Roteiro de Aula

Inovação sem limites ou limites para a inovação?

Os desafios da regulação de novas tecnologias

1. CONHECENDO O BÁSICO

As tecnologias, especialmente as digitais, estão por toda parte em nossas vidas, impactando a sociedade como um todo e atingindo diretamente mercados, negócios, governos e instituições.

Sem percebermos, vivemos em um contexto inundado pelas mais variadas tecnologias, desde as mais simples e baratas até as mais sofisticadas.

Muito provavelmente, ao ler este roteiro de aula, você tem em mãos ou próximo de si algum dispositivo eletrônico com câmera, capaz de ler o QR Code abaixo para acessar o texto do professor da Faculdade de Direito de Harvard Lawrence Lessig intitulado “Code is Law”. De forma intrigante e interessante, o autor explora como o código digital regula comportamentos na internet, comparando-o às leis tradicionais.

Aliás, esse é um excelente texto para discussão, mas que recomendo como leitura complementar ao final, ok?

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Descrição gerada automaticamente

Ainda que você seja avesso às tecnologias ou que, por qualquer outro motivo, não as tenha, em alguma medida, é afetado por elas: ao utilizar o bilhete digital para acessar a estação de metrô, ao registrar sua entrada no ponto eletrônico do trabalho, ao escolher o cartão de crédito como forma de pagamento ou simplesmente ao andar na rua e ser filmado pelas câmeras de trânsito.

Os avanços tecnológicos têm influenciado nossa comunicação, educação, trabalho e até mesmo nossa saúde.

E talvez você esteja se perguntando: qual a pertinência do tema com o Direito Administrativo? Em uma resposta breve, afirmo: tem tudo a ver! As tecnologias podem se relacionar com o Direito Administrativo sob várias perspectivas, transformando a atuação e os serviços da Administração Pública, por exemplo. Mas o que nos interessa nesta aula é debater e pensar a respeito do papel do Estado regulador frente às novas tecnologias.

Os desafios regulatórios trazidos pelas inovações às instituições estatais não são exclusividade do nosso tempo. No entanto, o que se percebe é que vivemos em uma realidade na qual as novas tecnologias, sobretudo as chamadas disruptivas, avançam em velocidade incompatível com os movimentos normativos.

Observa-se a existência de um “vácuo temporal” entre a popularização de uma determinada inovação tecnológica e sua regulação.

Essa dinâmica pode acontecer por diversas razões: (i) falta de conhecimento técnico sobre o funcionamento e as possibilidades de uso da nova tecnologia; (ii) velocidade com que a nova tecnologia surge e desaparece do mercado; (iii) existência de normas vigentes que são insuficientes para alcançar a aplicação da nova tecnologia.

Esses são alguns motivos que apontam para os desafios de se regular uma inovação disruptiva, mas não esgotam a complexidade da situação. Há outras causas implicadas. A própria criatividade do ser humano em elaborar insights, ideias e soluções torna improvável ter certeza sobre quais tecnologias serão criadas no futuro.

Pare e pense, por um instante, nas últimas notícias sobre alguma inovação que surgiu e que você ainda não conseguiu acompanhar. É tanta novidade e informação que, por vezes, precisamos selecionar as tecnologias que nos interessam para aprender e utilizar.

Tanto se fala em tecnologia disruptiva ou de ruptura. E o que seria isso? Eu explico.

Na década de 90, Clayton Christensen, que foi professor da Faculdade de Administração de Harvard, apresentou a Teoria da Inovação Disruptiva, explicando o motivo pelo qual empresas bem administradas podem fracassar diante de projetos de tecnologia. Para ele, essas empresas são excelentes no desenvolvimento de tecnologias incrementais, porém não focam nas tecnologias de ruptura, que, por sua vez, são responsáveis pela mudança de valor no mercado.

Segundo o autor, as inovações de ruptura, também chamadas de disruptivas, transformam uma tecnologia (produto ou serviço) custosa, complexa e de pouco acesso em algo simples e acessível, provocando uma quebra nos padrões e modelos já estabelecidos, criando assim um mercado.

Há muitos exemplos nesse sentido: o computador, o smartphone, os serviços de streaming, de armazenamento de dados em nuvem, de transporte individual por aplicativo e a inteligência artificial generativa.

Você consegue pensar em outros exemplos que fazem parte do seu dia a dia?

