1. CONHECENDO O BÁSICO
Na percepção comum, a Administração Pública é vista frequentemente como uma entidade quase inatingível, muitas vezes distante das preocupações cotidianas dos cidadãos. Muitos a consideram rígida, limitada ao papel de executor das leis. Essa visão, entretanto, não reflete a complexidade das atividades dos gestores e seus desafios. A realidade administrativa exige adaptação a novos dados, demandas sociais e desafios econômicos, o que depende de comunicação eficiente entre a Administração, cidadãos e empresas. Administrar é mais do que cumprir a lei; é engajar-se em processos que envolvem decisão estratégica, troca de informações e colaboração regulada com o setor privado.
A relação público-privada ganha ainda mais relevância em um mundo onde informações e recursos são compartilhados e disputados. No contexto atual, em que os ativos intangíveis dominam, as informações têm importância central. Saber sobre processos, expectativas e capacidades dos entes privados é estratégico para a gestão pública. Essa necessidade é evidente em licitações e contratos, onde o acesso a informações qualificadas pode definir o sucesso de um projeto. Assim, a Administração deve criar meios efetivos para dialogar com o setor privado e nivelar a assimetria informacional.
A assimetria informacional, conceito da teoria econômica da informação, surge quando uma das partes de uma transação detém mais ou melhores dados. Esse desequilíbrio, estudado por economistas como George Akerlof, impede decisões eficientes e gera problemas como seleção adversa, em que propostas inferiores prevalecem, e risco moral, em que uma parte assume riscos desproporcionais. Nas relações público-privadas, o gestor frequentemente possui menos informações que os empresários, impactando escolhas, redação de cláusulas e decisões de investimento.
No Brasil, instrumentos como audiências e consultas públicas, roadshows e sondagens de mercado são ferramentas essenciais para alinhar expectativas e trocar informações. Mais que formalidades, são espaços legitimados pelo Direito Administrativo para insumos e feedback de agentes que detêm dados críticos.
A audiência pública é uma sessão aberta para debate oral de temas específicos, permitindo contribuições antes de decisões administrativas. A consulta pública é um processo formal e escrito, com prazo definido, para coletar sugestões ou informações técnicas de interessados. O roadshow apresenta projetos ou oportunidades a investidores, atraindo participantes e esclarecendo dúvidas. A sondagem de mercado coleta percepções e dados do setor privado para avaliar a viabilidade de projetos antes de licitações.
A relação entre a vinculação à lei e a discricionariedade do administrador é crucial para entender esses processos. Apesar de vinculada à legislação e aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, a Administração precisa de flexibilidade para interpretar normas e tomar decisões em contextos complexos. A discricionariedade confere ao gestor autonomia para agir, especialmente quando a legislação é vaga, mas sempre dentro de limites legais e orientada pelo interesse público. Isso é essencial nas relações com o setor privado, onde o gestor aplica expertise para resolver questões práticas em um ambiente competitivo.
Outro ponto relevante é o respeito ao devido processo e à transparência. A comunicação e troca de informações, quando bem conduzidas, aumentam a segurança jurídica e reduzem riscos de decisões mal fundamentadas. Instrumentos de diálogo são usados não apenas para coletar dados, mas para construir confiança com o setor privado. Reduzir os “custos de transação” envolvidos – tempo, dinheiro e esforço necessários para realizar interações eficientes – é essencial. No setor público, tais custos podem ser altos devido à burocracia e rigidez normativa. Diálogos estruturados e transparentes facilitam o cumprimento de obrigações contratuais, atraindo participação privada.
Instrumentos como consultas, audiências, roadshows e sondagens são fundamentais para trocas seguras e úteis. Incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, buscam não só transparência, mas garantem que a Administração obtenha dados para decisões bem-informadas. Sua eficácia, no entanto, depende de uso estratégico e alinhado aos objetivos do gestor, que deve comunicar o que busca e considerar contribuições privadas relevantes. Esses espaços não obrigam a Administração a acolher contribuições, mas impõem a análise e resposta fundamentada – conceito de “vinculação cognitiva”, desenvolvido por Modesto e Modesto (2023). Essa dinâmica compromete o gestor com a qualidade e transparência das decisões, compelindo-o a avaliar criticamente informações e preocupações trazidas ao diálogo público-privado.
Esses instrumentos vão além da postura passiva da Administração. Permitem ao setor público modelar relações com o privado, incentivando investidores e facilitando contratos robustos. São canais que ajudam o governo a avaliar a viabilidade e os desafios de projetos de interesse público, contribuindo para políticas eficazes e ajustadas à realidade socioeconômica. Estruturar o processo de comunicação com base em decisões estratégicas, vinculação cognitiva e transparência fortalece a governança, tornando-a mais responsiva às demandas sociais e econômicas.
Entender e otimizar essa comunicação tornou-se imperativo para gestores públicos. Instrumentos de diálogo não só fortalecem o controle social e a accountability, mas promovem uma “gestão pública de alta performance”, conciliando eficiência, responsabilidade e transparência.
Quais habilidades você deverá dominar após esta aula sobre como a Administração Pública escuta e dialoga com pessoas e entes privados?
Primeiro, será necessário compreender os desafios e potencialidades da comunicação público-privada, avaliando instrumentos de diálogo, reconhecendo benefícios, custos e riscos, como captura de interesses ou exposição de dados estratégicos.
Segundo, interpretar os marcos legais que regulam essas interações, como a Lei de Processo Administrativo (Lei nº 9.784/1999). Entender a vinculação cognitiva permitirá analisar os limites e possibilidades do gestor ao coletar e usar informações obtidas.
Por fim, saber equilibrar transparência e sigilo estratégico. Identificar quais informações compartilhar ou proteger será essencial para criar estratégias que promovam confiança e cooperação.
