Roteiro de Aula

Negociar ou punir?

Fazer acordos de leniência é ser leniente?

1. CONHECENDO O BÁSICO

O tema desta aula são os acordos de leniência, uma ferramenta consensual que o Estado brasileiro tem usado cada vez mais para enfrentar ilícitos associados a práticas econômicas nocivas e complexas. Mas por que, afinal, o Poder Público negociaria com um infrator numa situação como essa? Ser “leniente” com o ilícito não é algo ruim?

Para entender melhor a utilidade desses acordos, vamos imaginar alguns cenários.

No primeiro deles, algumas empresas decidem se unir para combinar preços e dividir clientes entre elas, formando o que chamamos de cartel. Todos os membros do cartel se beneficiam desse arranjo, pois ele permite que as empresas mantenham os preços artificialmente altos, obtendo lucros maiores. Esse tipo de prática não é só antiética; ela prejudica o mercado e afeta consumidores, como você e eu. Como o cartel é altamente lucrativo, as empresas participantes têm interesse em manter esse arranjo em segredo. Elas sabem que, se o esquema for descoberto, serão sujeitas a multas e sanções rigorosas. Isso faz com que se esforcem ao máximo para esconder as suas práticas: as empresas realizam reuniões secretas e trocam informações de forma codificada, dificultando a coleta de provas pelo Estado.

No segundo exemplo, uma grande empresa de construção civil ganha várias licitações para obras públicas em uma cidade. Só que, na verdade, ela consegue esses contratos combinando as suas propostas e preços com outras licitantes e pagando propina aos agentes públicos responsáveis pelos processos de licitação. Esse esquema envolve pagamentos ilegais, superfaturamento e fraudes que custam milhões aos cofres públicos. As empresas e os agentes públicos envolvidos têm uma relação confiança, pois nenhum deles deseja ser punido, nem deixar de lucrar com a prática corrupta. Por isso, todos agem cuidadosamente para ocultar suas atividades ilegais.

Nos dois cenários, o Poder Público não dispõe das informações sobre como os esquemas funcionam, nem sobre quem os integra. As características desses ilícitos tornam a sua investigação extremamente difícil e custosa. Ao mesmo tempo, os recursos públicos – humanos, financeiros e técnicos – são limitados e devem ser alocados de forma eficiente. O problema, então, é: como o Estado pode descobrir e punir condutas desse tipo?  

Aí é que entram os acordos de leniência. Seu objetivo é justamente incentivar que um dos participantes de um esquema ilícito colabore com o Estado, entregando provas e informações sobre o que aconteceu em troca de uma penalidade reduzida (ou, em alguns casos, até mesmo de imunidade). O Estado é “leniente” com esse infrator por um motivo: para obter dele informações valiosas que, de outra forma, seriam difíceis (ou até impossíveis) de conseguir e que lhe permitem investigar e punir os demais participantes do esquema.

No caso do cartel de empresas, por exemplo, um dos membros do grupo poderia se sentir pressionado pelo risco de ser investigado e resolver colaborar com o Estado antes que isso acontecesse. Esse colaborador, em troca de um tratamento mais benéfico, entregaria as provas que mostram como o esquema funciona, quem são os outros membros e como a manipulação de preços é feita. Com essas informações, o Estado poderia punir os demais integrantes do cartel, desmontando o esquema. 

De maneira semelhante, no caso da corrupção nos contratos públicos, um dos representantes da construtora, com medo de ser delatado, poderia decidir se adiantar e entregar ao Poder Público documentos e informações detalhadas sobre os pagamentos de propina e as fraudes, colaborando para que o Estado puna os demais agentes corruptos (públicos e privados) envolvidos.

Acordos de leniência, portanto, são uma ferramenta do Estado para obter provas sobre atos ilícitos sofisticados.Em vez de investir tempo e dinheiro em investigações complicadas e caras, a Administração Pública pode resolver essas questões complexas mais rápido, punindo quem não colabora e economizando recursos. Esse é um tema muito importante no Direito Administrativo contemporâneo, que entende que “punir a qualquer custo” não vale à pena e vê na consensualidade uma alternativa possível para a atuação administrativa eficiente.

Do ponto de vista prático, os acordos de leniência podem ter também um efeito dissuasório sobre as práticas ilícitas, pois introduzem um elemento de instabilidade entre os membros do esquema: cada um sabe que um parceiro pode “trair” o grupo a qualquer momento para obter benefícios. Esse efeito desestabilizador pode inibir a formação de novos cartéis e esquemas corruptos, pois os agentes não podem ter certeza de que seus parceiros permanecerão leais ou se decidirão colaborar com as autoridades e delatar os demais envolvidos antes de serem, eles mesmos, delatados.

Embora tragam benefícios potenciais para a Administração Pública, os acordos de leniência também levantam uma série de dilemas para o direito administrativo e para a sociedade. 

Em primeiro lugar, para que eles realmente funcionem, é importante que os colaboradores tenham clareza sobre os benefícios que receberão em troca de sua cooperação. Se houver incertezas ou arbitrariedade na aplicação das regras, o incentivo para colaborar diminui. Imagine um cenário onde um colaborador fornece provas importantes ao Estado – inclusive contra si mesmo –, mas depois o acordo é desfeito. Isso gera uma insegurança que pode desincentivar futuras colaborações, limitando o impacto dos acordos de leniência.

Em segundo lugar, os acordos de leniência tocam em questões éticas. Alguns questionam se é justo permitir que um participante de um esquema ilícito escape de parte das penalidades, enquanto os outros envolvidos sofrem sanções severas. Esse dilema gera debates na doutrina jurídica sobre a extensão e os limites desse tipo de acordo.