A grande questão que circunda o tema diz respeito aos parâmetros que serão escolhidos para auxiliar o regulador a ultrapassar os obstáculos da velocidade de avanço, da complexidade de funcionamento e dos impactos econômicos e sociais que as novas tecnologias ocasionam.

Assim, debateremos nesta aula sobre a complexidade que as inovações tecnológicas apresentam ao Direito da Regulação.

Por fim, uma breve, mas importante, observação a destacar: o termo “tecnologia” pode ser compreendido de forma ampla e genérica. Para os fins deste roteiro, entenderemos a expressão “novas tecnologias” como o conjunto de novas técnicas capazes de transformar a realidade ou o contexto em que se insere, ok?

Bem, agora que você já entendeu o objetivo desta aula e a contextualização do tema no Direito Administrativo, vamos avançar para a leitura e conexão das ideias?

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Antes de nos debruçarmos sobre os desafios da regulação de novas tecnologias, precisamos sedimentar alguns conceitos sobre o assunto para compreendermos melhor a matéria.

Nesse sentido, a primeira pergunta a se fazer é: afinal de contas, o que é regulação?

O advogado e professor Marçal Justen Filho apresenta, de forma didática, importantes aspectos sobre a regulação econômico-social.

Vejamos o trecho a seguir.

Tipos de atividade administrativa: a regulação econômico-social

Por Marçal Justen Filho
Curso de Direito Administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 511-515.

A regulação econômico-social consiste na atividade estatal de intervenção indireta sobre a conduta dos sujeitos públicos e privados, de modo permanente e sistemático, para implementar as políticas de governo e a realização dos direitos fundamentais.

1. REGULAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO: DISTINÇÕES

Regulação não se confunde com regulamentação.

1.1. Regulamentação

Na terminologia consagrada entre nós, a expressão “regulamentação” corresponde ao desempenho de função normativa infraordenada, pela qual se detalham as condições de aplicação de uma norma de cunho abstrato e geral, tal como dispõe o art. 84, IV, da Constituição.

1.2. Regulação

O conceito de regulação é muito mais amplo e qualitativamente distinto. Eventualmente, a regulação pode se traduzir em atos de regulamentação. O aprofundamento no conceito de regulação se fará adiante.

2. CARACTERÍSTICAS DA REGULAÇÃO ECONÔMICO-SOCIAL

A regulação econômico-social apresenta características que conduzem à identificação de função estatal própria e específica.

2.1. A multiplicidade de atuações abrangidas

A regulação econômico-social é um dos tipos de atividade estatal, que se traduz no desempenho tanto de função administrativa como legislativa, jurisdicional e de controle. É um equívoco imaginar que a regulação corresponde apenas ao exercício de atividade administrativa. 

Ademais disso, a regulação econômico-social compreende atuações provenientes das diversas órbitas federativas. 

[…]

2.4. A dimensão finalística da regulação

A regulação não é uma atividade dotada de fim em si mesmo, mas um instrumento para promover conscientemente os fins essenciais do Estado. A característica da racionalidade da regulação se revela também nessa necessária vinculação entre as providências adotadas e os fins políticos e os valores fundamentais buscados pelo Estado.

3. A REGULAÇÃO DAS ATIVIDADES ECONÔMICAS

A Constituição atribuiu ao Estado uma função regulatória.

3.1. A regra constitucional explícita e o conjunto das determinações

O art. 174 da CF/1988 determina que:

“Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercera, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.

Esse dispositivo se constitui num fundamento normativo relevante, mas não o único, para o Estado interferir sobre a exploração de recursos econômicos e não econômicos no âmbito público e privado. A função estatal de regulação decorre da exigência constitucional da promoção dos direitos fundamentais, que norteiam inclusive a atuação da iniciativa privada.

3.2. As peculiaridades da atuação regulatória

Sempre se reconheceram poderes de natureza regulatória ao Estado, uma vez que as características dos institutos jurídicos compreendem uma dimensão dessa ordem. Mas as expressões regulação e Estado regulador têm conteúdo muito específico. 

4. A REGULAÇÃO ECONÔMICO-SOCIAL

Na doutrina econômica, é usual apontar a regulação estatal como instrumento para suprir as deficiências do mercado. Essa visão foi sendo alterada ao influxo dos acontecimentos, especialmente na segunda metade do século XX. No entanto, pode-se dizer que essa alteração consistiu muito mais numa ampliação da dimensão da regulação do que numa revisão essencial das concepções iniciais.

