1. CONHECENDO O BÁSICO
O objeto desta aula é a interação entre dois tipos de entidades: o regulador concorrencial e o regulador setorial.
No Brasil, a instituição responsável pela defesa da concorrência é o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Ele protege a ordem econômica e defende a liberdade de competição.
Suas competências se dividem em duas grandes categorias. A primeira é o controle de condutas, uma atividade repressiva. Quando o CADE identifica uma violação à concorrência, ele aplica uma sanção. A segunda é o controle de estruturas (ou controle de concentrações). Algumas operações societárias com determinado faturamento devem ser analisadas pelo CADE antes de ocorrerem. A ideia é que o CADE protege a livre concorrência ao controlar as “estruturas do mercado” – ou seja, a organização da atividade empresarial.
Já a regulação setorial está a cargo de diversos entes. Mas é uma função comumente desempenhada pelas agências reguladoras, como a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
A regulação setorial é muito ampla. As agências reguladoras desempenham os mais diversos papéis. Editam normas técnicas sobre o setor regulado, sancionam empresas que participam do setor e promovem determinadas políticas públicas. Às vezes, agências reguladoras elaboram e são parte de contratos de concessões.
E em muitos casos as funções envolvem aspectos concorrenciais. Quem deve analisar fusões entre empresas de um setor regulado? Quem pode dizer se a atuação de um regulado é anticoncorrencial ou não? Quem dá a última palavra sobre a competição em um setor regulado?
As leis de regulação setorial utilizam declarações de princípio pró-concorrenciais.1 Em geral não estabeleceram regras específicas, determinadas – apenas ordens genéricas de aplicação de parâmetros concorrenciais. Por exemplo, a Lei 9.478/1997, que criou a Agência Nacional do Petróleo, determinou que ela promova “medidas para ampliar a concorrência no mercado de gás natural” (art. 8º, inc. XXIX).
Mas as leis também não disseram como ocorreria a relação com o ente de defesa da concorrência – o CADE. Sem normas específicas, as instituições (CADE e agências reguladoras) começaram a disputar o espaço de aplicação da concorrência nos setores regulados.
Há casos extremos. Imagine que um regulador setorial edite uma norma permitindo a cobrança de determinada taxa. Mas que o CADE diga que a taxa viola o direito concorrencial e não deve ser cobrada. E agora, o que fazer? Quem deve definir se a cobrança é lícita? Esse cenário complexo ocorre no setor portuário, em que ANTAQ e CADE realizam uma queda de braço pelo Serviço de Segregação e Entrega de Contêiners (SSE).
É até natural que CADE e agências reguladoras discordem. Suas preocupações são muito diferentes e a legislação atribui fins distintos a esses órgãos. O objetivo do CADE é a própria promoção da concorrência, a convivência dos entes nos mercados competitivos e a garantia da ordem econômica. Já a finalidade das agências é o fortalecimento dos setores que elas regulam – e a concorrência pode ou não ser um meio para fortalecer o setor.
Também há diferença de técnicas e conhecimentos. Os servidores do CADE são especialistas em concorrência. Qualquer tema apresentado será analisado do ponto de vista concorrencial. Mas os servidores de agências são especializados no setor regulado: seu conhecimento é profundo e verticalizado sobre o funcionamento de um serviço específico. As informações (e visões) deles sobre os temas são distintas.
A doutrina geralmente trata o tema pelo estudo de competências: quem pode e deve decidir sobre determinado tema? Seu esforço é para interpretar e entender a legislação para atribuir o poder de decidir ao CADE ou agência reguladora.
Mas o tema pode ser visto de outro modo. Podemos enxergar as disputas entre CADE e agências reguladoras como uma relação. Ora os entes estão mais distantes, ora mais próximos, mas em constante interação. Flutuam entre coordenação e descoordenação regulatória. A pergunta passa a ser: quais comportamentos de um regulador afetam outro? Como?
Nessa relação espinhosa, surgem fatores e mecanismos capazes de resolver ou de criar conflitos. Quais são? Como funcionam? Indo além, quais são os melhores mecanismos para essa relação?
O direito ocupa grande papel aqui. Ele aloca competência e decide entre privilegiar a regulação setorial ou a regulação concorrencial em cada caso. Mas também cria mecanismos para que os reguladores interajam entre si.