Em terceiro lugar, esses dilemas se somam à dificuldade de adaptar os acordos de leniência a novas situações no sistema jurídico brasileiro. É que a lógica por trás desses acordos foi importada de países como os Estados Unidos, onde já era usada para combater cartéis e facilitar investigações de ilícitos econômicos. No Brasil, contudo, essa ideia se expandiu: além dos cartéis, ela também busca enfrentar ilícitos como a corrupção. O problema é que essa expansão trouxe novos desafios e dúvidas sobre até que ponto o modelo funciona bem aqui.

Um dos grandes desafios da aplicação dos acordos de leniência no combate à corrupção no Brasil é a multiplicidade de órgãos e entes de controle que têm competência para tratar dessa matéria. Desde a Controladoria-Geral da União, o Ministério Público Federal, o Tribunal de Contas da União, passando por instâncias estaduais e até municipais, várias instituições e órgãos podem ter competências para sancionar diferentes aspectos decorrentes de atos de corrupção. Mas esses diferentes órgãos e entes nem sempre compartilham a mesma visão sobre os critérios, a execução e os benefícios concedidos aos colaboradores nos acordos de leniência. Esse descompasso pode gerar insegurança jurídica e tornar o processo de colaboração menos atrativo. Isso não apenas prolonga as negociações, como também aumenta o risco de sanções adicionais ou reinterpretações sobre as responsabilidades da empresa colaboradora.

Para o aluno de direito, estudar os acordos de leniência é importante porque eles representam uma aplicação prática da consensualidade no direito administrativo, ao mesmo tempo em que demonstram a importância de uma atuação coordenada das esferas de controle na Administração Pública brasileira. Compreender os aspectos pragmáticos e os dilemas envolvidos ajuda o futuro jurista a desenvolver uma visão mais ampla sobre a função do direito administrativo sancionador e o seu papel na proteção dos interesses públicos.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Vimos que os acordos de leniência funcionam como um importante meio de obtenção de provas pela Administração Pública. Suas origens e utilização mais usual, no Brasil e no mundo, são no campo do combate aos carteis. Por isso, a primeira leitura sugerida para esta aula é um trecho do Guia sobre o Programa de Leniência Antitruste elaborado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que, no Brasil, é referência na celebração desses acordos. A partir desse texto, é possível ter uma noção de como funcionam os acordos de leniência celebrados para a proteção da concorrência:

Guia sobre o Programa de Leniência Antitruste do CADE

Por Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)

[…]

7. Por que fazer um Acordo de Leniência no Cade?

A celebração de um Acordo de Leniência no Cade pode conceder benefícios significativos aos signatários – empresas e/ou pessoas físicas (vide perguntas 14 e 15, infra) – nas esferas administrativas e criminais (vide perguntas 18 e 19, infra). Não tendo sido proposto e firmado Acordo de Leniência, todas as empresas e/ou pessoas físicas que participaram da conduta anticoncorrencial coletiva sob investigação são passíveis de condenação administrativa e criminal.

Os envolvidos em tais condutas estão sujeitos a severas sanções administrativas (art. 37 da Lei nº 12.529/2011), e, no caso de empresa, a infração da ordem econômica existe independentemente de culpa. A condenação administrativa de tais infrações da ordem econômica é consolidada na jurisprudência do Cade, tanto na aplicação da atual Lei nº 12.529/2011 quanto da legislação anterior (Lei nº 8.884/1994). O Tribunal do Cade tem sido claro em condenar acordos entre concorrentes com o objetivo ou com a potencialidade de produzir os efeitos, ainda que não alcançados, de (I) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; (II) dominar mercado relevante de bens ou serviços; ou (III) aumentar arbitrariamente os lucros. Além disso, os envolvidos também podem ser punidos criminalmente pela infração, dado que cartel também é crime tipificado no artigo 4º da Lei no 8.137/1990 (vide perguntas 3 a 6, supra).

Ademais, os participantes da conduta anticoncorrencial coletiva devem ter em mente que, ainda que não haja proposta de Acordo de Leniência, o Cade pode ter conhecimento de um acordo ilícito entre concorrentes por meio de diversas outras fontes (por exemplo, representações de clientes ou de terceiros, notícias e informações da mídia, cooperação com autoridades setoriais no Brasil, cooperação entre autoridades antitruste sobre investigações em curso em outras jurisdições, investigações ex officio, entre outras) ou, ainda, por meio de medidas administrativas diversas (por exemplo, operações de busca e apreensão, inspeções, requisição de informações e utilização de procedimentos de inteligência para detectar cartéis em licitações), fatores que representam mais um incentivo à propositura e celebração de Acordo de Leniência com o Cade.

[…]

12. Quais são os requisitos para a propositura de um Acordo de Leniência Antitruste?

Os artigos 86 da Lei nº 12.529/2011 e 238 do RICade elencam os requisitos para a assinatura de um Acordo de Leniência no Brasil. Em seus termos, é necessário que:

I. a empresa seja a primeira a se qualificar com respeito à infração noticiada ou sob investigação;

II. a empresa e/ou pessoa física cesse sua participação na infração noticiada ou sob investigação;

III. no momento da propositura do acordo, a Superintendência-Geral não disponha de provas suficientes para assegurar a condenação da empresa e/ou da pessoa física;

IV. a empresa e/ou pessoa física confesse sua participação no ilícito;

V. a empresa e/ou pessoa física coopere plena e permanentemente com a investigação e o Processo Administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitado, a todos os atos processuais, até a decisão final sobre a infração noticiada proferida pelo Cade; e

VI. da cooperação resulte a identificação dos demais envolvidos na infração e a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação.

