencial parecem ter impulsionado o uso do instrumento. No texto abaixo, Eduardo Jordão resume dados bem interessantes em relação a arbitragens envolvendo agências reguladoras federais.

Um raio-x das arbitragens com o poder público

Por Eduardo Jordão
JOTA, 13/06/2023.
Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/um-raio-x-das-arbitragens-com-o-poder-publico

Depois de muita polêmica, as arbitragens envolvendo o poder público são hoje uma realidade. Instauradas para o deslinde de questões complexas ou apenas como resultado do apagão de canetas, esta forma de resolução de controvérsias ganhou enorme relevância no setor público e hoje movimenta juristas importantes e cifras consideráveis.

Com a ajuda de meu assistente Pedro Burlini, e sem pretensão de exaustividade, levantei na internet informações sobre 26 arbitragens envolvendo agências reguladoras federais. Os dados estão resumidos nesta tabela.

A principal Câmara Arbitral foi a CCI, com 16 das 26 arbitragens. No total, são 11 da ANP, 9 da ANTT, 4 da Anatel, 1 da Anac e 1 da Aneel.

A maior parte (24) se iniciou a partir da explicitação legislativa do cabimento da arbitragem para solução de controvérsias com a Administração Pública, em 2015. Vinte foram iniciadas a partir de 2019, o que sugere aceleração recente.

As já terminadas (7) duraram em média 980 dias (pouco mais de 2 anos e 8 meses). O procedimento mais longo durou 4 anos e 4 meses (Silver Marlin S.A. vs. ANP). Mas há um caso ainda não terminado que já dura 5 anos e 7 meses (Concessionária de Rodovias Minas Gerais Goiás S.A. vs. ANTT).

É difícil fazer uma média dos valores envolvidos com os dados disponíveis, dada a heterogeneidade dos critérios usados para informá-los, mas há pelo menos 11 procedimentos com cifras em disputa superiores a R$ 1 bilhão, em valores atuais.

Nas 26 arbitragens cujos dados se encontraram, foram selecionados 46 diferentes árbitros. Curiosamente, e embora essa seja uma informação atribuída subjetivamente por nós, apenas 15 têm o Direito Administrativo como sua principal área de atuação – menos de 1/3 do total. Muitos árbitros são especialistas, na origem, em direito internacional privado (7), processo civil (7), direito civil (6) e societário (4).

A idade média dos árbitros é 56 anos. O árbitro mais novo encontrado foi Juliana Bonacorsi Palma, com 40 anos. Por outro lado, o árbitro com mais idade foi Arnoldo Wald, hoje com 90 anos.

Os árbitros presentes em mais procedimentos são Sergio Mannheimer e Carlos Alberto Carmona, em 5 deles. Patricia Baptista, Sergio Guerra e José Emilio Nunes atuam em 4 cada.

De acordo com os nossos dados, o universo das arbitragens com o poder público ainda é largamente masculino. Dos 46 árbitros presentes na lista, há apenas 9 mulheres (menos de 20%).

A maioria absoluta tem atuação principal em São Paulo (20) ou no Rio de Janeiro (20). As exceções são Egon Bockmann Moreira e João Bosco Lee, do Paraná; Luiz Gustavo Kaercher Loureiro, do Rio Grande do Sul, e Antonio Pinto Leite e Catarina Monteiro Pires, de Portugal, e Mauricio Gomm Santos, com atuação nos Estados Unidos.

Estudos futuros – e realizados com mais tempo – poderão identificar também outras circunstâncias, como temas mais frequentemente debatidos e eventuais contestações judiciais aos procedimentos já terminados. Levantamentos deste tipo permitem uma melhor apreensão da realidade e abrem espaço para debates sobre aprimoramentos possíveis.

Agora você já tem várias informações úteis para pensar o uso da arbitragem pela administração pública. Vamos debater um pouco?

3. DEBATENDO

Pense em tudo o que você já estudou e sabe sobre direito administrativo. Utilizando esse conhecimento e as informações apresentadas nas seções anteriores, reflita sobre as seguintes problematizações:

  1. Imagine que não existisse norma explícita ou jurisprudência autorizando a administração pública a aderir a arbitragens. Você acha que o instrumento é compatível com o direito administrativo, considerando que algumas pessoas defendem a existência de princípios como a indisponibilidade do interesse público?
  2. Na sua opinião juridicamente fundamentada, a arbitragem em contratos públicos viola a premissa constitucional de inafastabilidade da jurisdição do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV)?
  3. Quais seriam as vantagens do uso da arbitragem em contratações públicas? E as desvantagens? Faça uma lista para responder ambas as perguntas e, na sequência, pesquise argumentos que sustentem e rechacem cada um dos itens listados. Você ficou convencido ou convencida de que a arbitragem é boa às contratações públicas ou não?
  4. Pense em conflitos envolvendo a administração pública que vão parar no Judiciário. Quais desses lhe parecem versar sobre direitos disponíveis e poderiam ser levados à arbitragem? E quais não poderiam, por você considerar que são direitos indisponíveis?
  5. É possível que seja feita uma arbitragem para solucionar um conflito apenas entre órgãos ou entidades públicas, sem nenhum particular envolvido?
  6. Faça uma busca na internet para encontrar regulamentos das administrações federais, estaduais e municipais sobre o uso da arbitragem pelo poder público. Quais temas estão disciplinados nesses regulamentos? Há temas que você considera importantes e que não estão presentes nessas normas?

4. APROFUNDANDO

Para saber mais, busque, além dos textos citados ao longo da aula, os seguintes livros e artigos:

ACCIOLY, João Pedro. “O cumprimento de sentenças arbitrais desfavoráveis à administração pública”, in Revista dos Tribunais Online. Vol. 989. Março 2018, pp. 25 – 54.

MEGNA, Bruno Lopes. Arbitragem e Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2019. 

SUNDFELD, Carlos Ari; GABRIEL, Yasser Reis. “Arbitragem no direito público brasileiro em três atos”, em Arbitragem e Processo – Homenagem ao Professor Carlos Alberto Carmona.  MACHADO FILHO, José Augusto Bitencourt et al. (org.). São Paulo: Quartier Latin, 2022, vol. 1, p. 255 – 270.