Propomos leituras, reflexões e atividades práticas para alcançar esses objetivos. Vamos a elas?
2. A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
Para começarmos nossas reflexões sobre o tema, é essencial conhecer as disposições legais envolvidas. Vamos ver algumas das principais?
Lei de Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/1999):
CAPÍTULO X
DA INSTRUÇÃO
Art. 29. As atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo do direito dos interessados de propor atuações probatórias.
§ 1o O órgão competente para a instrução fará constar dos autos os dados necessários à decisão do processo.
§ 2o Os atos de instrução que exijam a atuação dos interessados devem realizar-se do modo menos oneroso para estes.
Art. 30. São inadmissíveis no processo administrativo as provas obtidas por meios ilícitos.
Art. 31. Quando a matéria do processo envolver assunto de interesse geral, o órgão competente poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo para a parte interessada.
§ 1o A abertura da consulta pública será objeto de divulgação pelos meios oficiais, a fim de que pessoas físicas ou jurídicas possam examinar os autos, fixando-se prazo para oferecimento de alegações escritas.
§ 2o O comparecimento à consulta pública não confere, por si, a condição de interessado do processo, mas confere o direito de obter da Administração resposta fundamentada, que poderá ser comum a todas as alegações substancialmente iguais.
Art. 32. Antes da tomada de decisão, a juízo da autoridade, diante da relevância da questão, poderá ser realizada audiência pública para debates sobre a matéria do processo.
Art. 33. Os órgãos e entidades administrativas, em matéria relevante, poderão estabelecer outros meios de participação de administrados, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas.
Art. 34. Os resultados da consulta e audiência pública e de outros meios de participação de administrados deverão ser apresentados com a indicação do procedimento adotado.
Art. 35. Quando necessária à instrução do processo, a audiência de outros órgãos ou entidades administrativas poderá ser realizada em reunião conjunta, com a participação de titulares ou representantes dos órgãos competentes, lavrando-se a respectiva ata, a ser juntada aos autos.
(…)
Princípios da Administração Pública (Constituição DE 1988, Art. 37):
(…)
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(…)
§ 1º A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.
§ 2º A não observância do disposto nos incisos II e III implicará a nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, nos termos da lei.
§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) (Vide Lei nº 12.527, de 2011)
III – a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública.
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB):
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. (Regulamento)
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais. (Regulamento)
Parágrafo único. (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 25. (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
§ 1º O compromisso referido no caput deste artigo: (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais; (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
II – (VETADO); (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
III – não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral; (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
IV – deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
§ 1º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
§ 2º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
§ 3º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Vigência) (Regulamento)
§ 1º A convocação conterá a minuta do ato normativo e fixará o prazo e demais condições da consulta pública, observadas as normas legais e regulamentares específicas, se houver. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Vigência)
§ 2º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Vigência)
Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
Parágrafo único. Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.
Lei de Geral para Licitação e Contratação de Parceira Público-Privada no âmbito da Administração Pública (Lei nº 11.079, 30 de dezembro de 2004):
Capítulo V
DA LICITAÇÃO
Art. 10. A contratação de parceria público-privada será precedida de licitação na modalidade de concorrência, estando a abertura do processo licitatório condicionada a:
Art. 10. A contratação de parceria público-privada será precedida de licitação na modalidade concorrência ou diálogo competitivo, estando a abertura do processo licitatório condicionada a: (Redação dada pela Lei nº 14.133, de 2021)
I – autorização da autoridade competente, fundamentada em estudo técnico que demonstre:
a) a conveniência e a oportunidade da contratação, mediante identificação das razões que justifiquem a opção pela forma de parceria público-privada;
b) que as despesas criadas ou aumentadas não afetarão as metas de resultados fiscais previstas no Anexo referido no § 1º do art. 4º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, devendo seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes, ser compensados pelo aumento permanente de receita ou pela redução permanente de despesa; e
c) quando for o caso, conforme as normas editadas na forma do art. 25 desta Lei, a observância dos limites e condições decorrentes da aplicação dos arts. 29, 30 e 32 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, pelas obrigações contraídas pela Administração Pública relativas ao objeto do contrato;
II – elaboração de estimativa do impacto orçamentário-financeiro nos exercícios em que deva vigorar o contrato de parceria público-privada;
III – declaração do ordenador da despesa de que as obrigações contraídas pela Administração Pública no decorrer do contrato são compatíveis com a lei de diretrizes orçamentárias e estão previstas na lei orçamentária anual;
IV – estimativa do fluxo de recursos públicos suficientes para o cumprimento, durante a vigência do contrato e por exercício financeiro, das obrigações contraídas pela Administração Pública;
V – seu objeto estar previsto no plano plurianual em vigor no âmbito onde o contrato será celebrado;
VI – submissão da minuta de edital e de contrato à consulta pública, mediante publicação na imprensa oficial, em jornais de grande circulação e por meio eletrônico, que deverá informar a justificativa para a contratação, a identificação do objeto, o prazo de duração do contrato, seu valor estimado, fixando-se prazo mínimo de 30 (trinta) dias para recebimento de sugestões, cujo termo dar-se-á pelo menos 7 (sete) dias antes da data prevista para a publicação do edital; e
VI – submissão da minuta de edital e de contrato à consulta pública, por meio de publicação na imprensa oficial e em sítio eletrônico oficial, que deverá informar a justificativa para a contratação, a identificação do objeto, o prazo de duração do contrato e o seu valor estimado, com a indicação do prazo mínimo de trinta dias para recebimento de sugestões, cujo termo final ocorrerá com, no mínimo, sete dias de antecedência em relação à data prevista para a publicação do edital; e (Redação dada pela Medida Provisória nº 896, de 2019) (Vigência encerrada)
VI – submissão da minuta de edital e de contrato à consulta pública, mediante publicação na imprensa oficial, em jornais de grande circulação e por meio eletrônico, que deverá informar a justificativa para a contratação, a identificação do objeto, o prazo de duração do contrato, seu valor estimado, fixando-se prazo mínimo de 30 (trinta) dias para recebimento de sugestões, cujo termo dar-se-á pelo menos 7 (sete) dias antes da data prevista para a publicação do edital; e
Nova Lei de Licitação (Lei nº 14.133, 1º de abril de 2021):
Art. 21.A Administração poderá convocar, com antecedência mínima de 8 (oito) dias úteis, audiência pública, presencial ou a distância, na forma eletrônica, sobre licitação que pretenda realizar, com disponibilização prévia de informações pertinentes, inclusive de estudo técnico preliminar e elementos do edital de licitação, e com possibilidade de manifestação de todos os interessados.Parágrafo único. A Administração também poderá submeter a licitação a prévia consulta pública, mediante a disponibilização de seus elementos a todos os interessados, que poderão formular sugestões no prazo fixado
Com a base legal na cabeça, passamos à leitura de dois textos sobre discricionariedade e vinculação da Administração Pública.