[…]

18. Quais são os benefícios concedidos a quem assina e cumpre o Acordo de Leniência?

Na esfera administrativa, a celebração do Acordo de Leniência candidata as empresas e/ou pessoas físicas signatárias à obtenção dos benefícios da extinção da ação punitiva da administração pública ou da redução da penalidade aplicável, benefícios estes concedidos definitivamente quando do julgamento do processo administrativo instaurado para apurar as condutas ilícitas denunciadas pelo Tribunal do Cade (art. 86, §4o da Lei nº 12.529.2011).

Nos termos do artigo 86, §4º, da Lei nº 12.529/2011 c/c artigo 249 do RICade, uma vez declarado o cumprimento do Acordo de Leniência pelo Tribunal do Cade, os signatários beneficiam-se: I. da extinção da ação punitiva da Administração Pública em relação à Lei nº 12.529/2011, nas hipóteses em que a proposta do acordo de leniência for apresentada à Superintendência-Geral do Cade em momento em que essa autoridade ainda não tenha conhecimento prévio da infração noticiada; ou II. da redução de um a dois terços das penas aplicáveis no âmbito da Lei nº 12.529/2011, nas hipóteses em que a proposta do Acordo de Leniência for apresentada à SG/Cade após o conhecimento desta autoridade sobre a infração noticiada (vide pergunta 38, infra).

Na esfera criminal, a celebração de Acordo de Leniência determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao indivíduo beneficiário da leniência no que tange aos crimes tipificados na Lei de Crimes Contra a Ordem Econômica (Lei nº 8.137/1990), e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei Geral de Licitações (Lei nº 8.666/1993) e no artigo 288 do Código Penal (associação criminosa). Cumprido o Acordo de Leniência, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes acima (art. 87 da Lei nº 12.529/2011).

[…]

26. Qual a relação entre o Acordo de Leniência do Cade e o Acordo de Leniência previsto na Lei nº 12.846/2013 (“Lei da Empresa Limpa”/“Lei Anticorrupção”)?

O Acordo de Leniência previsto na Lei nº 12.846/2013 (“Lei da Empresa Limpa” / “Lei Anticorrupção”) beneficia as empresas responsáveis pela prática de atos lesivos à Administração Pública nacional e estrangeira definidos no artigo 5º e é celebrado pela autoridade máxima de cada órgão ou entidade, sendo que, no âmbito do Poder Executivo Federal, a Controladoria-Geral da União (CGU) é o órgão competente.

Esse tipo de acordo pode ser celebrado apenas com a pessoa jurídica, a qual deverá atender a cinco critérios:

I. ser a primeira a manifestar interesse em cooperar para a apuração de ato lesivo

específico, quando tal circunstância for relevante;

II. ter cessado completamente seu envolvimento no ato lesivo a partir da data da propositura do acordo;

III. admitir sua participação na infração administrativa;

IV. cooperar plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo e comparecer, sob suas expensas e sempre que solicitada, aos atos processuais, até o seu encerramento; e

V. fornecer informações, documentos e elementos que comprovem a infração administrativa.

Uma vez cumprido o acordo de leniência previsto na Lei nº 12.846/2013, a empresa poderá ter os seguintes benefícios:

I. isenção da publicação extraordinária da decisão administrativa sancionadora;

II. isenção da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicos e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo Poder Público;

III. redução do valor final da multa aplicável, observado o disposto no art. 23; ou

IV. isenção ou atenuação das sanções administrativas previstas nos arts. 86 a 88 da Lei no 8.666, de 1993, ou de outras normas de licitações e contratos.

Observa-se que na hipótese de a empresa ou pessoa física ter participado de ilícito envolvendo, concomitantemente, os crimes de cartel e outros ilícitos, não há regra legal pré-definida sobre qual órgão deve ser primeiramente procurado pelo proponente do acordo. Se o proponente buscar primeiramente a Superintendência-Geral do Cade, o Cade poderá realizar a coordenação com o Ministério Público, a CGU e/os outros órgãos investigadores, a pedido do proponente do Acordo de Leniência Antitruste. Já na hipótese de o proponente buscar primeiramente o Ministério Público, a CGU e/ou outros órgãos, esses também poderão, na sequência, buscar a SG/Cade para negociar o Acordo de Leniência Antitruste, a pedido do proponente do acordo.

Todavia, observa-se que as negociações de acordo de leniência previstas na Lei nº 12.529/2011 e na Lei nº 12.846/2013 ocorrem no âmbito de autoridades distintas e as negociações são independentes entre si. A negociação e a assinatura de ambos os acordos de leniência, portanto, ocorrem a critério das autoridades competentes e não dependem da celebração ou de acordos com outras autoridades. Assim, embora a Superintendência-Geral do Cade possa auxiliar os proponentes do Acordo de Leniência nessa interlocução com a autoridade competente para a investigação de outros ilícitos, a negociação e a assinatura de eventuais acordos ocorrem a critério das autoridades competentes.

