Roteiro de Aula

Há uma crise de legitimidade das políticas públicas?

É o fim do Poder Executivo e da discricionariedade do gestor público?

1. CONHECENDO O BÁSICO

As democracias ocidentais têm passado por um momento de profunda crise nos últimos anos. Uma combinação de fatores sociais, políticos e econômicos tem desafiado as estruturas tradicionais de governo, questionando a própria legitimidade das instituições públicas.

A multiplicidade de interesses e demandas sociais surge em um cenário em que a sociedade se tornou mais plural e diversa do que nunca. Grupos historicamente marginalizados ganharam voz, novos movimentos sociais surgiram e temas globais como as mudanças climáticas e a inteligência artificial passaram a ocupar o centro das discussões políticas. Tudo isso coloca o Estado em uma posição complicada: como responder a tantas demandas e garantir a implementação de políticas públicas?

Diante desse contexto, o Direito Administrativo, que historicamente se preocupava em disciplinar a organização e a estrutura do Estado, precisou se adaptar. Se antes o foco era garantir a conformidade dos atos administrativos com normas predefinidas, hoje a preocupação recai sobre a função do Estado: o que ele deve fazer? Que bens e serviços ele deve entregar? A quem? Quanto custa? O que deve prevalecer: justiça ou eficiência?

Se até a metade do século XX o foco era garantir a legalidade estrita dos atos administrativos e a organização dos órgãos estatais, a partir de então, a ênfase passou a ser a finalidade do Estado e a entrega de serviços públicos. Você vai lembrar das leituras de Norberto Bobbio no seu primeiro ano de faculdade, tenho certeza.

O grande desafio é que, historicamente, o lugar ideal para a discussão dessas questões era o Poder Executivo e o Poder Legislativo, por meio do debate democrático e a partir de um filtro eleitoral. Passada a validação pela população nas urnas, o grupo político vencedor detinha a legitimidade para implementar suas políticas por meio da burocracia estatal.

No entanto, essa arena de decisões vem mudando. Cada vez mais, o Judiciário tem sido acionado para resolver disputas que, em princípio, deveriam ser solucionadas no âmbito da gestão pública. O alto nível de judicialização das políticas públicas reflete, por um lado, uma desconfiança crescente na capacidade dos gestores públicos de tomarem decisões e, por outro, o ativismo judicial, que se tornou um elemento constante na realidade brasileira.

Com isso, o próprio papel do Estado, suas competências e a discricionariedade técnica dos gestores públicos entram em xeque. Se a decisão de priorizar uma obra de infraestrutura em detrimento de outra, por exemplo, é tomada pelo Executivo e logo contestada no Judiciário, quem realmente governa? Até que ponto o Judiciário deve intervir nas escolhas administrativas? E, se a cada decisão do gestor corresponde uma contestação judicial, o gestor ainda possui liberdade para tomar decisões?

Esses questionamentos abalam princípios clássicos do Direito Administrativo, como a presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos. Afinal, se tudo pode ser questionado, ainda há razão de existir para o gestor brasileiro?

A discricionariedade técnica, que era vista como uma reserva de expertise dos administradores, parece perder força frente a uma judicialização exacerbada, em que o Judiciário, muitas vezes sem conhecimento técnico específico e as ferramentas analíticas adequadas, redefine as políticas públicas que foram definidas pelo Executivo.

Essa realidade nos leva a perguntar: o Direito Administrativo atual reflete a realidade? Se o Judiciário se torna o protagonista na implementação de políticas públicas, estaríamos diante de um novo modelo de governança, onde a função do Estado é discutida e decidida fora das arenas políticas e técnicas tradicionais? O que isso nos diz sobre o futuro do Direito Administrativo e, sobretudo, sobre a legitimidade das nossas democracias?

São questões que merecem uma reflexão profunda e contínua, pois impactam diretamente o futuro das políticas públicas, a própria noção de Estado e o bem-estar das pessoas.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Nesta parte da aula, exploraremos estudos, opiniões de especialistas e precedentes judiciais e administrativos sobre o deslocamento do eixo central do debate sobre políticas públicas.

Recentemente, diversas pesquisas têm se dedicado a explorar a funcionalidade das políticas públicas em um contexto de crescente judicialização e enfraquecimento dos mecanismos de decisão dos gestores públicos. O receio de anulação de suas decisões e, mais que isso, de responsabilizações indevidas muitas vezes leva à chamada “paralisia administrativa”, onde os gestores evitam tomar decisões ousadas ou inovadoras para não incorrer em penalidades futuras.

Uma primeira referência importante para entender esse fenômeno é o episódio “Quem tem medo das políticas públicas?”, do Podcast “Café da Manhã” da Folha. O episódio traz uma análise aprofundada do estudo desenvolvido pelas professoras Gabriela Lotta e Vera Monteiro, da FGV de São Paulo, que investigam como o receio de controle excessivo e a atuação disfuncional dos órgãos de fiscalização têm gerado aversão ao risco e prejudicado a implementação de políticas públicas no Brasil. Recomenda-se aos alunos que ouçam o podcast para uma compreensão mais ampla dos desafios enfrentados pelo gestor público no cenário atual. Abaixo, segue a descrição do episódio:

Quem tem medo das políticas públicas?

Podcast Café da Manhã, Folha, 23/8/2024

“Apagão das canetas” é uma metáfora conhecida no funcionalismo público e por quem estuda a área. A expressão diz respeito ao atraso na implementação de políticas públicas por causa de um medo dos gestores de serem responsabilizados indevidamente por decisões que tomam.

Uma pesquisa divulgada na última sexta-feira (16), encomendada pela Fundação Tide Setúbal, mostra que o receio de uma atuação disfuncional de órgãos como tribunais de contas e Ministério Público, nas diferentes instâncias, têm gerado problemas, como aversão ao risco e à inovação, paralisia da administração e piora na qualidade das políticas, que por vezes são tiradas do papel de forma incompleta. Os órgãos de controle atuam para evitar e punir desvios e irregularidades, mas servidores públicos entrevistados no estudo destacam uma politização dessa atuação e uma falta de conhecimento técnico dos agentes. (…) 

            A Reforma Constitucional do Judiciário de 2004 e a aprovação do Código de Processo Civil de 2015 trouxeram mudanças significativas no papel do Judiciário em relação ao controle das políticas públicas. Essas alterações legais reforçaram o sistema de precedentes e deram mais poder normativo às decisões dos Tribunais Superiores.