Discricionariedade Administrativa e Controle Judicial
Por Celso Antônio Bandeira de Mello
Curso de Direito Administrativo. 33. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 92, de 12.7.2016. São Paulo: Malheiros, 2016.
Capítulo XIX
(…)
VI. Conceito de discricionariedade
31. Em face do quanto se expôs, pode-se conceituar discricionariedade nos seguintes termos:
Discricionariedade é a margem de “liberdade” que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente.
VII. Limites da discricionariedade
Exposta a significação da discricionariedade administrativa, sem em nada lhe sonegar a verdadeira densidade e consistência lógica, percebe-se que se trata necessária e inexoravelmente de um poder demarcado, limitado, contido em fronteiras requeridas até por imposição racional, posto que, à falta delas, perderia o cunho de poder jurídico. Com efeito, se lhe faltassem diques não se lhe poderia inculcar o caráter de comportamento “intralegal”.
Ademais, cumpre reconhecer, ainda como imperativo racional, que há meios de determinar sua extensão. Caso contrário, os ditames legais que postulam discrição administrativa, desenhando-lhe o perfil, perderiam qualquer sentido e seriam palavras ocas, valores nulos, expressões sem conteúdo ou, mais radicalmente, atestados flagrantes de inconsequência do próprio Estado de Direito.
Visto que não há como conceber nem como apreender racionalmente a noção de discricionariedade sem remissão lógica à existência de limites a ela, que defluem da lei e do sistema legal como um todo – salvante a hipótese de reduzi-la a mero arbítrio, negador de todos os postulados do Estado de Direito e do sistema positivo brasileiro -, cumpre buscar os pontos que lhe demarcam a extensão.
34. Na parte inicial deste estudo, conquanto sem colocar em saliência, já se fez menção aos elementos básicos que permitem localizar os confins da discricionariedade. São os próprios pressupostos legais justificadores do ato, a finalidade normativa – ainda que expressos mediante conceitos algo imprecisos – e a causa do ato que determinam os limites da discrição.
Por paradoxal que pareça, os mesmos fatores que podem gerar imprecisão engendram igualmente os pontos de demarcação, de par com a “causa” do ato, a ser examinada pouco além, quando se esclarecerá o sentido em que vai tomada a palavra.
(…)
Audiências e consultas: vinculação cognitiva e experimentação administrativa
Por Paulo Modesto e Camila Modesto
Direito Administrativo da Experimentação: inovação e pragmatismo na gestão pública. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024.
Instrumentos de diálogo e monitoramento, como a audiência pública e a consulta pública, promovem espaços de interação e participação que aproximam indivíduos, empresas e a administração pública. Previstos em caráter geral na Lei nº 9.784/1999, porém percebidos como simples faculdades da administração pública, aceitos como veículos participativos compatíveis com a discricionariedade administrativa procedimental, esses instrumentos podem ir além do caráter democratizante e servir como verdadeiras ferramentas de experimentação administrativa.
Experimentar, por natureza, exige o enfrentamento do desconhecido. Na etapa preparatória, comum a qualquer exploração, a obtenção do máximo de informações é essencial para aumentar as chances de sucesso e impedir atuações futuras inconformes e surpresas ao se tatear no escuro. A experimentação depende e é motivada por informações. Como sustentado em coluna anterior, a “experimentação opera em pequena escala e visa a favorecer o aprendizado fatual e incremental, a descoberta das variáveis relevantes e a coleta de informações antes da decisão regulatória geral ou da generalização de práticas bem-sucedidas” [1]. Em síntese, na fase de planejamento da experimentação administrativa deve-se extrair o máximo da informação disponível, avaliar as práticas usuais, ponderar custos e benefícios, considerar o contexto local e a opinião dos usuários para avançar na experimentação. A administração pública é mais do que executar a lei de ofício — exige ouvir, observar, monitorar e planejar mudanças gerais, administrativas ou legislativas, e alterações experimentais ou incrementais, exigentes do aprendizado com os erros e acertos do experimento.
Os instrumentos de diálogo representam exatamente os mecanismos que permitem a administração pública divulgar, captar e processar informações em procedimento dinâmico de troca com privados, sejam eles administrados em geral ou entidades diretamente interessadas no processo. Tanto a consulta pública quanto a audiência pública são previstos na Lei de Processo Administrativo (LPA) — Lei nº 9.784/1999 — como instrumentos de instrução para “manifestação de terceiros” (artigo 31) e para “debates sobre a matéria do processo” (artigo 32), respectivamente. Assim, ambos são espaços de diálogo promovidos por autoridade administrativa para obter informações de pessoas e entidades externas — a consulta pública através de contribuições escritas e a audiência pública por meio de contribuições orais.