[…]

A próxima leitura sugerida é um artigo de autoria do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, em conjunto com o Conselheiro do CADE Victor Oliveira Fernandes. O texto explora como a multiplicidade de órgãos sancionadores no Brasil impacta a efetividade e a segurança jurídica dos acordos de leniência usados no combate à corrupção e analisa algumas decisões do STF que buscaram harmonizar os diferentes interesses públicos e competências estatais pertinentes. Observe seus argumentos e reflita sobre o assunto, considerando o tema desta aula:

Acordos de leniência e regimes sancionadores múltiplos

Por Gilmar Ferreira Mendes, Victor Oliveira Fernandes

As reformas legislativas que, nas últimas duas décadas, viabilizaram a internalização da agenda internacional de combate à corrupção resultaram na criação de múltiplos feixes de responsabilização de pessoas jurídicas e pessoas naturais. Superando o clássico monopólio da tutela penal, esses feixes se irradiaram para diversas esferas do Direito Administrativo, em que houve a criação de novos tipos abertos, e do próprio Direito Civil, em que se adensou o regime de responsabilização judicial pelos danos ao erário, sobretudo a partir da aprovação da Lei 12.846/2013, a chamada Lei Anticorrupção (LAC).

[…]

Embora a multiplicação de normas proibitivas em esferas de naturezas jurídicas independentes tenha sido percebida como importante avanço no combate à corrupção, as experiências de implementação das políticas de leniência, sobretudo no âmbito dos desdobramentos da Operação Lava Jato, passaram a evidenciar que as sobreposições desses múltiplos regimes impõem desafios de cooperação institucional entre as diversas entidades que, sob diferentes enfoques, buscaram a implementação de programas de leniência próprios, tais como a Advocacia-Geral da União (AGU), a Controladoria-Geral da União (CGU), o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), o Ministério Público Federal (MPF) e o Tribunal de Contas da União (TCU).

Essas experiências demonstram que a implementação da LAC tem se desdobrado a partir de intricadas redes de sobreposições, redundâncias e conflitos entre esses atores estatais, cujas fricções, ao fim e ao cabo, redefinem profundamente as disciplinas legais abstratamente concebidas. Os pontos cegos dos regimes de leniência se tornam ainda mais evidentes nas raras situações em que empresas investigadas buscaram simultaneamente diversas autoridades administrativas para a colaboração, sem que seja possível identificar a exata extensão das garantias de imunidade.

[…]

Importantes aprendizados institucionais podem ser extraídos de decisões recentes do STF nos Mandados de Segurança 35.543 e 36.496, em que foram impugnados atos do TCU no âmbito de acompanhamento de auditoria de fiscalização da licitação e dos contratos referentes ao serviço de montagem eletromecânica da Usina Termonuclear de Angra III.

Nos mandamus, as empresas Andrade Gutierrez Engenharia S/A e UTC Engenharia S/A impugnavam acórdão da Corte de Contas que havia lhes imposto a sanção de inidoneidade prevista no art. 46 da Lei 8.443/1992. À época da prolação do acórdão, a Andrade Gutierrez Engenharia S/A já havia firmado acordo de leniência com o MPF, relativo aos mesmos fatos investigados pelo TCU e tanto a Andrade Gutierrez Engenharia S/A quanto a UTC Engenharia S/A estavam em processo de negociação de leniência com a CGU/AGU. As impetrantes alegavam que, diante dessas colaborações, a proibição de contratar com o Poder Público, determinada pelo TCU, seria desproporcional e inviabilizaria as colaborações assumidas nos mencionados acordos.

A posição inicialmente adotada pela Corte de Contas no Acórdão 483/2017 foi de que os termos dos acordos de leniência firmados pela Andrade Gutierrez Engenharia S/A com o MPF não seriam suficientes para afastar as sanções decorrentes do controle externo. Todavia, o TCU entendeu que a empresa faria jus a uma suspensão condicional da pena de inidoneidade até que as empresas apresentassem, pelo Ministério Público Federal, compromisso de colaborar com os processos de controle externo.

A rigor, o impasse gerado no Acórdão 483/2017 tinha relação com o valor devido a título de reparação dos danos ao erário. A intenção do TCU era de que o MPF conseguisse negociar com as empresas uma atualização dos valores de ressarcimento previstos nos acordos de leniência firmados com o Parquet, processo que ficou conhecido como “recall”. Ou seja, a posição da Corte de Contas era a de que os acordos de leniência firmados com o MPF, ainda que válidos, não afastariam a competência do TCU, até mesmo porque a celebração desses acordos não prejudicaria a necessidade imperativa do ressarcimento integral dos prejuízos, conforme disposto no § 3º do art. 16 da Lei 12.846/2013.

Em decisões liminares, o Ministro Gilmar Mendes impediu que o TCU efetivasse a imposição das sanções de inidoneidade em relação às impetrantes. O relator concluiu que: “se os acordos de leniência não contemplarem em sua totalidade a reparação do dano causado ao erário, é possível ao TCU julgar as contas daqueles que deram causa à perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público”. O Ministro ressalvou, no entanto, que “tendo o TCU outros mecanismos aptos a atingir tais finalidades, não é razoável que aplique penalidade que inviabilize o cumprimento dos acordos firmados por outros entes”.

Em 26 de maio de 2020, a Segunda Turma do STF iniciou o julgamento do mérito dos mencionados mandados de segurança. O voto-relator, do Ministro Gilmar Mendes, confirmou os provimentos liminares, assentando que a possibilidade de o TCU impor sanção de inidoneidade pelos mesmos fatos que deram ensejo à celebração de acordo de leniência com a CGU/AGU não seria compatível com os princípios constitucionais da eficiência e da segurança jurídica. O relator observou que a interpretação conjugada dos múltiplos regimes de leniência que se inserem no microssistema anticorrupção deve zelar (i) pelo alinhamento de inventivos institucionais à colaboração e (ii) pela realização do princípio da segurança jurídica, a fim de que os colaboradores tenham previsibilidade quanto às sanções e benefícios premiais cabíveis quando da adoção de postura colaborativa com o Poder Público.