Um exemplo do primeiro papel do direito está na Lei 12.529/2011. Ela definiu que o CADE controlaria atos econômicos (como fusões de empresas) nos mercados regulados (art. 65, inc. I). Mas as agências reguladoras não ficaram para trás e ganharam poder para recorrer de decisões do CADE em mercados regulados.
Já a Lei 13.848/2019 dedicou todo um capítulo para a “interação entre as agências reguladoras e os órgãos de defesa da concorrência”. Seu foco foi a relação, o dinamismo entre esses entes. As regras buscaram aumentar a cooperação entre agências e CADE. Por exemplo, a lei determinou que as agências deem pareceres ao CADE quando solicitados e que comuniquem ao CADE caso identifiquem infrações concorrenciais (art. 26, §§ 2º e 3º).
Esses dois papéis do direito interagem entre si. Decidir que um dos reguladores é competente para algo pode fortalecer seu papel nessa relação. Ou o desenvolvimento da relação pode, no fim, evitar conflitos de competência. Vamos analisar mais como esses reguladores convivem e como os papéis do direito se relacionam?
- A expressão é de SUNDFELD, Carlos Ari. Contratações públicas e o princípio da concorrência. Revista de Contratos Públicos, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, mar./ago. 2012, p. 76. ↩︎
2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
Antes, vamos dar um passo atrás. Por qual motivo devemos nos preocupar com os conflitos e a a sobreposição entre CADE e agências reguladoras?
A reportagem abaixo descreve a necessidade de dupla aprovação do CADE e da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) para operações societárias no setor.
CADE e agências reguladoras tentam acordo para avaliar fusões e aquisições
Valor Econômico, 20 de novembro de 2012
A nova Lei Antitruste brasileira deu ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) amplo poder de avaliar os processos de fusão e aquisição, mas o Super Cade não é tão super assim quando se trata de negócios em setores regulados, como telecomunicações. A nova legislação não excluiu a necessidade de as agências reguladoras darem avais a processos de concentração. Assim sendo, são necessárias duas aprovações para um negócio ir adiante, uma do regulador e outra do Cade.
Para evitar que a dupla instância de aprovação gere problemas, o Cade programou uma série de acordos com as agências reguladoras para troca de informações e acesso à base de dados dos setores regulados. Mas o escopo de tais acordos deve ser ampliado, buscando facilitar os processos de julgamento e evitar o constrangimento de decisões divididas.
Uma primeira reunião deve acontecer hoje com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). De acordo com o Rodrigo Zerbone, Conselheiro da Anatel, o que se pretende com esse acordo de cooperação é buscar uma interação entre os órgãos e evitar decisões conflitantes. “Já estamos negociando e discutindo um acordo de cooperação que vai tratar da parte de competição”, disse.
Segundo Zerbone, a Anatel não tem como deixar de fazer uma avaliação sobre os atos de concentração do setor de telecomunicações, pois essa é uma demanda da Lei Geral de Telecomunicações (LGT). No seu Artigo 97, a LGT diz que: “Dependerão de prévia aprovação da Agência a cisão, a fusão, a transformação, a incorporação, a redução do capital da empresa ou a transferência de seu controle societário.” A nova lei antitruste não alterou esse dispositivo.
“Se é uma empresa prestadora de serviços de telecomunicações, que tem outorga, ela está vinculada ao poder concedente, que no caso é a Anatel. Ela tem de se submeter às regras da Anatel e as regras da Anatel exigem que para ela consumar qualquer transferência de controle ela tem de ter o sinal verde da agência. Isso é pressuposto, as empresas sabem disso”, diz o conselheiro.
Um ponto que pode gerar conflito é que o Cade, agora, tem prazos estabelecidos para fazer seu julgamento, caso contrário a aprovação da operação é automática. A LGT não estabelece nenhum prazo para a Anatel fazer suas avaliações.
Para Zerbone, essa questão de prazos não será problema. O conselheiro explica que a agência é célere nas suas avaliações que englobam a parte regulatória, que verificam se a empresa pode e tem as condições de prestar os serviços, bem como nas avaliações sobre competição no mercado. Já ao Cade, explica, caberia a análise mais robusta do quadro competitivo.