Além destas previsões expressas a respeito da audiência pública e da consulta pública, a LPA também permitiu em seu artigo 33 o estabelecimento de “outros meios de participação de administrados, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas”. A abertura estabelecida em lei para instrumentos inominados diversos da audiência e da consulta pública, possibilita que a administração pública inove e experimente formas que possam contribuir para seus objetivos [2].
Essa discricionariedade conferida à Administração proporciona múltiplos usos dos instrumentos de diálogo público-privado para trocas de informações, adaptáveis aos objetivos de cada caso. Irene Nohara e Thiago Marrara citam como exemplo de outros meios de participação a realização de “conferências, encontros, enquetes pela Internet, consultas eletrônicas” [3], mas pode-se apontar também a sondagem de mercado e o roadshow.
Portanto, a LPA ao disciplinar o processo administrativo federal de forma geral e aberta, deixa espaço não só para a escolha do instrumento utilizado, como também para a instituição de prazos, procedimentos e coordenação da sua realização [4]. A maleabilidade do procedimento destes instrumentos e a discricionariedade conferida à administração pública, possibilitam o uso estratégico e intencional dos instrumentos a fim de alcançar objetivos específicos.
Observa-se que cada um dos instrumentos de diálogo pode ser promovido em diferentes espécies, dependendo da sua finalidade e público-alvo. Pode-se identificar consultas públicas ou audiências públicas: (1) técnicas, voltadas para especialistas em determinados assuntos [5]; (2) com a população impactada, visando colher a opinião dos diretamente afetados [6]; (3) com possíveis interessados, buscando escutar players com interesse direto na questão; e (4) livres, abertas a todos.
As informações captadas pelos instrumentos de diálogo citados e sua utilidade prática para administração pública dependerão de escolhas conscientes e intencionais, bem como do procedimento adotado. É preciso saber qual a finalidade visada para identificar a melhor forma de alcançá-la — o que inclui a escolha da espécie de instrumento de diálogo, do momento para sua realização, e do público-alvo. Assim, antes de promover um espaço de diálogo, o gestor público deve se perguntar (1) o que quer descobrir, (2) quem será capaz de proporcionar tal descoberta, (3) qual instrumento possibilitará captura de informações com maior qualidade, e (4) qual o melhor momento para conseguir as informações desejadas.
A resposta de cada uma dessas perguntas impacta o resultado da outra, sendo a identificação da finalidade determinante para as escolhas procedimentais. Assim, sabendo o que se quer descobrir e quem pode fornecer a informação desejada, é possível identificar o melhor instrumento de captura de informações.
Assim como a finalidade, o público-alvo e a espécie de instrumento de diálogo utilizado, o tempo é um fator crucial para a efetividade do processo de captação de informações. Como apontado em artigo anterior, a “coordenação de interesses, informações, recursos e competências no âmbito da Administração Pública pressupõe a programação do tempo de tomada das decisões” [7]. Assim, se o espaço de diálogo ocorrer cedo demais, pode ocorrer ausência de parâmetros seguros e informações confiáveis suficientes para que os participantes tenham noção do proposto e possam contribuir de forma relevante. Já se ocorrer tarde demais, com tudo praticamente encaminhado, pode não haver muito espaço para contribuições e mudanças de rumo. Estabelecer quando é cedo ou tarde demais também dependerá do objetivo e da função da audiência ou da consulta.
Vale destacar que a utilização de instrumentos de diálogo não precisa se limitar a um único momento em uma oportunidade de experimentação — pode ocorrer em diversos momentos do processo [8], inclusive com a mistura de diferentes instrumentos desde que faça sentido no caso específico e colabore para uma finalidade determinada e condizente com as escolhas.
Coletadas as informações que auxiliarão na tomada de decisões durante a experimentação administrativa através de instrumentos de diálogo público-privado, outro ponto importante é o estabelecimento do nível de vinculação da administração pública ao utilizar estes instrumentos.
Pode-se falar em vinculação para a realização em si da audiência pública ou da consulta pública (artigo 10, VI da Lei 11.079/2004), bem como de vinculação para apresentação de resposta fundamentada (artigo 31, §2º e artigo 34 da Lei 9.784/1999), mas a Administração não está vinculada a acatar as contribuições. Assim, o dever de publicidade vai além de meramente informar sobre o objeto do procedimento de diálogo e de divulgar as contribuições e o que ocorreu, sendo necessário prestar respostas e explicar o encaminhamento. O que não significa que a administração pública deva acatar as contribuições recebidas.
Em verdade, os instrumentos de diálogo participativo, como a audiência pública e a consulta pública, não podem ser apenas encenações teatrais administrativas. Criam vinculação cognitiva, pois obrigam o gestor a avaliar e a responder às manifestações apresentadas, ao menos de forma agrupada. Essa é uma decorrência lógica da autovinculação administrativa e deriva do ato de convocação do instrumento de diálogo e monitoramento. Os instrumentos referidos não criam vinculação decisória, mas a ausência de resposta e consideração das manifestações apresentadas pode ensejar a nulidade desses eventos administrativos, o que em alguns casos pode paralisar procedimentos e iniciativas governamentais, quando estes instrumentos participativos sejam de realização obrigatória (vg, artigo 2º, XIII, e artigo 40, § 4º, I, da Lei Federal 10.257/2001).
A avaliação sobre a repercussão das contribuições no plano decisório cabe ao gestor, que pode optar por um rumo a seguir mesmo que ocorra maioria de contribuições em sentido oposto. Nesse caso, há ônus maior para explicação da decisão contrária. Por óbvio, no caso de a decisão ser alinhada com as contribuições recebidas, essas, naturalmente, acabam reforçando e servindo de justificativa parcial para a decisão, diminuindo o ônus argumentativo e explicativo da Administração.