4.1. A proposta da autorregulação do mercado

Algumas escolas econômicas afirmam que os mecanismos de mercado seriam aptos a produzir, por si sós e autonomamente, a realização dos fins de interesse coletivo. Ainda que cada agente econômico oriente sua atuação à obtenção da solução egoística mais satisfatória, o resultado conjunto seria a satisfação do bem comum. Sob esse ângulo, regulação consiste no oposto ao livre funcionamento do mercado.

Essa concepção de autorregulação espontânea do mercado somente pode ser interpretada como uma formulação teórica. Nunca se verificou, concretamente, em país algum. Mais precisamente, a intervenção estatal é condição de possibilidade da existência do mercado.

4.2. A regulação exclusivamente econômica – a primeira “onda regulatória”

Numa etapa inicial, a regulação se caracterizou como a intervenção estatal destinada exclusivamente a suprir as deficiências e as insuficiências do mercado.

A regulação estatal se torna necessária (e legítima) quando não há condições de funcionamento satisfatório (eficiente) do mercado, o que se passa especialmente nos casos de ausência de concorrência perfeita. O conjunto de normas destinadas a prevenir e a reprimir deficiências na concorrência é denominado de direito antitruste ou de direito de defesa da concorrência. No Brasil, a matéria está disciplinada especialmente pela Lei 12529/2011.

As deficiências de mercado envolvem (a) as hipóteses de deficiência na concorrência; (b) os chamados bens coletivos; (c) externalidades; (d) assimetrias de informação; e (e) desequilíbrio econômico. 

[…]

4.3. A regulação social – a segunda “onda regulatória”

Essas concepções foram objeto de intensa revisão, a propósito do que se poderia identificar como uma segunda onda intervencionista. Trata-se da regulação social, que assume outras propostas. Constatou-se que o mercado, ainda que em funcionamento perfeito, pode conduzir à não realização de certos fins de interesse comum. 

A realização de inúmeros outros fins de natureza sociopolítica também é buscada pela regulação, que não pode restringir-se a preocupações meramente econômicas. 

É necessário proteger o meio ambiente que, por exemplo, pode ser drasticamente afetado pela racionalidade econômica imediatista. 

A regulação também se orienta a garantir direitos de minorias e a promover outros valores políticos, sociais e culturais.

Bem, vimos então que há diferença entre “regulação” e “Estado regulador”. O correto entendimento sobre o assunto nos ajuda a definir de que estamos tratando.

Em síntese, a regulação refere-se ao conjunto de normas e diretrizes estabelecidas para organizar ou controlar atividades em uma sociedade, especialmente em setores de grande impacto social ou econômico, como energia, saúde, telecomunicações e transporte. Essas normas são criadas para promover o bem-estar público, proteger o consumidor, incentivar a concorrência justa e minimizar práticas prejudiciais. A regulação pode ser estatal, não estatal ou pelo mercado.

O Estado regulador refere-se a uma configuração específica do Estado, no qual ele se organiza para desempenhar ativamente o papel de regulador, disciplinando a atuação pública e privada. O Estado regulador pode criar agências reguladoras independentes, privatizar empresas estatais, terceirizar funções administrativas e regular a economia. Esse modelo ganha força principalmente em economias de mercado, onde o Estado se propõe a proteger o interesse público, corrigir falhas de mercado e promover a eficiência, sem a necessidade de possuir ou operar diretamente os serviços.

Em resumo, a regulação é a ação de normatizar e fiscalizar, enquanto o Estado regulador é a estrutura de governo que prioriza essa forma de intervenção para equilibrar interesses econômicos e sociais.

Com essas ideias em mente, pensemos agora em uma inovação que trouxe disrupção ao mercado, “abalando”, de certa forma, as estruturas do setor.

Quem não se lembra de quando a Uber chegou ao Brasil? Pouco antes da Copa do Mundo, na cidade do Rio de Janeiro, em 2014, a empresa começou a oferecer o serviço de transporte individual privado por meio de aplicativo.

O novo modelo de negócios revolucionou a forma como as pessoas se deslocavam nas cidades, mas também gerou intensas discussões sobre sua regulação.

Houve muitos debates e até mesmo manifestações contra a entrada da empresa no mercado brasileiro. O tema foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) em virtude de leis municipais que, à época, proibiam essa modalidade de transporte de passageiros.