A partir dessa perspectiva, o voto-relator placitou a tese de que, quando a celebração do Acordo de Leniência Anticorrupção envolver simultaneamente a CGU e a AGU, o alcance dos benefícios se tornaria bastante alargado, uma vez que operaria tanto sobre o regime de responsabilização administrativa de natureza sancionatória, que é guardado pela CGU, quanto sobre o regime de responsabilização judicial de natureza reparatória, que é guardado pela AGU, nos termos do art. 2º da Portaria Interministerial.

Diante desses termos pactuados, é importante que a Administração Pública atue de forma coordenada, e não de maneira contraditória e incoerente, de modo a gerar a aplicação de sanções como se não houvesse colaboração voluntária. É uma responsabilidade do Estado zelar para que as empresas investigadas não tenham a percepção de que a Administração Pública está desonrando seus compromissos. Ainda que, do ponto de vista estritamente normativo, a celebração dos contratos de Leniência Anticorrupção previstos na Lei 12.846/2013 de fato não fulmine a atuação sancionadora do TCU baseada na Lei 8.443/1992, há inegável sobreposição fática entre os ilícitos admitidos pelas colaboradoras perante a CGU/AGU e o objeto de apuração do controle externo.

Se tal sobreposição fática não for considerada de forma harmônica, sobreleva-se o risco de determinada empresa ser apenada duas ou mais vezes pelo mesmo fato, a despeito de não ser evidente a pluralidade de bens jurídicos tutelados pelas distintas esferas de responsabilização. Embora a sanção de inidoneidade aplicada com base na Lei 8.443/1992 não esteja contemplada expressamente na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), a aplicação desta penalidade pela Corte de Contas resulta em ineficácia da cláusula que prevê a isenção ou a atenuação das sanções administrativas estabelecidas nos arts. 86 a 88 da Lei 8.666/1993, por consequência, esvaziando a força normativa do art. 17 da Lei 12.846/2013, pois os efeitos práticos das sanções mencionadas são semelhantes, senão coincidentes.

Esse entendimento adotado pelo STF de modo algum suprime a realização da missão institucional do TCU. Como já destacado, o próprio microssistema anticorrupção reconhece que a celebração do acordo de leniência em si não esgota o dever jurídico de reparação integral do dano ao erário. Esse é o sentido do art. 16, § 3º, da própria Lei Anticorrupção, o qual deixa claro que “o acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado”. Assim, nada obsta que, mesmo após a celebração do acordo de leniência com a CGU/AGU, o TCU apure a existência de danos complementares que não foram integrados na reparação ao erário entabulada naqueles acordos. Ocorre que, nessa hipótese, não é dado ao TCU valer-se de sanção que obstrua a execução daqueles acordos.

[…] 

Os conflitos entre órgãos e entes competentes para o combate à corrupção, a respeito dos requisitos e efeitos dos acordos de leniência, foram tamanhos que levaram o STF a mediar uma tentativa de cooperação institucional entre as autoridades públicas interessadas. O resultado foi celebração de um Acordo de Cooperação Técnica entre a Controladoria-Geral da União (CGU), a Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministério da Justiça e o Tribunal de Contas da União (TCU). Vejam alguns trechos interessantes:

ACORDO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA QUE ENTRE SI CELEBRAM O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, A CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO (CGU), A ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO (AGU), O MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA (MJSP) E O TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU) EM MATÉRIA DE COMBATE À CORRUPÇÃO NO BRASIL, ESPECIALMENTE EM RELAÇÃO AOS ACORDOS DE LENIÊNCIA DA LEI Nº 12.846, DE 2013

[…]

no que tange à função estatal de prevenção e combate à corrupção, o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro é dotado de um sistema de múltiplas camadas de competências e responsabilidades, com independência relativa ou mitigada entre elas. E nesse sistema com múltiplas esferas de responsabilidade vários são os órgãos ou instituições públicas com atribuição e competência para exercer parcela do poder sancionatório do Estado, sem a existência de hierarquia ou subordinação entre eles.

Nesse contexto, dada a natureza multifacetária e plural dos atos de corrupção, esses atraem a incidência de um verdadeiro sistema de responsabilização que demanda a atuação articulada de várias instituições para combatê-la. Dentro deste sistema,  destacam-se (i) as instituições com poder de investigação e persecução penal (no nível  federal através da Polícia Federal e Ministério Público Federal); (ii) as instituições encarregadas de promover ações judiciais pela prática de ato de improbidade administrativa (no plano federal através do Ministério Público Federal e os entes públicos lesados, notadamente a União representada pela Advocacia-Geral da União); (iii) as instituições comissionadas legalmente para exercer as funções próprias ao controle interno, à persecução administrativa nos termos da Lei nº 12.846/2013 e à prevenção e combate à corrupção (no âmbito do Poder Executivo federal, a cargo da Controladoria- Geral da União); bem como (iv) as instituições incumbidas do controle externo dos demais Poderes (que no âmbito federal é exercido pelo Tribunal de Contas da União).

Todas essas instituições, nos limites de suas competências legalmente estabelecidas e através do manuseio das ferramentas adotadas pelo sistema brasileiro anticorrupção, atuam na prevenção, na persecução a ilícitos e na recuperação de valores desviados com a prática de atos de natureza corruptiva, inclusive em sede de fiscalização de contratos e tomadas de contas especiais, notadamente quando os atos de corrupção forem praticados no contexto de contratações públicas.