No documento “Avaliação da participação na elaboração de políticas públicas” da OCDE, colhe-se:
“El propósito más frecuente es el de respetar la información, la consulta y la implicación de los ciudadanos? La respuesta es no. Es tan relevante evaluar el proceso de control y monitorización como el de aprendizaje y el de obtención de apoyo para las decisiones” [9].
A apresentação das respostas da administração pública deve ser cuidadosa com o conteúdo da justificação, bem como adotar formas acessíveis. A comunicação é um aspecto extremamente relevante dos mecanismos de diálogo público-privado tanto em momento prévio de apresentação de informações pela administração para os participantes, quanto em momento final com o retorno e encaminhamento dos resultados. As respostas podem ser politicamente sensíveis, de forma que uma boa comunicação, com respostas completas e bem fundamentadas, bem como a escolha de momento oportuno para a divulgação dos resultados, pode fazer toda a diferença na sua consequência para o projeto. Portanto, deve-se contar com estratégia de comunicação — o que implica também saber com quem se está dialogando, que informações se quer passar, e qual o objetivo visado.
Dadas as considerações apresentadas, entende-se que a utilização de instrumentos de diálogo em processos administrativos consiste em processo de troca de informações e aprendizado mútuo, porém possui repercussões administrativas relevantes. Aqueles que participam aprendem sobre o projeto, a política pública envolvida e as intenções da administração pública, enquanto esta aprende sobre a recepção do que apresentou, a opinião dos participantes, a existência de interesses envolvidos, tendo a oportunidade e a obrigação de considerar as manifestações recebidas.
Audiências e consultas públicas municiam processos de experimentação administrativa e podem servir de base para instrumentos diversos com propósitos semelhantes, mais ajustados ao contexto, que igualmente obrigam a administração a lhes conferir consistência e resposta. Eles auxiliam a administração pública a compreender os interesses em jogo, os interessados e contrainteressados, elementos essenciais para que se possa testar práticas experimentais, inovadoras e em regime de monitoramento. Sabe-se que a lei não pode conter toda a ação administrativa e entender a administração pública como agente capaz de inovar impõe à função administrativa a necessidade de experimentar como atividade diária comum e não só como resposta à momentos de crise [10]. Experimentar não é lançar precedentes, protocolos e práticas estabelecidas pela janela. Experimentação e inovação podem partir de chão sólido e estável e nem sempre há necessidade de reinventar a roda.
Os instrumentos de diálogo previstos na LPA são exemplos de processos administrativos que podem ser utilizados como ferramentas experimentais na gestão pública. A identificação do potencial uso desses mecanismos obriga também a reconhecer um grau mínimo de vinculação cognitiva que deles deriva. Resta à administração pública assumir que no seu interior cabem inovações criativas na teoria e na prática da gestão [11], porém também a responsabilidade de preservar a integridade e a relevância social dessas iniciativas, respondendo ao cidadão que aceita ao seu convite para opinar e avaliar políticas e iniciativas públicas em processos administrativos participativos.
[1] MODESTO, Paulo. Direito administrativo da experimentação: uma introdução. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-14/interesse-publico-direito-administrativo-experimentacao-introducao
[2] Destaco mais uma vez a importância da autonomia legislativa dos entes da federação no processo administrativo. Como destaquei em artigo anterior: “Preservada a autonomia legislativa poderão as unidades subnacionais inovar na matéria administrativa, sem amarras centralistas, exercitando o papel também de “laboratórios de experimentação” em matéria processual administrativa, respeitados os princípios constitucionais obrigatórios”. MODESTO, Paulo. Federalismo administrativo, processo e experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/interesse-publico-federalismo-administrativo-processo-experimentacao.
[3] NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. Processo administrativo: Lei nº 9.784/99 comentada. São Paulo: Atlas, 2009. p. 244.
[4] Como apresentado em artigo anterior: “Por óbvio, preservada a autonomia administrativa da própria União, cabe a ela disciplinar o processo administrativo federal, mas não legislar sobre prazos, procedimentos, coordenação orgânica, recursos administrativos ou legitimados para o processo administrativo com eficácia nacional abrangente, de modo a alcançar as demais unidades da Federação”. MODESTO, Paulo. Federalismo administrativo, processo e experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/interesse-publico-federalismo-administrativo-processo-experimentacao.
[5] A título de exemplo, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo realizou audiência pública especializada voltada para a comunidade cientifica durante o processo de licitação do projeto de concessão do Zoológico de São Paulo e do Jardim Botânico (https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/2020/04/sima-convoca-comunidade-cientifica-para-audiencia-sobre-concessao-do-zoo-e-botanico/).
[6] A título de exemplo, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo realizou audiência pública com objetivo de “apresentar o projeto de concessão e receber contribuições das comunidades locais” durante o processo de licitação do projeto de concessão do Parque Estadual Turístico Alto Ribeira – PETAR.
[7] MODESTO, Paulo. O silêncio administrativo como técnica de experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, jan. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-27/interesse-publico-silencio-administrativo-tecnica-experimentacao.
[8] O Relatório de Pesquisa “Potencial de Efetividade das Audiências Públicas do Governo Federal” produzido pelo Ipea cita dentre as soluções de aperfeiçoamento a realização de audiências em mais de um momento: “A partir da análise das dimensões expostas, é possível elaborar algumas sugestões para o aperfeiçoamento das APs como espaços participativos de interação entre Estado e sociedade. Em primeiro lugar, a ocorrência de audiências em apenas um momento do processo decisório de Belo Monte prejudicou a efetiva participação no caso aqui estudado. Como mencionado, as audiências ocorridas seguiram a legislação, que prevê audiências no âmbito do processo de licenciamento ambiental no momento anterior à emissão da LP com o objetivo de discutir o EIA-Rima. Entretanto, a limitação da ocorrência de audiências em um momento específico para discutir projetos tão polêmicos e complexos, como é o caso de Belo Monte, gera dois problemas: de um lado, a sociedade reivindica uma participação ao longo de todo o processo decisório; e, de outro, técnicos do Ibama afirmam que muitas informações importantes são definidas em período posterior à aprovação da LP”. IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Potencial de Efetividade das Audiências Públicas do Governo Federal. Relatório de Pesquisa. Brasília, 2013. p. 120.