Desde então, julgamentos em controle concentrado de constitucionalidade, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) e as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs), assim como as decisões em sede de repercussão geral e os julgamentos repetitivos, passaram a ter uma força normativa que muitas vezes supera a própria legislação ordinária. Com isso, o Judiciário assume um papel quase legislativo, definindo diretrizes que vinculam todos os demais órgãos e esferas do Poder Público.

Esse protagonismo dos Tribunais Superiores gerou um ambiente em que os gestores públicos precisam não apenas observar as leis, mas também conformar suas decisões e políticas às orientações traçadas pelo Judiciário. A segurança jurídica que deveria ser proporcionada pelo ordenamento legal é, em muitos casos, redimensionada pela necessidade de atender a diretrizes criadas a partir de julgados, aplicáveis de forma ampla e abstrata.

A partir dessa realidade, surgem críticas sobre a adequação da criação de teses gerais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a partir de casos concretos, pois muitas vezes tais teses são aplicadas a situações que extrapolam o contexto do litígio originário. O resultado é um aumento da judicialização de decisões administrativas e uma maior imprevisibilidade na implementação de políticas públicas.

Em uma coluna de opinião escrita com o Professor Carlos Ari Sundfeld, abordamos essa questão e a inadequação de tal prática pelo STF. A partir de um único caso concreto, o Tribunal cria normas gerais e abstratas que acabam repercutindo sobre um número indefinido de situações passadas e futuras, muitas das quais não têm as mesmas especificidades do caso original.

Essa abordagem faz com que o Supremo, na prática, “legisle” ao interpretar a Constituição, o que pode gerar um descompasso com a dinâmica administrativa e criar insegurança para os gestores públicos. A lógica decisória do STF, ao assumir um papel normativo tão amplo, muitas vezes se revela imprópria para lidar com a diversidade de situações que ocorrem no dia a dia da administração pública, dificultando a adaptação e a implementação de políticas eficazes por parte do Poder Executivo.

STF limita tutela coletiva de direitos

Supremo em Pauta, Estadão, 30/10/2014

 Por Carlos Ari Sundfeld e André Luís M. Freire

A jurisdição constitucional brasileira mudou bastante nas últimas décadas. Uma novidade veio da Emenda Constitucional 45, de 2004, que criou a repercussão geral. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal, quando julga um caso – fazendo o chamado controle difuso de constitucionalidade – acaba por criar uma orientação geral e abstrata. É como se ele “legislasse” a partir de um processo concreto. Essa orientação será depois estendida para casos semelhantes, que ficam parados na instância inferior aguardando o que dirá o STF.

Daí o amplo interesse em conhecer e discutir as decisões do tribunal, mesmo em processos que parecem menores. Olhando para eles, descobrimos quais “leis” o tribunal anda criando, e como as cria. No fundo, esta pergunta interessa a todo o país e não só aos juristas: será que o método de fabricação das decisões do STF é melhor que o das salsichas e leis do Congresso Nacional? (…)

A decisão nos permite discutir também o método usado para selecionar o caso que se presta a servir como paradigma para efeitos de repercussão geral. A lógica decisória adotada para apreciar um recurso pode ser boa para o conflito em específico, mas imprópria se a decisão vai servir como norma geral para casos futuros, não tão equiparáveis ao paradigma. (…)

Bem verdade que, segundo o art. 543­B, §1º, do Código de Processo Civil, cabe ao tribunal de origem selecionar a lide paradigmática que será enviada ao Supremo. Mas, para além da apreciação da existência ou não de repercussão geral, há um segundo filtro a ser realizado pelo próprio Supremo antes da deliberação de mérito, filtro este quanto à potencialidade de, sem distorções interpretativas, aplicar o caso paradigma a conflitos outros.

Não é nada prudente julgar uma repercussão geral, fazendo assim uma “lei” sobre um importante instrumento para tutela de direitos, sem refletir de modo explícito sobre o impacto do julgamento na substituição processual por entidade associativa nas variadas situações que podem aparecer. A própria Corte reconheceu a impropriedade do caso para elucidação de conceitos importantes na disciplina processual. Oliver Holmes, observando a common law do século XIX, já apontava que a normatização com base em litígios excepcionalmente sensíveis não é meio adequado para criar fórmulas gerais (“hard cases make bad law”). Com a abstrativização do controle difuso, as consequências da seleção ruim de paradigma podem ser tão nefastas quanto a má decisão de mérito. O desafio do sistema de repercussão geral não está apenas na melhor decisão, mas também na melhor escolha do recurso paradigma. Se a Corte é tão avessa a atalhos como argumenta ser, é prudente que aperfeiçoe o sistema de escolha dos recursos representativos e evidencie a quem interessa e qual o alcance de sua lógica decisória.

Um debate controverso e atualíssimo no cenário jurídico internacional foi a recente superação da “Chevron Doctrine” pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Criada em 1984 a partir do caso Chevron U.S.A., Inc. v. Natural Resources Defense Council, Inc., a doutrina estabelecia que, em casos de leis ambíguas, os tribunais deveriam ter deferência à interpretação dada pelas agências reguladoras, desde que esta fosse razoável. A “Chevron Doctrine” conferia, assim, maior autonomia aos órgãos do Poder Executivo, permitindo que suas decisões técnicas prevalecessem sobre as interpretações judiciais, ao reconhecer a expertise dessas agências na aplicação das leis.