Em 2019, o Plenário do STF fixou a tese de repercussão geral no Recurso Extraordinário (RE) 1054110, no qual o Tribunal julgou inconstitucional a proibição ou restrição, por meio de lei municipal, do transporte individual de passageiros por motoristas cadastrados em aplicativos. O tema também foi objeto de julgamento na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 449.

Vejamos:

STF, RE 1054110

Número Único: 2216901-06.2015.8.26.0000. Repercussão Geral – Tema 967

Decisão: O Tribunal, por maioria, fixou a seguinte tese de repercussão geral: “1. A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência; e 2. No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF/1988, art. 22, XI)”, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 09.05.2019.

Apesar de fazer parte da Política Nacional de Mobilidade Urbana desde 2012, o transporte individual privado só se tornou uma realidade no país após a chegada da Uber em 2014. Desde então, a empresa vem transformando a mobilidade urbana, impulsionando decisões judiciais e movimentos normativos sobre temas que envolvem o setor.

Nesse sentido, o STF decidirá novamente, em sede de repercussão geral (Tema 1291), no RE 1.446.336, sobre a (in)existência de vínculo empregatício entre motorista e plataforma.

Esse é apenas um exemplo de como as novas tecnologias surgem e impactam o mercado e a sociedade como um todo, trazendo desafios e diversas implicações ao Direito da Regulação.

Sobre a discussão dos desafios regulatórios, as professoras Clara Iglesias Keller e Patrícia Ferreira Baptista analisam os principais pontos, discorrendo sobre quando, por que e até onde regular as novas tecnologias.

Separei alguns trechos interessantes do artigo.

Por que, quando e como regular as novas tecnologias? Os desafios trazidos pelas inovações disruptivas

Por Patrícia Ferreira Baptista e Clara Iglesias Keller
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 273, p. 123-163, set/dez 2016.

1. As novas tecnologias e o direito

A velocidade dos avanços tecnológicos, especialmente os da tecnologia digital e de dados, tem posto às administrações públicas, estatais e supraestatais, os desafios de decidir quando, por que e até onde intervir e disciplinar essas inovações. 

[…]

Nesse sentido, o estudo da regulação da tecnologia seria voltado para como o direito e a regulação podem ou devem reagir diante dos contextos de mudança tecnológica, especialmente a partir da inovação. É dentro desse campo que tratamos dos desafios que inspiraram o presente trabalho, em que o Estado se vê provocado a dirimir os possíveis descompassos entre sua atuação preestabelecida e as novas formas de funcionamento de mercados e da vida em geral trazidas pela inovação.

Conforme mencionado anteriormente, esses descompassos têm reflexo em uma série de decisões sobre a intervenção estatal, sobre sua oportunidade, momento, forma e justificativa

[…]

O enfrentamento destes desafios regulatórios — de harmonização, de velocidade e de oportunidade — começa com a abordagem das justificativas que legitimariam a intervenção estatal em contextos novos de mercado.

Por que regular?

2. A regulação estatal (externa) das inovações tecnológicas

2.1. Por que regular?

Ao longo do tempo, o direito administrativo econômico registrou uma série de justificativas para a atuação regulatória do Estado em atividades econômicas. Os raciocínios mais comumente usados são aqueles reunidos sob a designação de falhas de mercado, em que a regulação se justifica diante da impossibilidade ou incompetência do sistema de livre mercado de produzir os comportamentos ou resultados desejáveis de acordo com o interesse público. As falhas de mercado mais comumente identificadas são os oligopólios e monopólios, as assimetrias de informação, as externalidades e os bens públicos. 

Como hoje amplamente admitido, a teoria das falhas de mercado não esgota as justificativas para a intervenção regulatória. Sua premissa lógica de que as alocações derivadas do próprio funcionamento do mercado seriam prioritárias é criticada por Prosser, para quem a ideia de que a regulação seria coadjuvante do livre funcionamento do mercado não é suficiente para explicar a gama de iniciativas regulatórias que costumam ser empreendidas pelos governos. Ultrapassada a ideia de regulação como remédio reservado estritamente ao mau funcionamento do mercado, é possível legitimar a intervenção regulatória com base em outras justificativas como a promoção de direitos fundamentais e de valores sociais e culturais; a inclusão de grupos minoritários e excluídos; a proteção de interesses intergeracionais; demandas redistributivas; e por fim, as falhas de escolha

[…]

2.2. Em que momento se deve decidir por regular uma nova tecnologia?

Reguladores confrontados com novos contextos tecnológicos precisam, em um primeiro momento, decidir sobre o tempo ideal de resposta estatal à disrupção. Qual seria o momento adequado para intervir em uma nova forma de realização de atividades já existentes, ou até em um novo mercado recém-surgido? Seria necessário um esforço imediato de conformação? Ou a espera por uma estabilização, como forma mais cautelosa de lidar com os impactos da inovação, se mostraria mais eficiente a longo prazo? Quais seriam as vantagens e desvantagens de cada uma dessas opções? 