[9] Evaluación de la participación pública en la elaboración de políticas públicas [Texto impreso] I traducción de María José Burgos. _l.a ed.- Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública: Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (OCDE), 2008 -142 p.; 24 Cffi- (Estudios y Documentos).
[10] UNGER, Roberto Mangabeira. A constituição do experimentalismo democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 257, p. 57-72, 2011. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/8584
[11] “La gestión pública debe reconocerse como el principal ámbito de innovaciones creativas en la teoría y la práctica de la Gestión”. González, José Juan Sánchez. Gestión Pública y Governance. Instituto de Administración Pública del Estado de México. Ioluca, México, 2002. Mariana Mazucatto em seu texto “O Estado empreendedor”, por igual, demonstrou o papel central do Estado para diversos desenvolvimentos tecnológicos, de inovação e pesquisa. Cf. MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor. São Paulo: Portfolio Penguin, 2014.
Considerando o que discutimos no item “Discutindo o básico”, as disposições legais e os textos sobre discricionariedade e vinculação trazidos no item “Conectando-se com a realidade jurídica e administrativa”, vamos conhecer um caso no qual houve problemas de comunicação entre a Administração Pública e a comunidade relacionada a um projeto de concessão. Tais dificuldades no tratamento entre o ente público e as entidades privadas civis, especialmente sobre a forma de realização de audiências e consultas públicas, ocasionaram no questionamento do processo na Justiça e na suspensão por prazo indeterminado da etapa de consulta pública do processo de licitação.
“Ambientalistas publicam moção contra concessão do Petar à iniciativa privada pela gestão Doria”
Parque Estadual Turístico Alto Ribeira é reconhecido como patrimônio da humanidade. Governo estadual abriu edital de concessão à iniciativa privada para consulta pública em outubro de 2021, mas moradores da região são contra projeto. Processo foi parar na Justiça.
Por Marina Pinhoni, g1 SP — São Paulo
Um grupo de cerca de 200 entidades ambientais e cientistas publicou nesta segunda-feira (7) uma moção contra o projeto apresentado pela gestão João Doria (PSDB) de concessão à iniciativa privada por 30 anos do Parque Estadual Turístico Alto Ribeira (Petar), localizado no Vale do Ribeira, no interior de São Paulo.
“São 160 hectares de um patrimônio ambiental público, reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial. Não faz sentido essa concessão antes de um amplo debate com a sociedade civil para avaliar os impactos”, afirmou em nota Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), que está à frente da moção.
O g1 questionou a Secretaria do Meio Ambiente sobre o documento enviado pelos ambientalistas. Em nota, a pasta afirmou que “que a moção divulgada contém erro na premissa, uma vez que não se trata de privatização, mas concessão onde o bem público continua sob responsabilidade do estado.”
“A nota ignora ainda que diversas sugestões das comunidades tradicionais foram consideradas no projeto tais como: não sobrepor áreas da concessão com o território das comunidades, obrigação de monitor ambiental autônomo, fomento ao desenvolvimento local e promoção da cadeia de serviços turísticos. No momento o processo de oitivas das comunidades tradicionais para contribuição em relação à proposta está reaberto até 31 de março”, diz o texto.
O anúncio da concessão do parque foi feito por Doria em 2019, dentro do programa “Vale do Futuro”, que prevê investimentos de R$ 2 bilhões no Vale do Ribeira. Em outubro de 2021, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente publicou o edital inicial do projeto para consulta pública.
Os moradores e trabalhadores da região, no entanto, não concordam com a maneira com que o processo foi conduzido. Eles afirmam que não houve participação ativa da comunidade local, e temem os impactos ambientais e para economia local que o projeto pode trazer.
A concessão também passa por um imbróglio judicial. No ano passado, uma liminar suspendeu o início da consulta pública até que estudos de impacto ambiental fossem apresentados pela secretaria.
Outra decisão do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, no entanto, cassou a liminar no dia 18 de dezembro. Em janeiro deste ano, a advogada que representa os moradores na ação popular entrou com um agravo pedindo a revisão da decisão. (leia mais abaixo).
Para Carlos Gianazzi, deputado estadual acompanha a proposta, “a concessão do Petar por 30 anos causará uma destruição da convivência saudável que existe hoje entre a comunidade e o meio ambiente. Veremos a precarização da vida dos trabalhadores e a exploração irresponsável da natureza com olhos apenas para o lucro de uma empresa externa a região.”
Em dezembro de 2021, a Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) se posicionou contra o projeto.
(…)
Processo suspenso na Justiça
Um das principais reclamações apresentada pelas comunidades locais foi a falta de consulta prévia para elaboração conjunta do modelo do edital. Os moradores afirmam que o contrato já foi apresentado pronto pela secretaria, e sem garantias que haviam sido prometidas em conversas anteriores.
De acordo com a pasta, foram realizadas reuniões com os moradores, e o edital ainda está em fase de construção e discussão para apontamentos da sociedade.
A comunidade também reclama que a audiência pública oficial marcada no processo do edital aconteceu de forma virtual e com limitação de público, o que impossibilitou a participação ativa dos interessados no projeto.
Após manifestação do Ministério Público de São Paulo, a Justiça suspendeu, por 90 dias, a validade da audiência pública até que o governo estadual apresentasse esclarecimentos.