Se de uma parte, múltiplas são as instâncias de persecução do ilícito e de aplicação do direito sancionador, vigora no direito brasileiro o princípio da reserva de jurisdição.

Em verdade, por força do disposto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição, (i) de um lado, a aplicação da sanção judicial civil ou penal apenas pode ser exercida pelo Poder Judiciário; e, (ii) de outro, o reconhecimento de que o âmbito adequado para a solução dos conflitos relacionados aos limites constitucionais das competências de cada

instituição é o Supremo Tribunal Federal, quando provocado.

Ainda, na base desse sistema está a própria concepção de Estado Democrático de Direito. Em sua essência, tendo como ponto norteador o valor supremo da Justiça, o direito sancionador deve ser aplicado com respeito aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e das pessoas jurídicas sujeitas à responsabilização nas instâncias administrativa, civil ou penal. Na aplicação do Direito, esta concepção demanda, por parte de todas as instituições, a irrestrita observância às regras de atribuição e competência previstas na Constituição ou na legislação infraconstitucional.

É de se notar que o Estado Democrático de Direito requer mecanismos de freios e contrapesos ao exercício do poder, sendo que a atuação do controle externo é mecanismo essencial para a transparência e a legitimação democrática dos atos proferidos pelo Estado, nos termos da Constituição.

É dentro desta concepção de Estado de Direito que devem atuar as instituições incumbidas do combate à corrupção e recuperação de ativos procedentes do ilícito. Isso impõe que os diversos atores públicos ajam de forma coordenada e em estrita observância às suas atribuições e competências legalmente estabelecidas na matéria. Sem isso, se geram insegurança jurídica, conflitos interinstitucionais, sobreposição de atuações, insuficiência ou vácuos na atuação estatal, impunidade e desproporcionalidade na punição das pessoas físicas e jurídicas. Enfim, não se garante a justa prevenção e combate à corrupção.

Assim, a fim de construtiva e cooperativamente se aperfeiçoar o sistema de prevenção e combate à corrupção, sob a coordenação do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF, representado por seu Presidente, MINISTRO JOSÉ ANTONIO DIAS TOFFOLI, que 

 a CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO – CGU, representada pelo MINISTRO WAGNER DE CAMPOS ROSÁRIO;

 a ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO – AGU, representada pelo ADVOGADO-

GERAL DA UNIÃO JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JÚNIOR;

 o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – MPF, representado pelo PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA ANTÔNIO AUGUSTO BRANDÃO DE ARAS;

 o TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO – TCU, representado por seu Presidente, MINISTRO JOSÉ MÚCIO MONTEIRO; e

 o MINISTÉRIO DE JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA – MJSP, representado pelo MINISTRO ANDRÉ LUIZ DE ALMEIDA MENDONÇA;

RESOLVEM firmar o presente ACORDO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA – ACT A SER ADOTADO EM MATÉRIA DE COMBATE À CORRUPÇÃO NO BRASIL, ESPECIALMENTE EM RELAÇÃO AOS ACORDOS DE LENIÊNCIA DA LEI Nº 12.846, DE 2013, nos termos que seguem:

[…]

Terceira ação operacional: a utilização pelas SIGNATÁRIAS DO ACT de informações que tenham sido compartilhadas pela Controladoria-Geral da União e pela Advocacia-Geral da União previamente à assinatura do acordo de leniência observará necessariamente os seguintes limites:

1) não utilização das informações recebidas contra o colaborador;

(2) até que se efetive a assinatura do acordo de leniência, não utilização das informações recebidas para a responsabilização de outras pessoas físicas e jurídicas envolvidas nos ilícitos revelados pelo colaborador, exceto em casos de ilícitos em andamento e com prévia anuência do colaborador;

(3) até que se efetive a assinatura do acordo de leniência, não utilização das informações recebidas para qualquer procedimento alheio ao previsto no presente ACT;

(4) em caso de não celebração de acordo de leniência, a obrigação prevista no art. 35 do Decreto no 8.420, de 2015, aplica-se também às demais SIGNATÁRIAS DO ACT.

Quarta ação operacional: após a celebração do acordo de leniência, a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União compartilharão com as demais SIGNATÁRIAS DO ACT a integralidade das informações, documentos e demais elementos de prova fornecidos pela empresa colaboradora, sempre mediante o compromisso de não utilização, direta ou indiretamente, dessas informações para sancionamento da empresa colaboradora, e de não aplicação de sanção de inidoneidade, suspensão ou proibição para contratar com a Administração Pública, para os ilícitos já resolvidos no escopo do acordo de leniência, observando, ao menos, os seguintes parâmetros:

(1) compartilhamento com o Ministério Público Federal e a Polícia Federal para responsabilização penal das pessoas físicas envolvidas nos ilícitos revelados pela empresa colaboradora;

(2) compartilhamento com o Tribunal de Contas da União para eventual responsabilização, em sede de tomadas de contas especial ou de fiscalização de contratos, das demais pessoas, físicas ou jurídicas, envolvidas nos ilícitos revelados pela empresa colaboradora, bem como para apuração de eventual dano não resolvido pelo acordo de leniência;

(3) compartilhamento com outros eventuais órgãos (corregedorias, empresas estatais, Ministérios, Estados, Municípios, Distrito Federal, e outros), para responsabilização das demais pessoas, físicas ou jurídicas, envolvidas nos ilícitos revelados pela empresa colaboradora;

Os acordos de leniência não são os únicos instrumentos consensuais de que o Estado pode dispor no combate à corrupção. Há outros, como os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), os Acordos de Não Persecução Cível (ANPC) da Lei de Improbidade Administrativa e, mais recentemente, os Termos de Compromisso previstos na Portaria Normativa CGU nº 155/2024. Mas nem sempre é fácil identificar quando cada um desses instrumentos deve ser utilizado e de que forma eles podem se relacionar. Sobre esse tema, vejam este artigo escrito em coautoria entre Alice Voronoff, Procuradora do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Direito pela UERJ, e Rafaela Canetti, autora desta aula.