Em recente matéria, João Ozorio de Melo comentou as mudanças trazidas por dois precedentes recentes da Suprema Corte dos EUA. Nessas decisões, a Corte afastou a deferência dada às agências e reafirmou que os tribunais judiciais podem se sobrepor às decisões dos administradores públicos na interpretação e aplicação das leis. Com isso, a Suprema Corte restringiu a autonomia dos órgãos governamentais e devolveu ao Judiciário o papel de última palavra sobre o alcance das normas.

Suprema Corte dos EUA transfere poderes de órgãos públicos para o Judiciário

Portal Consultor Jurídico, 29/6/2024

Por João Ozorio de Melo

Em duas decisões separadas, a Suprema Corte retirou poderes dos órgãos governamentais dos EUA e os transferiu para o Judiciário. As decisões, ambas por 6 votos dos ministros conservadores da corte contra 3 das ministras liberais, satisfazem os interesses de republicanos-conservadores e de algumas empresas que, basicamente, querem “cortar as asas” dos órgãos governamentais.

Em Loper Bright Enterprises v. Raimondo, a Suprema Corte revogou o precedente de 40 anos que criou a “Doutrina Chevron”. O precedente, chamado de “Chevron deference”, estabeleceu que os juízes federais devem acatar a interpretação (ou a regulamentação), pelos órgãos governamentais, de leis que são ambíguas ou omissas – desde que a interpretação seja razoável. Em outras palavras, dar “deferência” aos atos de tais órgãos.

Em SEC v. Jarkesy, a Suprema Corte decidiu que não cabe aos “juízes de Direito Administrativo” da Comissão de Valores Mobiliários (SEC), que atuam dentro da SEC,  julgar casos de fraudes no mercado financeiro e aplicar multas – casos que foram processados pela Divisão de Execução da própria SEC.

No caso da “Doutrina Chevron”, o voto vencedor, relatado pelo presidente da corte, ministro John Roberts, declara:

“A Lei de Procedimento Administrativo requer que as cortes exerçam seu julgamento independente, ao decidir se um órgão governamental agiu dentro de sua autoridade legal e as cortes não podem deferir a interpretação da lei para um órgão, simplesmente porque a lei é ambígua. Chevron é revogado”.

Roberts argumentou ainda: “A lei requer que o juiz ignore, não que siga, a interpretação a que chegaria se exercitasse seu julgamento independente, como requerido pela Lei de Procedimento Administrativo. Mas isso é um equívoco, porque os órgãos governamentais não têm competência especial para resolver ambiguidades da lei. As cortes têm”.

O voto vencido, escrito pela ministra Elena Kagan, afirma que a decisão da maioria “é mais um exemplo da atitude da corte de reverter a autoridade dos órgãos governamentais, que lhe foi concedida pelo Congresso.

“O Congresso sabe que não pode redigir leis regulamentares perfeitamente completas. Sabe que essas leis conterão inevitavelmente ambiguidades que algum outro ator terá de resolver e lacunas que algum outro ator terá de preencher. E normalmente preferiria que esse ator fosse o órgão governamental responsável, não um tribunal”. Para a ministra, a decisão da corte irá criar um distúrbio de larga escala no judiciário, ao retirar de cientistas e especialistas, contratados pelos órgãos públicos, a tarefa de interpretar ou regulamentar leis ambíguas e passá-la para juízes que não têm expertise para executá-la. “A maioria está desdenhando o conceito de restrição judicial, para buscar maior poder”, ela escreveu.

Pouco mais de três meses após a publicação desta matéria, João Ozorio de Melo publicou novamente outro texto abordando os impactos negativos dessas decisões da Suprema Corte nos órgãos administrativos dos Estados Unidos. Essa mudança tem gerado forte repercussão, uma vez que aumenta a possibilidade de contestação judicial de decisões técnicas, retirando das agências parte da sua capacidade de regular e implementar políticas públicas de forma independente.

Decisão da Suprema Corte está fazendo um estrago no poder regulatório do governo dos EUA

Portal Consultor Jurídico, 2/10/2024

Por João Ozorio de Melo

Na decisão de 28 de junho da Suprema Corte dos Estados Unidos que revogou o precedente Chevron Deference, a ministra Elena Kagan previu, em seu voto dissidente, que haveria “uma ruptura em grande escala” no poder regulatório do governo. (…) Pouco mais de três meses depois, a previsão da magistrada se confirmou: empresas e outras organizações moveram 110 ações em que alegam que órgãos federais excederam a autoridade que lhes foi conferida pelo Congresso.

E, de acordo com a decisão em Loper Bright Enterprises v. Raimondo (referida como Loper Bright), seus regulamentos devem ser revogados.

De um modo geral, juízes federais de primeiro e segundo graus têm concordado com esse argumento — e vêm ajudando essas organizações a se livrar de regras federais de que não gostam —, tudo em nome da extinção da Doutrina Chevron, em uma decisão que trocou a expertise de técnicos e cientistas dos órgãos públicos pela expertise jurídica dos juízes. Entre as ações que tramitam nas cortes, há pedidos de revogação de regulamentos que tratam da poluição do ar e da água; da emissão de gases de efeito estufa; da mudança do clima; da discriminação em tratamento da saúde; da segurança alimentar e de medicamentos; do controle da compra de armas; do aborto; do pagamento de horas extras; de taxas “escondidas” das companhias aéreas; e da honestidade do mercado financeiro. (…)

O tema da interferência judicial nas decisões administrativas é particularmente relevante para os gestores públicos no Brasil, especialmente para as agências reguladoras. Esses órgãos, que possuem um corpo técnico altamente qualificado, têm investido na construção de processos regulatórios robustos e sofisticados. Ademais, a atuação das agências é pautada por análises multidisciplinares que englobam aspectos econômicos, contábeis, de engenharia, saúde pública e outros campos especializados, buscando equilibrar as diversas dimensões de impacto de suas decisões.