Em decisão liminar do dia 7 de dezembro, a Justiça confirmou a suspensão do processo por tempo indeterminado.
“Entendo por bem deferir parcialmente a liminar e suspender o processo de consulta pública número 03/2021, lançado pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo em relação à concessão do PETAR, por prazo indeterminado”, diz a decisão da juíza Hallana Duarte Miranda.
A magistrada determinou ainda que a secretaria apresentasse:
- Estudo de impacto ambiental, social e econômico relativo à concessão, de forma transparente e acessível à população local, no prazo de 180 (cento e oitenta dias);
- Formule prazo razoável para a Consulta Pública, depois da apresentação dos documentos, condizente com todos os elementos que fundamentam essa decisão, que não pode ser igual ou menor do que 10 dias;
- Realize, no mínimo, uma audiência pública para cada município envolvido, sendo vedada a realização de audiência única;
- Nesse período, promova meios apropriados de participação livre da comunidade (estratégias), formulando, preferencialmente, protocolos e consultas, respeitada a comunidade tradicional e a população local.
Questionada pelo g1, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente afirmou por meio de nota no dia 8 de dezembro que os estudos de viabilidade haviam sido realizados na etapa preliminar e poderiam ser acessados no endereço: https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/2021/10/consulta-publica-no-03-2021.
Na audiência realizada no dia 9, no entanto, a assessora técnica da secretaria Roberta Buendia disseque os estudos solicitados pela decisão judicial já foram realizados, mas ainda não foram disponibilizados à população.
“Quando a gente faz a publicidade da documentação, a gente publica a íntegra da minuta de contrato, edital, anexos, entre outras documentações. Esse produto específico que eles solicitaram foi contratado, mas não foi disponibilizado porque não compõe a lógica de como a gente faz o processo de consulta. Mas vamos disponibilizar para que todos tenham acesso e também em função dessa demanda judicial”, disse ao g1.
No dia 18 de dezembro de 2021, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo cassou a liminar que suspendia o processo. Em janeiro deste ano, a advogada que representa os moradores na ação popular entrou com um agravo pedindo a revisão da decisão.
Verifique abaixo o conteúdo da decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo após o Agravo Interno Civil que solicitava a revisão da suspensão da liminar que impediu a continuação do processo licitatório comentado acima.
TJSP, Agravo Interno Cível n.º 2298062-28.2021.8.26.0000/50000
Agravo interno – Suspensão de liminar deferida – Decisão liminar proferida em ação popular que suspendeu por prazo indeterminado o processo de consulta pública no 03/2021, lançado pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo em relação à concessão do PETAR, determinando que a ré: a) apresente e disponibilize o estudo de impacto ambiental, social e econômico relativo à concessão de forma transparente e acessível à população local, no prazo de cento e oitenta dias; b) formule prazo razoável para a consulta pública depois da apresentação dos documentos previstos no item “a”, condizente com todos os elementos que fundamentam essa decisão, que não pode ser igual ou menor do que dez dias; c) realize, no mínimo, uma audiência pública para cada município envolvido, vedada a realização de audiência única, e que elas ocorram depois do cumprimento do item “a” da decisão; d) nesse período, promova meios apropriados de participação livre da comunidade (estratégias), formulando, preferencialmente, protocolos e consultas, respeitada a comunidade tradicional e a população local – Evidenciada grave lesão à ordem e à economia públicas – Suspensão confirmada – Agravo não provido.
Inconformado com o teor da decisão que suspendeu a eficácia da medida liminar concedida nos autos da ação popular no 1000519-92.2021.8.26.0172, da Vara Única da Comarca de Eldorado Paulista, Silnei Florindo da Silva interpôs agravo interno.
Em síntese, o agravante sustenta que não estavam presentes os requisitos necessários à suspensão da liminar e que a manutenção da decisão recorrida representa ameaça à manutenção das atividades desenvolvidas pela população, ao meio ambiente e patrimônio cultural da região do PETAR.
Contraminuta a fl. 451/480.
É o relatório.
O agravo interno não comporta provimento. Em suas razões, o agravante não apresentou argumentos suficientes para afastar os fundamentos da decisão recorrida em que se concluiu estarem presentes os pressupostos legais para o deferimento do pedido de suspensão dos efeitos da decisão de primeiro grau de jurisdição.
Conforme a decisão agravada, as Leis no 12.016/2009, no 8.437/1992 e no 9.494/1997, que constituem a base normativa do instituto da suspensão, permitem que o Presidente do Tribunal de Justiça, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, suspenda a execução de decisões concessivas de segurança, de liminar, ou de tutela antecipada proferidas pelos Juízos de primeiro grau em detrimento das pessoas jurídicas de direito público. Como medida de contracautela, a suspensão de liminar pelo Presidente do Tribunal competente para apreciar o recurso ostenta caráter excepcional e urgente, destinada a resguardar a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas.
Nesse sentido, destituído de viés infringente, o pedido de suspensão de liminar transita em âmbito limitado de conhecimento do litígio.
O mérito do pedido de suspensão se restringe à apreciação do alegado rompimento da ordem pública em decorrência da decisão liminar, como instrumento de proteção ao interesse público.
Era premente que a liminar prolatada tivesse sua eficácia suspensa, uma vez que, à luz das razões de ordem e segurança públicas, ostentava periculum in mora inverso de densidade manifestamente superior àquele que, aparentemente, animou o deferimento da medida de início postulada.
In casu, a consulta pública suspensa pela decisão liminar faz parte do processo maior de concessão do PETAR para exploração turística em moldes modernos e eficientes, a envolver um dos pilares do Projeto Vale do Futuro, de Desenvolvimento da região do Alto Ribeira.