ANPC, Acordo de Leniência e TAC: a que servem tais instrumentos no atual espaço mais completo – mas também mais complexo – de consensualidade?

Por Alice Voronoff e Rafaela Canetti

[…]

Vem da economia a lição de que indivíduos respondem a incentivos. Daí por que um arranjo de regras bem desenhadas pode ser capaz de impulsionar a colaboração de particulares com o Poder Público, o que tende a levar a resultados mais eficientes do que aqueles colhidos pela via da imposição pura e simples de sanções administrativas. A busca por essa maior eficiência, como já dito, assume contornos diferentes a depender das circunstâncias fáticas e dos interesses públicos em jogo. 

No que se refere à resposta estatal a cartéis e à corrupção praticada em conluio, cujo sucesso está diretamente relacionado à desestabilização das relações de confiança entre os membros da organização criminosa, os acordos de leniência da Lei Anticorrupção e da Lei do CADE (Lei nº 12.529/2011) costumam apresentar traços próprios, voltados ao incremento de incentivos à traição mútua dos integrantes da organização criminosa, na medida em que oferecem um “prêmio” (a mitigação das sanções) ao denunciante que delatar seus companheiros. O alvo é a criação de uma verdadeira corrida pela obtenção do primeiro lugar na fila dos colaboradores com o Poder Público, situação em que a pessoa jurídica não só evita ser, ela mesma, a delatada, mas também obtém reduções das pesadas sanções a que estaria sujeita nessa situação. O Poder Público, de sua vez, obtém meios de prova que não conseguiria alcançar de outra forma, seja em razão da sua assimetria de informações, seja em decorrência da escassez dos recursos e pessoal necessários para desbaratar grandes esquemas de corrupção. 

Por isso, um acordo de leniência, em regra, tem um design normativo característico, que pretende criar, na prática, situação análoga àquela do modelo econômico do dilema do prisioneiro, no qual delatar e cooperar com as autoridades corresponderá à melhor estratégia possível do infrator, sob a perspectiva estritamente racional de maximização do próprio bem-estar (i.e. minimização da própria pena). Na terminologia da teoria dos jogos, será a estratégia dominante, na medida em que garantirá o melhor resultado possível de forma independente da escolha tomada pelos demais infratores. 

Concretamente, um programa de leniência costuma contemplar, dentre outros pontos, a exigência de que o delator confesse e cesse a participação no ilícito, seja o primeiro a delatar, oferte ao Poder Público elementos probatórios autônomos que permitam a imposição de sanções sobre os demais agentes, implemente ou aprimore programa de compliance). Esses traços, embora façam sentido no contexto de uma política pública de combate a esquemas complexos de corrupção ou cartelização, podem ser impertinentes ou excessivamente rigorosos em outros contextos, criando um conjunto de incentivos que afaste os interessados na celebração de ajustes, ao invés de os atrair. E nem a banalização dos acordos de leniência, nem a sua subutilização são desejáveis.

Daí já ser possível notar que nem todo acordo celebrado entre Administração Pública e a pessoa (física ou jurídica) que pratica atos de corrupção se sujeita à ideia de um acordo de leniência. Isso não só em razão de a Lei Anticorrupção apenas prever a sua celebração por pessoas jurídicas, silenciando sobre as pessoas físicas que praticam atos tipificados na LIA, mas também porque nem todo ato ímprobo carrega as marcas de complexidade e plurisubjetividade típica das condutas que os acordo de leniência visam a prevenir.   

Em outro espectro, para a readequação e reparação das condutas dos agentes privados, nas mais diversas esferas, é usual recorrer-se aos termos de ajustamento de conduta (TAC). Sua modelagem varia muitíssimo, a depender do setor regulado, ente celebrante, objetivo regulatório e marco normativo aplicável. Ainda que eles possam integrar arranjos regulatórios mais complexos e responsivos, contudo, é possível cogitar de TAC que tenha como finalidade, simplesmente, a reparação de irregularidades de forma mais célere – e.g. reduzindo custos da Administração com a persecução administrativa ou a execução de multas, permitindo o seu pagamento espontâneo ou a conversão em investimento. Até por isso, o TAC é um dos instrumentos de consensualidade de maior utilidade na seara administrativa.

Em contraste, quanto ao ANPC, não é simples a estipulação apriorística de critérios para a sua celebração. Isso não apenas porque a lei foi minimalista na sua densificação, mas, sobretudo, porque o arranjo de incentivos e finalidades públicas possíveis em um ANPC poderá variar muitíssimo em cada caso. 