Recentemente, houve reconhecimento da necessidade de deferência às decisões técnico-administrativas das agências. Em um importante precedente, no Recurso Extraordinário 1.083.955 de relatoria do Ministro Luiz Fux, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a aplicação da teoria de deferência técnico-administrativa, em decisão abordada na Aula 25 do curso “Direito Administrativo em Ação” (“Quanto controlar? Deferências e limitações ao controle”). Esse entendimento implica que o Judiciário deve ter cautela e evitar adentrar no mérito de decisões técnicas adotadas pelos órgãos reguladores.

No entanto, apesar desse avanço no reconhecimento teórico da deferência, a prática administrativa das agências reguladoras no Brasil continua marcada por frequentes contestações judiciais e reversões de suas decisões por juízes de direito. Isso gera um cenário de insegurança jurídica para gestores públicos e para as próprias agências, que muitas vezes veem suas decisões questionadas e invalidadas em um processo que, paradoxalmente, fragiliza a regulação e compromete a implementação de políticas públicas que foram minuciosamente elaboradas para atender aos interesses da sociedade de forma técnica e equilibrada.

Um caso recente ilustra bem a complexidade e os desafios da submissão da tomada de decisão administrativa ao controle no Brasil, envolvendo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). O conflito gira em torno da cobrança de preço público pelos operadores portuários que possuem acesso direto ao cais (“terminais molhados”) para a prestação do serviço de segregação e entrega de contêineres (SSE ou também chamado de THC2) aos terminais alfandegados situados na retaguarda dos portos e que não possuem acesso ao cais (“terminais secos”).

Em 2005, o Cade condenou os terminais molhados no Porto de Santos por infração à ordem econômica, ao considerar que a cobrança prejudicava a concorrência. O órgão entendeu que os terminais molhados, por deterem controle sobre a infraestrutura de acesso e movimentação de contêineres, estavam em posição privilegiada e abusavam desse poder ao cobrar uma taxa dos terminais secos, seus concorrentes diretos no mercado de armazenagem.

A Antaq, por sua vez, teve uma evolução de entendimento ao longo do tempo. Após algumas oscilações, passou a considerar que a prestação desse serviço por parte dos terminais molhados implicava custos operacionais que deveriam ser remunerados para evitar o enriquecimento sem causa.

Diante do impasse, Antaq e Cade firmaram um memorando de entendimentos, estabelecendo que a cobrança em si não era necessariamente anticoncorrencial, mas que a abusividade do valor deveria ser avaliada caso a caso, mediante colaboração entre a agência reguladora e a autoridade concorrencial. Esse consenso visava harmonizar a regulação do setor portuário com a promoção de um ambiente de concorrência saudável, respeitando as especificidades técnicas e econômicas de cada operação.

Apesar do acordo entre Antaq e Cade, a questão foi levada ao Tribunal de Contas da União (TCU) por meio de uma denúncia anônima. Em um processo no qual apenas a Antaq foi ouvida, o TCU proferiu um juízo de mérito tanto regulatório quanto concorrencial, determinando que a cobrança era ilegal por sua natureza anticoncorrencial e que o regulamento da Antaq que disciplinava a matéria deveria ser revogado.

Acórdão nº 1.448/2022-Plenário

Relator Ministro Vital do Rego, julgado em 22/06/2022

ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, ante as razões exposta pelo relator, em: (…)

9.1.2. no mérito, considerar procedente a denúncia do TC Processo 015.453/2020-0, em face do desvio de finalidade do ato de expedição da Resolução Antaq 72/2022, normativo que permite a cobrança da taxa de serviço de segregação e entrega dos recintos alfandegários independentes pelos terminais portuários, praticado com um fim diverso do previsto no artigo 20, inciso II, alínea “b” e art. 27, inciso IV, da Lei 10.233/2001 e em afronta ao artigo 36, incisos I e IV da Lei 12.529/2011 e ao artigo 4º, inciso I, da Lei 13.847/2019; (…) 9.3. determinar à Antaq que, no prazo de 30 (trinta) dias, anule todos os dispositivos da Resolução 72/2022 que dizem respeito à possibilidade de cobrança do serviço de segregação e entrega de contêiner (SSE) em face do desvio de finalidade consubstanciado na afronta ao que estabelece o artigo 36, incisos I e IV da Lei 12.529/2011, artigo 4º, inciso I, da Lei 13.847/2019, bem como o artigo 20, inciso II, alínea “b” e artigo 27, inciso IV, da Lei 10.233/2001; (…)

Em um litígio judicial envolvendo um terminal molhado e um terminal seco sobre a legalidade da cobrança da taxa pelo serviço de segregação e entrega de contêineres, o processo se arrastou por anos até chegar às instâncias superiores. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao apreciar o caso, adentrou no mérito regulatório e concorrencial e adotou um posicionamento alinhado ao entendimento do TCU, considerando que a cobrança, em abstrato e por si só, era abusiva sob a ótica da defesa da concorrência.

O STJ entendeu que o valor cobrado pelos terminais molhados impunha custos excessivos aos terminais secos, restringindo a competitividade no setor e caracterizando abuso de posição dominante, o que reafirma a necessidade de um controle mais rígido sobre práticas que possam prejudicar a concorrência no mercado portuário.

Recurso Especial nº 1.899.040/SP

Relatora Ministra Regina Helena Costa, julgado em 27/8/2024

PROCESSUAL CIVIL, ECONÔMICO E CONCORRENCIAL. (…) PODER NORMATIVO DA AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES AQUAVIÁRIOS – ANTAQ. AUSÊNCIA DE ISENÇÃO ANTITRUSTE. SUBMISSÃO DE REGULAMENTOS EDITADOS POR AUTARQUIAS REGULADORAS À LEGISLAÇÃO DE DEFESA DA ORDEM ECONÔMICA. INTELIGÊNCIA DAS LEIS NS. 12.529/2011 E 13.848/2019. TERMINAL HANDLING CHARGE 2 – THC2 (SERVIÇO DE SEGREGAÇÃO E ENTREGA DE CONTÊINERES – SSE). TARIFA ANTICOMPETITIVA. IMPOSIÇÃO UNILATERAL DE CUSTOS PELOS OPERADORES PORTUÁRIOS EM FACE DE CONCORRENTES DIRETOS. ABUSO DE POSIÇÃO DOMINANTE. CONSTATAÇÃO DE COMPRESSÃO DE PREÇOS (PRICE SQUEEZE). RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, IMPROVIDO. REVOGADA A TUTELA PROVISÓRIA DEFERIDA NA TP N. 2.787/SP.