Não há resposta fácil para esse que é um aspecto proeminente da intervenção estatal diante da inovação. Num primeiro momento, a primeira possibilidade aventada — esforço imediato de conformação — aparentemente implica riscos maiores e mais difíceis de serem revertidos. Primeiro, porque a atuação espontânea já se mostra equivocada diante da possibilidade de, a longo prazo, constatar-se que nenhuma intervenção era necessária. Responder imediatamente com uma nova regulação pode prejudicar o julgamento da opção regulatória de não agir, e assim resultar em conformações normativas desnecessárias e num considerável desperdício de recursos.

[…]

Além disso, justamente por incidir sobre este processo de desenvolvimento da tecnologia em si, uma regulação precoce pode inibir a inovação, tanto em relação ao aperfeiçoamento de elementos já existentes (inovação interna), quanto ao surgimento de tecnologias ainda mais inovadoras (inovação externa).

[…]

Nesse sentido, a opção por esperar, postergando a intervenção para um momento de maior estabilidade institucional, se apresenta como medida mais salutar. O que não significa que não traga, também, riscos relevantes para o resultado final. 

A primeira preocupação que se detecta é a medida desse tempo de espera pela intervenção. Conforme bem sintetizado por Cortez, agentes de Estado lidando com novas tecnologias correm o risco de paralysis by analysis (em tradução livre, “paralisia por análise”), que é a possibilidade de a espera pelo momento adequado de intervir acarretar inércia regulatória e consequente omissão. 

[…]

Conforme exposto por Bennett Moses, o problema do momento adequado de intervenção sobre a inovação se reflete no já mencionado dilema de Collingridge.  Conforme explicado (ver item 1.2, supra), o dilema se dá diante das opções por uma intervenção mais espontânea (quando ainda não há informação suficiente sobre aquela tecnologia) ou por agir em um estágio mais tardio, quando a tecnologia já está mais arraigada, estável e, possivelmente, menos propícia à intervenção externa.

[…]

2.3. Até onde os reguladores devem intervir quando as novas tecnologias transformam modelos de atividades e estruturas sociais?

Dizer até onde se deve regular dependerá, parece claro, de uma dada concepção política sobre o papel do Estado e, consequentemente, do direito.

[…]

Portanto, nos Estados democráticos de direito contemporâneos o problema que se põe é delimitar, a partir das premissas constitucionais, até onde os formuladores de políticas públicas e reguladores devem intervir quando as novas tecnologias transformem significativamente os modelos de negócios e as estruturas sociais existentes. Ou se, como aponta Lessig, regular uma nova tecnologia demanda uma escolha positiva de valores; que valores devem ser apontados como justificadores de uma intervenção estatal regulatória na matéria e até onde eles permitem que a regulação alcance?

Há aqui ao menos duas visões que podem ser contrapostas. Uma cautelosa, recomendando que, diante de inovações disruptivas, o regulador atue de forma comedida, limitando-se a garantir a segurança e as liberdades dos usuários. A regulação, na verdade, deve assumir um papel relevante no gerenciamento dos riscos à saúde e à segurança, embora devam ser rejeitadas interpretações mais radicais quanto ao conteúdo do princípio da precaução.

À postura cautelosa se opõe outra, mais ativa, e que justifica a intervenção regulatória em novas tecnologias igualmente com a finalidade de promover uma gama bastante ampla de objetivos e interesses sociais, que vão desde a proteção de minorias, do meio ambiente, até a cultura e da língua nacionais e a promoção do desenvolvimento.

Nesse contexto, o problema dos limites das intervenções regulatórias se aproxima bastante do que já foi exposto anteriormente, no item 2.1, acerca dos fundamentos para a intervenção regulatória.

[…]

2.4. Que regulação?

Uma última indagação a ser enfrentada, mas nem por isso menos relevante, diz com a natureza e os tipos de regulação de que se deve cogitar para disciplinar as novas tecnologias digitais disruptivas. 