Entre os termos do acordo de cooperação que está em gestação, o conselheiro destaca que um órgão vai acompanhar e considerar a decisão do outro na sua tomada de decisão, com isso fica mais fácil a obtenção da dupla aprovação, que segundo o conselheiro se faz necessária a qualquer negócio de fusão e aquisição no setor.
O maior potencial de dificuldade nessa tomada de decisão conjunta, diz Zerbone, envolve as decisões de aprovação com restrição. “Aí está um desafio desse acordo de cooperação, de elaborar mecanismos para que as restrições sejam complementares e não conflitantes”, disse.
O órgão regulador pensa de forma diferente que o Cade, que se dedica apenas às questões referentes ao ato de concentração. A Anatel vê, além desse fator, a capacidade de investimento, atendimento adequado aos clientes, respeito ao consumidor, entre outros quesitos. “Acho que caminhamos para um cenário que não terá ônus maiores para o setor privado. As aprovações serão céleres e preservando as competências da Anatel e do Cade”, diz Zerbone.
A reportagem revela o primeiro problema: a atribuição de competências semelhantes a entes diferentes. Há risco de decisões contraditórias e de interpretações distintas. Os envolvidos não têm segurança jurídica e a burocracia é aumentada. Os processos também se tornam mais lentos.
Já o trecho abaixo revela uma (velha) discussão entre um regulador setorial e o CADE. Sucessivas decisões do CADE e da ANTAQ entraram em conflito sobre uma taxa portuária. E a quem caberia a última palavra nesse caso?
Regulação e concorrência nos setores de infraestrutura: análise do caso brasileiro à luz da jurisprudência do CADE
Tese (doutorado) de Patrícia Regina Pinheiro Sampaio.
O caso envolveu exatamente uma questão relacionada à armazenagem da carga, consistente em se avaliar se era ou não contrário à concorrência a cobrança, efetuada por alguns terminais alfandegados, de retribuição pecuniária pela movimentação de carga de terminais alfandegados para os retroalfandegados (THC2).
Entendendo que a postura de cobrar preço aos terminais retroalfandegados gerava lhes uma desvantagem competitiva, com potencial de fechamento do mercado, o CADE determinou a imediata cessação da prática, a cominação de multa equivalente a 1% (um por cento) do mercado de armazenagem alfandegada de contêineres, bem como outras sanções ancilares. Este, no entanto, é um caso bastante complexo, pois, por maioria, a ANTAQ, no mérito, não vislumbrou, na referida conduta, a existência de infração da ordem econômica […]
Verificou-se, portanto, na prática, situação em que o CADE decidiu que a existência de regulação setorial não era suficiente a coibir totalmente a potencialidade de práticas anticompetitivas, tendo determinado a sua cessação. No entanto, é de se destacar a dificuldade do caso concreto, pois, sem uma solução dada pela via regulatória que esclarecesse se seria devida qualquer retribuição pecuniária pelo fato de o terminal alfandegado transferir os contêineres recebidos aos terminais retroalfandegados, mostrava-se difícil a resolução do tema, à qual, no entanto, a autoridade concorrencial não poderia se furtar. Aliás, como visto, a ANTAQ, em momento posterior ao acórdão do CADE, decidiu de forma contrária à autoridade concorrencial, estando o tema em discussão no Poder Judiciário.
Essa discussão se arrasta há 24 anos. O assunto chegou diversas vezes ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal de Contas da União (TCU) também interveio no tema. O conflito gerou alta judicialização do tema e conduziu à mobilização de diversos outros atores. Mas ainda não foi resolvido.
Divergências entre CADE e agências reguladoras podem ter grandes consequências. Aumentam o número de processos, reduzem a estabilidade das instituições e trazem insegurança jurídica. E diminuem a possibilidade de que cada órgão atinja seu objetivo. Além disso, diferentes estruturas institucionais são utilizadas no mesmo assunto e os gastos públicos e privados são duplicados. Existe um custo regulatório alto a ser pago pela sobreposição de competências.
Se há problemas na sobreposição de competências, quais outros caminhos existem? A doutrina tradicional discute isso há tempos. Tenta entender, para cada caso brasileiro, qual foi a estrutura adotada. Para isso, aponta cinco grandes modelos de distribuição de competências.