(…)

IX – Embora a cobrança do Serviço de Segregação e Entrega de Contêineres – SSE, tarifa igualmente denominada de Terminal Handling Charge 2 – THC2, encontre arrimo em atos normativos editados pela ANTAQ, não há óbice a que as autoridades de defesa da concorrência e o Poder Judiciário avaliem sua validade à luz da legislação antitruste, descabendo chancelar, em consequência, a presença de zona infensa à incidência da Lei n. 12.529/2011 decorrente do mero exercício do poder regulamentar pela entidade setorial. X – A exigência da Terminal Handling Charge 2 – THC2 (ou Serviço de Segregação e Entrega de Contêineres – SSE) pelos operadores portuários em face dos terminais retroportuários configura abuso de posição dominante, na modalidade compressão de preços (price squeeze), porquanto, a um só tempo, (i) autoriza detentor de facilidade essencial verticalmente integrado a impor custos a serem suportados unicamente por seus concorrentes diretos no mercado subsequente, (ii) viabiliza a restrição das margens de fixação de preços pelos competidores no contexto da armazenagem de cargas provenientes do exterior e, ainda, (iii) importa ofensa ao dever legal de garantir acesso isonômico às instalações portuárias, restringindo a competitividade no setor, em contrariedade às normas estampadas nos arts. 27, IV, da Lei n. 10.233/2001, 36 da Lei n. 12.529/2011, e 3º, V e VI, da Lei n. 12.815/2013. (…)

Outro fenômeno que reflete a redução do espaço de discricionariedade do Poder Executivo na promoção de políticas públicas transborda de uma discussão de direito administrativo para as recentes mutações do direito financeiro brasileiro.

A partir de 2014, o Brasil enfrentou uma intensa crise fiscal que se estendeu por quase uma década, impactando profundamente a capacidade do Estado de implementar políticas públicas. Esse período foi marcado por uma queda acentuada na arrecadação de impostos, combinada com o aumento das despesas, especialmente em áreas como previdência, saúde, educação e, mais recentemente, pela necessidade de reação estatal aos efeitos da pandemia de Covid-19 mediante políticas de assistência social e transferência de renda.

A retração econômica, agravada por fatores como instabilidade política e desajustes nas contas públicas, gerou um cenário de restrição orçamentária severa. Programas sociais e investimentos em infraestrutura, por exemplo, enfrentaram cortes drásticos, levando à paralisação de projetos e à diminuição da cobertura de serviços essenciais, o que afetou de maneira significativa o atendimento das necessidades da população.

Neste período, já se concretizavam as projeções dos analistas de finanças públicas no sentido do crescimento das chamadas “despesas obrigatórias”, dispêndios que o governo está obrigado a realizar por determinação constitucional, nos setores de saúde e educação, ou por força de obrigação legal ou contratual, como gastos em previdência, pessoal e contratações públicas, a ponto de, em 2024, essa categoria de despesa corresponder a 92% do total de despesas primárias do governo federal.

Por consequência, passou-se a observar uma redução proporcional sobre receita governamental das chamadas “despesas discricionárias”, isto é, a parcela do orçamento público que o governante dispõe discricionariamente para implementar aquele seu projeto de gestão que se sagrou vencedor nas eleições. Ao contrário das obrigatórias, as despesas discricionárias podem ser contingenciadas, isto é, preteridas na execução orçamentária para fins de atingimento das metas fiscais.

Em resposta à crise fiscal e visando controlar o crescimento das despesas públicas, o governo brasileiro aprovou a Emenda Constitucional nº 95 em 2016, também conhecida como PEC do Teto dos Gastos. Essa emenda estabeleceu um limite para o aumento das despesas primárias do governo, que passou a ser reajustado anualmente com base na inflação do ano anterior. A medida visava garantir maior previsibilidade e controle sobre os gastos públicos, com o objetivo de reequilibrar as contas do país e restaurar a confiança econômica.

No entanto, o teto de gastos imposto pela emenda também trouxe desafios para a execução das políticas públicas, uma vez que restringiu a possibilidade de expansão dos investimentos em áreas fundamentais para o desenvolvimento social. Com a permanência da crise fiscal, o debate sobre a rigidez do teto e seus impactos sociais permanece no centro das discussões sobre a sustentabilidade das finanças públicas e o papel do Estado na promoção do bem-estar social.

Abaixo você pode conferir um texto de natureza técnica para abordar as projeções das despesas do governo federal para os próximos anos. O Relatório de Projeções Fiscais elaborado periodicamente pela Secretaria do Tesouro Nacional, na edição de março de 2024, apresenta um prognóstico de manutenção da tendência de queda proporcional das despesas discricionárias do Poder Executivo em relação ao produto interno bruto, pelo menos até 2033, evidenciando que as dificuldades apontadas acima devem persistir.

Relatório de Projeções Fiscais

Secretaria do Tesouro Nacional, Março de 2024

Despesas Discricionárias do Poder Executivo

Como resultado da evolução dos componentes da despesa obrigatória, observa-se um crescimento real médio dessas despesas sujeitas ao limite de 2,7% a.a. entre 2024 e 2033. As despesas discricionárias, por sua vez, projetadas no cenário base como um resíduo entre o limite de despesa e as despesas obrigatórias a ele sujeitas, apresentam variação real média negativa de 2,1% a.a. entre 2024 e 2033. Essa redução ocorre notadamente a partir de 2027, quando o pagamento da totalidade das despesas com sentenças judiciais e precatórios volta a se sujeitar ao limite de despesa. Como consequência, o volume de despesas discricionárias cai de 1,7% do PIB em 2023 para 1,0% do PIB em 2033, ao passo que sua participação em relação à despesa primária total se reduz ao longo do horizonte de projeção, saindo de 8,8% em 2024 para 6,0% em 2033.