Quanto à natureza, muito embora, à primeira vista, a matéria seja enxergada neste estudo particularmente sobre a ótica do direito público, não se pode ignorar que as questões referentes ao tratamento jurídico das novas tecnologias avançam igualmente para outros campos tradicionais do conhecimento jurídico esquematizado. 

Pertencem claramente ao direito público as discussões mais transcendentais referentes ao respeito às garantias constitucionais, como a privacidade e as liberdades de um modo geral.

[…]

Todavia, afora a definição dos domínios da dogmática jurídica envolvidos com a regulação de novas tecnologias, cabe discutir ainda sobre o(s) tipo(s) de regulação estatal que pode(m) ser adotado(s). Que desenho e ferramentas regulatórias escolher? Mais ou menos interventiva? Tradicional, do tipo comando e controle, ou se inclinando para modelos regulatórios fracos ou policêntricos? Deve o legislador almejar uma normatização ampla e detalhada de cada inovação e, com isso, teoricamente, aumentar a segurança da sociedade? Ou, ao contrário, optar por uma proposta normativa flexível, de aspecto mais principiológico, permitindo uma capacidade maior de adaptação das normas diante de outras inovações, o que, como contrapartida, aumenta a incerteza quanto à sua incidência? 

As perguntas, como se vê, são muitas, e grandes as divergências na literatura acerca do tema.

A partir dessa leitura, percebe-se que muitos são os desafios impostos pelas inovações disruptivas ao Estado regulador.

Como abordado pelas autoras, a tarefa não é fácil e demanda um desenho regulatório bem estudado e planejado.

Com o intuito de equilibrar a inovação com a segurança jurídica, em 2020 implementou-se no Brasil o chamado “sandbox regulatório”, permitindo que tecnologias emergentes, especialmente financeiras, fossem testadas antes de receberem uma regulamentação definitiva.

Já ouviu falar dessa expressão? O PIX (pagamento instantâneo brasileiro), amplamente utilizado nos dias de hoje, passou por esse “modelo experimental”.

O sandbox regulatório nada mais é do que um ambiente controlado de testes que permite que empresas e organizações operem com regras diferentes das demais por um período determinado.

Esse ambiente regulatório flexível proporcionou às fintechs a oportunidade de experimentarem novas soluções financeiras.
Em artigo publicado no Portal Jota, Luiza Leite e Pedro Gonet Branco analisam o tema, questionando se o sandbox regulatório seria uma carta curinga do experimentalismo.

Sandbox regulatória: uma carta curinga do experimentalismo?

Tratar a sandbox como um conceito demasiado aberto acaba por enfraquecê-la

Por Luiza Leite e Pedro Gonet Branco
Jota, 13 de julho de 2024

No Brasil, o conceito da sandbox regulatória foi abordado pelo Poder Público pela primeira vez em junho de 2019, quando Ministério da Economia, Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e Superintendência de Seguros Privados (Susep) declararam que adotariam esse modelo regulatório – como de fato o fizeram em 2020.

Com o advento da Lei Complementar 182/2021, que instituiu o Marco Legal das Startups, o legislador federal, pela primeira vez, autorizou expressamente que órgãos e entidades da administração pública com competência de regulamentação setorial afastassem a incidência de normas sob sua competência em relação aos seus agentes regulados, o que denominou de ambiente regulatório experimental (ou sandbox regulatória).

Da análise das sandboxes já desenvolvidas no país, é possível observar algumas premissas inicialmente utilizadas para o desenvolvimento do instituto, como:

  • (i) a formalização por meio de autorização precária, com duração limitada e conferida individualmente a cada participante;
  • (ii) a seleção dos participantes para um determinado ciclo ou período de testes através de processo seletivo que estabeleça os termos e condições da Sandbox;
  • (iii) possibilidade de conceção de dispensas regulatórias aos participantes, para que possam desenvolver atividades previamente reguladas sem a necessidade de cumprimento total da regulamentação vigente;
  • (iv) necessidade do estabelecimento de salvaguardas pelo(s) regulador(es), para que sejam mitigados os riscos derivados da atividade inovadora;
  • (v) monitoramento das empresas dentro do ambiente de testes.

Esse desenho foi o utilizado por agências como, por exemplo, CVM, Banco Central e Susep. Em todas, há boas expectativas – algumas já confirmadas – de que a ferramenta contribua para o aperfeiçoamento dos respectivos setores regulados, favorecendo tanto as empresas que se dedicam à inovação, quanto os cidadãos que dela se beneficiam.