A LIA é norma de grande alcance e variabilidade nas condutas que visa a coibir, o que significa que o ANPC tem potencialidades (a depender dos requisitos exigidos e dos incentivos gerados) seja em casos de grandes esquemas de corrupção multifacetados e plurissubjetivos, (agindo, inclusive, como um importante coadjuvante dos acordos de leniência das pessoas jurídicas, ao conferir segurança jurídica e incentivos para a colaboração das pessoas físicas), seja em situações mais singelas, em que o ilícito praticado representou conduta isolada, gerou pouco ou nenhum dano ao patrimônio e/ou não guarda maiores complexidades. Se, na primeira hipótese, o ANPC pode ser usado para descortinar padrões de comportamento ilícito contumazes e organizados, na segunda, pode, simplesmente, representar uma forma de tornar o recolhimento de multas e ressarcimento ao erário mais eficiente, evitando processos administrativos ou judiciais prolongados.

Também os contornos processuais desses acordos propiciam grande variação no seu conteúdo e utilidade. Eles podem, de acordo com a norma hoje vigente, ser celebrados, antes, durante ou mesmo depois do curso da fase de conhecimento da ação de improbidade. Em cada um desses cenários, os interesses e incentivos se alteram: requisitos e concessões mútuas que façam sentido em determinada fase processual podem ser excessivos ou inúteis em outras. Um ANPC celebrado na fase de execução de sentença condenatória em ação de improbidade dificilmente terá razões para dispensar todas as sanções impostas judicialmente (e, se o fizer, dificilmente será homologado), mas pode servir para discutir as obrigações impostas ao condenado, mitigando a sua forma de execução ou alterando o seu conteúdo. O cenário não se replica nas negociações de ANPC realizadas nos momentos iniciais da tramitação de uma ação, quando a aplicação de todas as sanções contempladas no pedido condenatório pode não conferir incentivos suficientes ao particular para celebrar a avença, diante das alternativas possíveis (i.e. o longo percurso de um processo judicial e a possibilidade hipotética de que o resultado da ação seja favorável ao réu).  

Cabe destacar, no entanto, que tais “normas gerais” não vinculam os demais entes da Federação, que podem aderir voluntariamente a seus comandos ou, alternativamente, elaborar legislação própria.

3. DEBATENDO

Após concluírem as leituras recomendadas, os alunos estarão preparados para participar de debates em sala sobre temas ligados aos acordos de leniência, com a mediação e orientação do professor. Para iniciar, o professor pode fazer algumas perguntas, tanto para verificar a compreensão da leitura quanto para reforçar noções fundamentais:

  1. Qual o papel dos acordos de leniência no combate a crimes econômicos e à corrupção? Por que, na visão de vocês, o Estado decidiu adotar acordos de leniência como estratégia?
  2. Na sua opinião, os acordos de leniência complementam os métodos investigativos mais tradicionais?
  3. Em que medida vocês acham que os acordos de leniência realmente conseguem impedir a formação de novos cartéis ou práticas ilícitas? 
  4. Vocês acham que a expansão do uso dos acordos de leniência para além dos crimes de cartel (para corrupção e outras práticas ilícitas) é positiva? Que dificuldades o direito administrativo brasileiro pode enfrentar ao ampliar o escopo desses acordos? Vocês veem algum risco nessa expansão?
  5. Na visão de vocês, qual é o impacto da insegurança jurídica sobre os possíveis colaboradores? O que poderia ser feito para dar mais garantias a quem opta por colaborar? As cautelas atuais tomadas pelo Poder Público para aumentar a segurança jurídica dos colaboradores são suficientes?
  6. Quais são os desafios que o direito administrativo enfrenta ao tentar balancear uma maior atratividade dos acordos de leniência com a manutenção de um sistema de sanções efetivo?
  7. Para vocês, os acordos de leniência já celebrados podem ser revistos e renegociados posteriormente? Se sim, em que circunstâncias?
  8. Vocês acreditam que o uso frequente de acordos de leniência pode gerar a percepção de impunidade? Quais são as consequências de muitos acordos para a imagem da Administração Pública? Que medidas poderiam ser tomadas para evitar que acordos de leniência sejam utilizados de forma indevida ou descontrolada?

4. APROFUNDANDO

Se houver interesse em aprofundar o assunto, seguem algumas leituras recomendadas:

ATHAYDE, Amanda. Manual dos acordos de leniência no Brasil: teoria e prática: CADE, BC, CVM, CGU, AGU, TCU, MP. Imprenta: Belo Horizonte, Fórum, 2021.

BUAIZ NETO, José Alexandre; ATHAYDE, Amanda. Revisão de acordos de leniência: anulação, rescisão ou repactuação? Migalhas, 5 mar. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/402748/revisao-de-acordos-de-leniencia-anulacao-rescisao-ou-repactuacao. Acesso em: 1 nov. 2024.

BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. 5ª Câmara de Coordenação e Revisão. Nota Técnica nº 2/2020: Acordo de Cooperação Técnica e Acordo de Leniência. Brasília: MPF, 2020. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/notas-tecnicas/docs/nota-tecnica-2-2020-acordo-de-cooperacao-acordo-de-leniencia-final.pdf. Acesso em: 1 nov. 2024.

CANETTI, Rafaela Coutinho. Acordo de leniência: fundamentos do instituto e os problemas de seu transplante ao ordenamento jurídico brasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

HAMMOND, S.D. Cornerstones of an effective leniency program. ICN Workshop on Leniency Programs, Sydney, 2004.

PALMA, Juliana Bonacorsi de; ESTELLITA, Heloisa. Uma nova chance aos acordos de leniência da operação ‘lava jato’. Consultor Jurídico, 28 jun. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-28/uma-nova-chance-aos-acordos-de-leniencia-da-operacao-lava-jato/. Acesso em: 1 nov. 2024.

RUFINO, Victor. Elementos indispensáveis às leniências: o exemplo do CADE. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019.