Importa destacar que a evolução das despesas discricionárias depende do crescimento da RLA [receita líquida ajustada], tendo em vista que elas equivalem ao espaço fiscal resultante da diferença entre o limite de despesa e as despesas obrigatórias sujeitas ao limite. Entretanto, como as despesas obrigatórias sujeitas ao limite crescem a uma taxa superior ao crescimento anual médio do limite de despesas calculado nesse cenário (2,7% a.a. e 2,3% a.a., respectivamente), a dinâmica aqui estimada para a RLA não é suficiente para permitir expansão das despesas discricionárias no horizonte de projeção. Cumpre salientar que crescimentos da RLA inferiores ao projetado no cenário base levariam a compressões mais rápidas e significativas da despesa discricionária.

A hipótese de contingenciamento também afeta o espaço para as despesas discricionárias, sobre as quais a redução de 0,3 p.p. do PIB na despesa primária total é integralmente aplicada, fazendo com que a despesa sujeita ao limite fique inferior ao limite.

Adicionalmente, cabe salientar que o espaço para o custeio da máquina pública é afetado pela existência de “despesas discricionárias rígidas”, nome atribuído às despesas classificadas como discricionárias, mas que, em conjunto, estão associadas ao cumprimento de regras específicas. São elas: i) gastos mínimos em saúde e educação; e ii) emendas parlamentares de execução obrigatória. Quando adicionamos essas despesas às obrigatórias sujeitas ao limite, seu crescimento real médio se eleva para 3,0% a.a., uma vez que os gastos mínimos em saúde e educação e as emendas parlamentares de execução obrigatória são despesas vinculadas a receitas e apresentam crescimento mais acelerado do que o limite de despesa nesse cenário de projeção. Consequentemente, observamos compressão das demais despesas discricionárias, que saem de 1,6% do PIB em 2023 e ficam próximas de zero a partir de 2032.

Ainda na seara das inovações recentes do direito financeiro, o Brasil passou por alterações constitucionais que visaram garantir a execução obrigatória de ações e programas decorrentes de emendas parlamentares. Em 2019, a Emenda Constitucional nº 100 consolidou a prática das emendas impositivas, que obriga o Executivo a destinar recursos para emendas individuais de deputados e senadores, aumentando a autonomia parlamentar no direcionamento de recursos para projetos específicos.

Posteriormente, essa prerrogativa foi ampliada para incluir também as emendas de bancada estadual, com o objetivo de fortalecer o atendimento a demandas regionais, que muitas vezes têm prioridade para os representantes locais. Essas emendas buscam atender áreas de interesse dos parlamentares nos setores de infraestrutura, saúde, educação e segurança, promovendo uma descentralização da tomada de decisão nos investimentos públicos.

Esta nova sistemática orçamentária reequacionou a relação entre os Poderes Legislativo e Executivo e visaram assegurar que as prioridades parlamentares sejam efetivamente atendidas. Essa obrigatoriedade de execução, no entanto, também traz desafios para a gestão orçamentária do governo, que precisa adequar-se para cumprir as obrigações legais em um cenário ainda de restrição fiscal.

A carta do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE) discorre sobre a evolução histórica das emendas impositivas e pondera sobre seus reflexos na relação institucional entre os Poderes Executivo e Legislativo.

Carta do IBRE

FGV/IBRE, Abril de 2024

Nos últimos anos, ocorreu um crescimento expressivo do volume de emendas parlamentares no orçamento federal. Em termos nominais, as emendas parlamentares saíram de R$ 6,14 bilhões em valores empenhados em 2014 para um montante autorizado de R$ 44,67 bilhões em 2024. As emendas, que correspondiam a 3,95% do conjunto das despesas discricionárias em 2014, chegaram a um pico de 28,78% em 2020 e, em 2024, devem representar 20,03% das discricionárias. Em 2014, das transferências federais diretas para municípios, estados e entidades privadas, isto é, dos recursos discricionários não executados diretamente pela União, 83% foram feitas pelo Executivo federal e 17% foram emendas do Legislativo (esses valores não incluem fundos de participação). Em 2023, as transferências do Executivo foram 54% do total, e as do Legislativo (emendas), 46%.

Essa grande expansão do papel das emendas parlamentares nos últimos dez anos reflete um conflito entre Legislativo e Executivo em relação à forma como o orçamento é elaborado e executado. Para muitos observadores, o modelo atual, com emendas muito infladas em relação ao passado recente, descoordena a ação pública, pois os gastos não são alocados dentro de programas estruturados. É a visão de que a multiplicação das emendas pulveriza o dinheiro público em ações paroquiais, em vez de se integrarem numa estratégia nacional de investimento do Estado.

Essa crítica subentende que o Congresso Nacional é incapaz de alocar recursos, quando considerados em seu conjunto, de forma benéfica para o país. E é verdade que algo nessa linha vem ocorrendo nos últimos anos no Brasil. O Congresso tende a não discutir resultados de políticas, focando mais em como a alocação de recursos gera retorno eleitoral para os legisladores. Há uma tendência a priorizar questões menores e mais localizadas, vinculadas às bases eleitorais pulverizadas dos parlamentares, em detrimento de ações de mais fôlego, que atendam o interesse público de forma mais ampla.

Por outro lado, é igualmente verdade que, em boa parte das democracias, o Legislativo também participa do processo de definição de prioridades para o emprego do dinheiro público. Inclusive, essa participação é um dos aspectos do funcionamento das instituições democráticas que confere legitimidade política ao orçamento público.

Manoel Pires e Carolina Resende (respectivamente, coordenador e pesquisadora do Centro de Orçamento e Política Fiscal do FGV IBRE), que organizaram o material no qual se baseou esta Carta, observam adicionalmente que existe uma visão distorcida do significado de impositividade orçamentária. O orçamento brasileiro não é impositivo, e sim autorizativo, e o que está sendo qualificado com essa palavra é a parcela das emendas parlamentares que o Congresso quer ver executadas e pagas pelo governo.