Como toda nova ferramenta, porém, a sandbox regulatória tem pontos sensíveis que demandam especial atenção do regulador para evitar o desvirtuamento do instrumento. Entre eles, pode-se destacar possível falta de transparência e de diálogo social, os riscos de instabilidade do sistema e de captura do regulador, bem como eventual incapacidade de a agência reguladora monitorar com eficácia todas as inovações testadas.  

Além desses desafios potenciais inerentes à sandbox regulatória, outra importante questão que vem se destacando, desde a introdução do instituto no Brasil, é como é possível realizar a ampliação do seu uso para outros processos além do regulatório.

Isso pois municípios têm adotado essa ferramenta como um meio de experimentação, criando hubs de inovação para o desenvolvimento e teste de tecnologias locais. Apesar da semelhança na nomenclatura, é essencial diferenciar as abordagens adotadas por municípios e autarquias, devido aos distintos escopos de atuação.

A sandbox regulatória, igualmente, foi adaptada como ferramenta de experimentação para contratos e parcerias público-privadas, visando modernizar as concessões e fomentar a inovação na prestação de serviços e execução de obras. Além disso, nas concessões, ela tem sido utilizada para ajustar Sistemas de Mensuração de Disponibilidade e Desempenho (SMDD) em novos setores concessionários, incluindo projetos de infraestrutura social e ambiental. Essa abordagem visa calibrar os SMDD em contratos complexos, com o intuito de evitar desistências de potenciais licitantes e adaptar indicadores de desempenho e critérios de disponibilidade de vagas. 

Nesse cenário, é fundamental reconhecer que a sandbox regulatória é uma aliada importante da inovação. Entretanto, considerando que as decisões administrativas muitas vezes desencadeiam efeitos de natureza multilateral e multipolar, resultando em um paradoxo no qual cada solução para um problema potencialmente gera novos desafios, é de se questionar se ela é a técnica mais adequada a ser utilizada em todos os casos que se galga o experimentalismo regulatório.

Em apertada síntese, o experimentalismo é uma abordagem de governança – inspirada nos princípios do filósofo americano John Dewey – que sustenta que as políticas públicas devem ser tratadas como experimentos sujeitos a constante observação e revisão com base nas consequências observadas. As estratégias regulatórias em determinadas circunstâncias, portanto, não devem ser fixas, mas flexíveis e adaptáveis conforme seus resultados e impactos. 

Ao invés de definir metas específicas e rígidas, os regimes experimentalistas adotam objetivos amplos e flexíveis. Para isso, concede-se ampla liberdade aos agentes envolvidos para perseguir tais objetivos da maneira que julgarem adequada, permitindo soluções mais adaptadas às realidades locais, desde que acompanhados por mecanismos supervisão e revisão.

A sandbox, hoje, tornou-se o grande símbolo do experimentalismo regulatório, mas não é a única ferramenta existente na estrutura jurídico-econômica de um país para incentivar o desenvolvimento de produtos, serviços e modelos de negócios inovadores.

[…]

Dessa forma, é necessária a reflexão sobre o melhor uso dessa técnica e de sua nomenclatura, pois tratar a sandbox como um conceito demasiado aberto, que a transforme em uma carta curinga – um sinônimo para qualquer estratégia regulatória destinada a promover a inovação –, acaba por enfraquecê-la.

O grande desafio, portanto, é garantir que sua implementação ocorra de forma coordenada e legal, preservando as características que a fizeram tão importante mecanismo de estímulo a inovação e ao experimentalismo no Brasil.

Por todo o exposto até aqui, agora temos “bagagem” necessária para debater o tema com mais propriedade.

Conforme Egon Bockmann Moreira expressou em artigo publicado na Gazeta do Povo: “mutações estruturais fazem parte do nosso cotidiano. Integram a nossa vida, do nascimento à morte. Por isso, precisamos nos sentar à mesa com elas e construir amigavelmente o Direito Administrativo do futuro”.

Que tal “sentarmos à mesa” para dialogar? 

3. DEBATENDO

Após concluírem as leituras mencionadas, os(as) alunos(as) estarão preparados(as) para dialogar em sala de aula, com a mediação e orientação do(a) professor(a), sobre temas relacionados à regulação de novas tecnologias. 