Assim, o juízo a quo ao conceder em parte a liminar postulada na referida ação popular, a suspender o processo de consulta pública no 03/2021, lançado pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo em relação à concessão do PETAR, por prazo indeterminado, determinando que a ré: a) apresente e disponibilize o estudo de impacto ambiental, social e econômico relativo à concessão, de forma transparente e acessível à população local, no prazo de cento e oitenta dias; b) formule prazo razoável para a consulta pública, depois da apresentação dos documentos previstos no item “a”, condizente com todos os elementos que fundamentam essa decisão, que não pode ser igual ou menor do que dez dias; c) realize, no mínimo, uma audiência pública para cada município envolvido, vedada a realização de audiência única, e que elas ocorram depois do cumprimento do item “a” da decisão; d) nesse período, promova meios apropriados de participação livre da comunidade (estratégias), formulando, preferencialmente, protocolos e consultas, respeitada a comunidade tradicional e a população local, acabou por interferir na gestão pública ligada à concessão de unidade de conservação.
Em outras palavras, a decisão em tela era apta a prejudicar o processo de concessão do parque, impedindo que tanto o Estado quanto a população, e o próprio meio-ambiente, auferissem os benefícios econômicos e de eficiência administrativa constatados em estudos específicos que apontaram para as vantagens da transferência de gestão da unidade de conservação e de sua modernização. Enfim, a decisão retirava da administração pública estadual seu legítimo juízo discricionário de conveniência e oportunidade quanto ao tema.
Ademais, suficientemente configurada a lesão à ordem pública, assim entendida como ordem administrativa geral, equivalente à execução dos serviços públicos e o devido exercício das funções da Administração pelas autoridades constituídas (cf., STA-AgRg 112, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 27.02.08; Pet-AgRg-AgRg 1.890, Rel. Min. Marco Aurélio, red. ac. Min. Carlos Velloso, j. 01.08.02; SS-AgRg 846, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29.05.96; e SS-AgRg 284, Rel. Min. Néri da Silveira, j.11.03.91).
Ponderou-se que, como regra geral, a decisão judicial não pode substituir o critério de conveniência e oportunidade da Administração Pública.
Assim sendo, os elementos expostos forneceram substrato consistente para concluir que a decisão questionada representava potencial de risco à ordem pública, visto que obstaculizava ou dificultava o adequado exercício das funções típicas da administração pelas autoridades legalmente constituídas.
Conforme observado, a preocupação que emergiu da fundamentação da decisão possuía sensível relevância. O assunto diz respeito à proteção ao meio ambiente e às comunidades locais, dentre outros pontos importantes. Entrementes, mormente no momento inicial do processo, nada sugeriu que tal preocupação não tivesse sido respeitada pelo ente público, não caracterizada, portanto, omissão do Poder Público no processo de concessão da unidade de conservação.
Ao fim e ao cabo, presentes os requisitos legais, o caso era mesmo de suspensão da liminar.
Diante do exposto, nego provimento ao agravo interno.
RICARDO ANAFE
Relator
3. DEBATENDO
Após a leitura atenta dos materiais indicados, os alunos estarão preparados para discutir em sala, com a mediação e orientação do professor, questões relacionadas à comunicação entre Administração Pública e pessoas e entes privados. O professor poderá iniciar o debate com perguntas que verifiquem a compreensão do conteúdo, reforcem os conceitos fundamentais e promovam o debate:
1.Existe um ponto ótimo entre o dever de publicidade e a necessidade de resguardar informações estratégicas?
Objetivo: Explorar o equilíbrio entre transparência e sigilo, fundamental para que a Administração pública seja eficiente e confiável.
2. Deve-se exigir mais do que a vinculação cognitiva?
Reflexão: Provocar os alunos a pensar sobre os limites da cognição no processo decisório e se é possível exigir uma consideração maior das contribuições privadas.
3. Cabe ao Judiciário ou aos órgãos de controle determinar os detalhes dessa troca comunicativa?
Atividade: Realizar um debate onde grupos defendam o papel do Judiciário versus a discricionariedade administrativa.
4. Dado que a lei não contém toda a atividade administrativa e que o gestor deve complementá-la com expertise, até que ponto cabe ao Judiciário interferir nas escolhas estratégicas?
Objetivo: Analisar o papel do Judiciário no mérito administrativo, especialmente em decisões complexas e técnicas onde o gestor utiliza seu conhecimento específico.muns e particularidades setoriais que levam ao estabelecimento de mecanismos específicos para lidar com o problema.
4. APROFUNDANDO
Se houver tempo disponível ou interesse em aprofundar o tema, seguem algumas leituras recomendadas.
ABEN, Tom A. E.; VAN DER VALK, Wendy [et. al.]. “Managing information asymmetry in public-private relationships undergoing a digital transformation: the role of contractual and relational governance”. In: International Journal of Operations & Production Management, vol. 41, No. 7, 2021. Emerald Publishing, 2021.
AKERLOF, George A.. The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, Vol. 84, No. 3. (Aug. 1970), pp. 488-500.
Evaluación de la participación pública en la elaboración de políticas públicas [Texto impreso] I traducción de María José Burgos. _l.a ed.- Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública: Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (OCDE), 2008 -142 p.; 24 Cffi- (Estudios y Documentos).
IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Potencial de Efetividade das Audiências Públicas do Governo Federal. Relatório de Pesquisa. Brasília, 2013.
MODESTO, Paulo. Participação Popular na Administração Pública: mecanismos de operacionalização. In: Revista Eletrônica de Direito do Estado. Número 2 – abril/maio/junho de 2005. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, 2005.
MORENO, Maís. A participação do administrado no processo de elaboração dos contratos de PPP. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.
NÓBREGA, Marcos. Direito e Economia da Infraestrutura. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 21-49 e 77-132.
PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática: institutos de participação popular na administração pública. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004.