Pires explica que, em países que têm orçamento impositivo, o processo legislativo orçamentário é forte e coordenado, e nele é definida a restrição macroeconômica que tem que ser respeitada nas negociações entre Executivo e Legislativo para montar o cronograma anual de gasto público. A partir do orçamento fechado, o processo se torna impositivo, no sentido de que o Executivo tem que executar o que foi orçado, sem discricionariedade e sem contingenciamento. (…)

Em resumo, a visão dos pesquisadores do FGV IBRE não deve ser confundida com a defesa ipsis litteris da institucionalidade atual relativa às emendas parlamentares no Brasil, mas se trata, na verdade, da constatação de que não é nem realista nem desejável retroceder no tempo. Isso corresponderia a retornar a um período em que o Congresso, de forma infantilizada, não tinha participação quase nenhuma no processo orçamentário efetivo, e trocava votos por emendas irrelevantes em seu conjunto. Todas as mudanças e conflitos entre Executivo e Legislativo em torno das emendas parlamentares nos últimos dez a 15 anos refletem, na realidade, um Congresso que demanda a sua devida participação no processo orçamentário, o que, como já mencionado, é positivo para a evolução democrática do país. Por outro lado, para cumprir esse papel, é fundamental que o Legislativo entenda que o uso dos recursos públicos tem que estar integrado na lógica de um projeto de país – que normalmente cabe ao Executivo liderar – e que, com mais poderes, devem vir também mais responsabilidades. É nesse sentido que o Brasil deve caminhar para uma nova cultura orçamentária.

O recolho de reflexões e leituras até aqui apresentadas neste roteiro, escolhidos sem a pretensão de esgotar esse debate que vai além dos fundamentos do direito administrativo, não significa que está tudo perdido.

            Pelo contrário!

            Eles indicam que uma nova realidade se estabeleceu no contexto político e gerencial brasileiro, que clama por novas fórmulas para soluções de novos problemas. O gestor público brasileiro passou a se inserir em um quadro de múltiplos controles e de restrições até então não observados.

Com isso, aos pensadores do direito e da administração pública incumbe a ressignificação de determinados conceitos, o ajuste de ferramentas até então utilizadas ou, ainda, a criação de um novo arcabouço, para dar cabo à missão de elaboração e implementação de políticas públicas que atinjam sua finalidade. Diversas inovações no mundo da regulação econômica e social têm sido desenvolvidas para fazer frente a esse cenário contemporâneo de contingências.

A despeito da aprovação da alteração na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, no sentido de reconhecer os obstáculos e as dificuldades reais do gestor na condução das políticas públicas, as agências reguladoras têm buscado a construção de espaços institucionalizados que autorizam a experimentação e o erro.

É o chamado sandbox regulatório, ambiente regulatório experimental em que a regulação ordinária é excepcionalizada para que inovações sejam testadas, como em um tubo de ensaio. No Brasil, o Banco Central foi pioneiro ao testar inovações nos serviços financeiros à população, a exemplo do desenvolvimento do pix. Veja as diretrizes da autoridade monetária na condução de suas iniciativas inovadoras.

Sandbox regulatório

Página do Banco Central do Brasil

O Sandbox Regulatório é um ambiente em que entidades são autorizadas pelo Banco Central do Brasil para testar, por período determinado, projeto inovador na área financeira ou de pagamento, observando um conjunto específico de disposições regulamentares que amparam a realização controlada e delimitada de suas atividades.

Objetivos do sandbox regulatório do BC

Estimular a inovação e a diversidade de modelos de negócio, estimular a concorrência entre os fornecedores de produtos e serviços financeiros e atender às diversas necessidades dos usuários, no âmbito do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), assegurando a higidez desses sistemas. (…)

Como ele funciona

Durante o período de testes, as empresas ficam sujeitas a requisitos regulatórios diferenciados e podem receber dos agentes reguladores orientações personalizadas sobre como interpretar e aplicar a regulamentação cabível. Ao mesmo tempo, os órgãos reguladores irão monitorar a implementação e os resultados dos projetos, sendo capazes de avaliar os riscos associados aos novos produtos e serviços. Caso o BC identifique inadequação no gerenciamento dos riscos associados à execução do projeto pelo participante, o regulador poderá determinar o aperfeiçoamento do projeto e, se o BC detectar que a atividade do participante expõe o SFN ou o SPB a riscos excessivos, a autarquia poderá estabelecer limites para a execução do projeto.

Outras iniciativas que têm sido empreendidas tanto na regulação econômica quanto na regulação social para robustecer a legitimidade e a argumentação técnica da decisão administrativa. O uso de ferramentas efetivas de participação social, bem como o aprimoramento na realização de análises de impacto regulatório e, de modo ainda incipiente, de avaliações de resultado regulatório tornam mais difíceis a impugnação e a anulação do processo de tomada de decisão da Administração Pública.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) está prestes a encerrar o seu ciclo de reforma da regulação das concessões de infraestrutura rodoviária, tendo impulsionado a migração de um modelo de regulação contratual para regulação normativa, por meio do projeto do Regulamento das Concessões Rodoviárias, em cinco etapas.

Para cada etapa, a par da instrução técnica calcada nas respectivas análises de impacto regulatório, o processo de construção normativa foi legitimado pela participação efetiva, mediante provocação ativa da Agência, das associações representativas das concessionárias e dos usuários. Em reuniões participativas restritas a esses convidados, e posteriormente em audiências e consultas públicas abertas, as normas foram apreciadas artigo a artigo, capítulo a capítulo, em debate franco sobre a adequação técnica e exequibilidade da proposta da Agência. Notícia da mídia especializada publicada no início do projeto da a dimensão da sua aspiração participativa.

ANTT abre audiência pública para discutir 1ª etapa do Regulamento das Concessões Rodoviárias

Agência iNFRA, 5 de março de 2021

A diretoria da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) aprovou a abertura de audiência pública para discutir a primeira etapa do RCR (Regulamento das Concessões Rodoviárias), aplicável aos contratos de concessão de exploração de infraestrutura de rodovias. A decisão se deu durante a reunião de diretoria da última terça-feira (2).