Sugere-se iniciar com as seguintes perguntas a fim de verificar a compreensão da leitura e para fixação do conhecimento:

  1. Como o surgimento constante de tecnologias disruptivas impacta as relações sociais e profissionais? Você acha que a regulação atual tem acompanhado essas mudanças? Dê exemplos.
  2. A chegada de tecnologias digitais, como a Uber, trouxe debates regulatórios em diversas cidades e países. Em sua opinião, esse tipo de tecnologia deveria ser regulado principalmente para proteger o consumidor, os trabalhadores ou o mercado em geral?
  3. Em seu texto, Marçal Justen Filho afirma que “mais precisamente, a intervenção estatal é condição de possibilidade da existência do mercado”. O que você pensa sobre isso? Concorda com essa visão? 
  4. O chamado “dilema de Collingridge“, referenciado no texto de Patrícia Ferreira Baptista e Clara Iglesias Keller, discute o momento ideal para a intervenção regulatória, seja antes ou depois da consolidação da tecnologia. Qual você acha que seria o momento certo para intervir, e quais os riscos de cada escolha?
  5. O princípio da precaução sugere que se deve regular para prevenir potenciais riscos, mas isso pode também restringir a inovação. Em sua opinião, como equilibrar a proteção ao público e o incentivo à inovação?
  6. O momento da intervenção estatal interfere no tipo (modelo) de regulação? Como?
  7. Quais seriam as principais vantagens e desvantagens de uma regulação com abordagem mais permissiva para uma determinada inovação tecnológica?
  8. Em sua opinião, até que ponto o Estado deve intervir para regular tecnologias que afetam diretamente direitos fundamentais, como a privacidade e a liberdade de expressão? Que riscos essa intervenção pode trazer?

A seguir, ou caso o(a) professor(a) considere que a leitura já foi bem assimilada, seguem algumas perguntas que podem aprofundar o debate com base nas leituras realizadas:

  1. Ao tratar sobre a dimensão finalística da regulação, Marçal Justen Filho afirma que “a regulação não é uma atividade dotada de fim em si mesmo, mas um instrumento para promover conscientemente os fins essenciais do Estado”. Você concorda com essa visão? Por quê?
  2. O que você acha que deve prevalecer ao definir os valores que guiam a regulação: segurança, liberdade de mercado, inovação ou outro aspecto? Como esses valores podem entrar em conflito?
  3. Qual é o papel do Estado na regulação de mercados digitais? A autorregulação seria uma alternativa viável ou aumentaria os riscos para a sociedade? Existem exemplos em que a autorregulação já se mostrou eficiente?
  4. Quando novas tecnologias geram grandes mudanças na sociedade, qual é a responsabilidade do Estado em relação aos possíveis impactos sociais e econômicos? Qual seria um exemplo relevante desse tipo de responsabilidade?
  5. Como o Estado pode ou deve agir diante de inovações que causam “externalidades negativas”, como desemprego ou desigualdade digital? Existe um papel para a regulação nessas questões sociais?
  6. O “vácuo temporal” entre a criação de uma tecnologia e sua regulação é inevitável. Como o Estado pode minimizar os riscos associados a essas lacunas legislativas?
  7. A decisão do STF sobre o transporte individual por aplicativos trouxe implicações legais e econômicas. Como decisões judiciais podem influenciar a inovação e a forma como tecnologias são aceitas na sociedade?
  8. Conforme visto anteriormente, o modelo de sandbox regulatório permite um ambiente mais flexível para testar inovações, especialmente, do mercado financeiro. Esse modelo deveria ser expandido para outras áreas? Quais benefícios e riscos essa expansão pode trazer?

4. APROFUNDANDO

Como leitura complementar, sugiro os seguintes textos:

BLACK, Julia. Decentring regulation: understanding the role of regulation and self-regulation in a ‘post- regulatory’ world. Current Legal Problems, Volume 54, Issue 1, 2001, p. 103–146. 

FEIGELSON, Bruno; SILVA, Luiza Caldeira Leite. Regulação 4.0: sandbox regulatório e o futuro da regulação. In: BECKER, Daniel; FERRARI, Isabela (Cood.). Regulação 4.0: novas tecnologias sob a perspectiva regulatória. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 75-87.

GUERRA, Sérgio. Regulação estatal e novas tecnologias. Int. Públ., Belo Horizonte, ano 18, n. 100, p. 201-214, nov/dez 2016. 

LESSIG, Lawrence. Code Is Law – On liberty in cyberspace. Harvard Magazine, 2000. Disponível em: https://www.harvardmagazine.com/2000/01/code-is-law-html. Acesso em: 01 de nov. de 2024.