A agência realiza também, hoje (5), às 9h, uma reunião participativa para tratar do tema, com transmissão neste link. O encontro será aberto pelo diretor-geral em exercício da ANTT, Alexandre Porto, e contará com a participação de representantes da ABCR (Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias), da Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base), da Anut (Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga) e da CNT (Confederação Nacional do Transporte).

O ponto base da proposta geral é alterar o modelo de regulação, que deixará de ser por contrato, para o chamado modelo de regulação por normas mais gerais da agência. Na prática, significa que as regras para a execução dos contratos e sua fiscalização serão dadas pelas normas aprovadas na agência e vão valer igualmente para todas as concessões. A minuta de resolução está disponível neste link. A AIR (Análise de Impacto Regulatório) produzida pela agência sobre a proposta está neste link. E os comentários da Superintendência de Infraestrutura Rodoviária sobre cada um dos artigos da proposta, neste link.

O Poder Executivo e o gestor público ainda detêm um papel preponderante na realização de direitos, seja pela maior gama de instituições e de mecanismos que dispõem para atuar, seja pela preponderância de seu orçamento sobre o dos demais Poderes.

O exercício da discricionariedade pelo gestor público perpassa, nesse novo cenário, por um novo standard de conformação ao direito e à política. Portanto, parece-me que a resposta à pergunta que impulsiona esta aula é “não!”. E pra você?

3. DEBATENDO

1. Qual o impacto da judicialização das políticas públicas para a eficiência e legitimidade do Poder Executivo?

2. Em que medida a criação de precedentes pelo STF afeta a discricionariedade administrativa?

3. A recente decisão da Suprema Corte dos EUA de revogar a Doutrina Chevron pode servir de precedente para o Brasil?

4. Como equilibrar o controle judicial e a autonomia administrativa no contexto brasileiro?

5. Qual a relevância dos órgãos de controle (Judiciário, TCU, Ministério Público) na implementação de políticas públicas?

6. A deferência do Judiciário às decisões técnicas das agências reguladoras pode ser aplicada de forma mais ampla?

7. Qual o papel do Direito Administrativo na mediação entre eficiência e equidade na administração pública?

8. Como as decisões no sistema de precedentes judiciais afetam a formulação de políticas públicas?

9. A crescente pluralidade de demandas sociais pode ser atendida com o atual arranjo institucional dos Poderes no Brasil?

10. Há espaço para a inovação no serviço público diante do receio de responsabilização?

11. Como incentivar a tomada de decisões inovadoras sem comprometer a segurança jurídica?

12. Qual o futuro das agências reguladoras em um contexto de crescente interferência judicial?

13. Quais os limites da discricionariedade técnica no Direito Administrativo?

14. Como proteger a autonomia das agências reguladoras frente à judicialização?

15. Como conciliar as decisões políticas do Executivo com a interpretação jurídica do Judiciário?

16. A legitimação das políticas públicas depende de qual fator: eficiência, justiça social ou conformidade legal?

17. Qual o papel das reformas legislativas para delimitar o controle das políticas públicas?

18. O modelo brasileiro de judicialização das políticas públicas favorece ou prejudica a governabilidade?

19. Como construir uma nova narrativa de confiança no gestor público?

20. Quais os desafios para a consolidação de um Direito Administrativo que seja simultaneamente justo e eficiente?

21. Como a restrição orçamentária afeta a capacidade de o gestor público implementar políticas públicas de maneira eficiente e atender às demandas sociais?

22. De que forma as emendas parlamentares impositivas influenciam a alocação de recursos no orçamento público e impactam a autonomia do gestor público?

23. Quais são os principais desafios enfrentados pelo gestor público ao equilibrar as obrigações de execução de emendas parlamentares com as prioridades das políticas públicas do Executivo?

24. Como a implementação do teto de gastos (EC nº 95) limita a discricionariedade dos gestores públicos em relação à execução de programas e políticas públicas essenciais?

25. Em que medida a obrigatoriedade de execução de emendas parlamentares contribui para a descentralização de investimentos públicos? E quais podem ser os efeitos sobre o planejamento de longo prazo?

26. Qual é o papel do gestor público em garantir a eficiência na execução de políticas públicas diante da obrigatoriedade de emendas parlamentares e das limitações orçamentárias?

27. Quais mecanismos podem ser adotados para garantir que a execução de emendas parlamentares esteja alinhada às metas de desenvolvimento social e econômico traçadas pelo governo?

28. Quais ferramentas inovadoras a Administração Pública dispõe para resguardar o direito ao erro e a possibilidade de melhor justificação de suas ações?

4. APROFUNDANDO

Para saber mais, busque, além dos textos citados ao longo da aula, os seguintes livros e artigos:

ABERS, Rebecca Neaera (org.). Ativismo institucional: criatividade e luta na burocracia brasileira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2021.

DUTRA, Pedro; REIS, Thiago. O soberano da regulação – O TCU e a infraestrutura. São Paulo: Singular, 2020.

GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Editora Lumen Juris, 2005.

GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade – Uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. Belo Horizonte: Editora Forum, 2015.

LOUREIRO, Maria Rita Garcia; ABRUCIO, Fernando Luiz; PACHECO, Regina Silvia. Burocracia e política no Brasil – Desafios para a ordem democrática no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010.

RIBEIRO, Matheus Rosa; RIBEIRO, Livio. Encontro marcado até o fim da década: Pressão nas despesas e a implosão das instituições fiscais. Blog do IBRE. Disponível em: <https://blogdoibre.fgv.br/posts/encontro-marcado-ate-o-fim-da-decada-pressao-nas-despesas-e-implosao-das-instituicoes-fiscais>. Acesso em 21.10.2024.

SUNDFELD, Carlos Ari; ROSILHO, André. Direito da regulação e políticas públicas. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.