A isenção antitruste significa que todas as competências estão concentradas no regulador setorial. Ele toma decisões sobre o setor regulado, o que inclui aspectos concorrenciais dentro do setor. O órgão concorrencial não atua em setores regulados.
O sistema de competências concorrentes é aquele em que o direito concorrencial (e a chamada regulação econômica) é responsabilidade dos reguladores concorrencial e setorial. É uma forma típica de sobreposição de competências.
As competências complementares são um sistema de atribuições bem definidas. A agência é responsável pela regulação setorial, mas não aplica normas concorrenciais – essa aplicação cabe apenas ao órgão concorrencial. No geral, afirma-se que esse é o modelo adotado para o Brasil. Você concorda com essa afirmação?
Na regulação antitruste, mesmo aspectos de regulação setorial ficam a cargo do órgão concorrencial. É um modelo raro. Por qual motivo?
Já a desregulamentação significa grande redução da regulação setorial. Restaria apenas a competência para defesa da concorrência, que ficaria com regulador concorrencial.
Esses são quadros para análise de distribuição de competências. Mas é importante lembrar que cada legislação é única e há diferenças sutis, não captadas por esses modelos, que precisam ser sempre analisadas.
Como conversamos na introdução, existe um outro lado de preocupação. As competências importam, mas há muitos outros fatores influentes nessa relação.
Por exemplo, pesquisadores já identificaram que o CADE atua mais sobre setores em que a própria lei abriu espaço para concorrência, mas é cauteloso naqueles em que a lei não determina o grau de concorrência:
Espaços e interfaces entre regulação e defesa da concorrência: a posição do CADE
Por Caio Mário da Silva Pereira Neto e José Inácio Ferraz de Almeida Prado Filho.
Revista Direito GV, São Paulo, v. 12, n. 1, jan.-abr. 2016, p. 13-48.
Com isso, observa-se que a postura da jurisprudência do CADE é bastante cautelosa no que tange à delimitação dos espaços concorrenciais. O Conselho tem se permitido avaliar e eventualmente apontar falhas em algumas políticas regulatórias que restringem a concorrência. No entanto, o resultado desse tipo de análise limita-se a requisição ou solicitação de providências para a adequação de molduras regulatórias aos ditames concorrenciais, nos termos do revogado art. 7º, inciso X, da Lei n. 8.884/94, equivalente ao art. 9º, inciso VIII, da Lei n. 12.529/2011. […]
Na prática, o que se nota é que os entes reguladores (i.e., Agências ou Administração Direta na qualidade de Poder Concedente) têm assumido a dianteira no papel de determinação e desenho do grau de abertura de mercados regulados à concorrência, contando com grande deferência do CADE. […]
Todos esses casos corroboram a visão de que, uma vez definidos os espaços competitivos no âmbito de mercados regulados, o CADE sente-se bastante confortável em exercer plenamente suas competências de prevenção e repressão de infrações contra a ordem econômica, assumindo uma clara posição de liderança em relação aos órgãos reguladores. Aliás, como se nota das discussões havidas no mercado de telecomunicações (e.g., casos de EILD), as decisões do CADE nos espaços concorrenciais acabam influenciando alterações na própria moldura regulatória que abre esses espaços, estabelecendo um saudável diálogo institucional entre intervenções ex post das autoridades de defesa da concorrência e a regulação ex ante das agências reguladoras.
A relação entre os reguladores também é influenciada por outros mecanismos: os meios de cooperação regulatória. São métodos formais e informais de cooperação que podem alinhar os dois tipos de regulação.
Esses mecanismos são variados. Os reguladores produzem materiais em conjunto, celebram acordos de cooperação técnica, emitem pareceres sobre temas de sua competência, entre outros.
Um dos mecanismos de destaque é a advocacia da concorrência: uma atividade persuasiva desenvolvida pelo CADE para promover incentivar a adoção de práticas concorrenciais por outros entes. Ele realiza estudos e divulga informações sobre a concorrência em determinados mercados – incluindo os setores regulados.
Esse tipo de atuação pode melhorar a qualidade concorrencial da regulação setorial. Mas é sempre necessário ser cético – qual a efetividade do mecanismo? Eduardo Jordão sintetizou as vantagens e desvantagens da advocacia da concorrência em sua relação com a regulação:
Restrições regulatórias à concorrência
Tese (doutorado) de Eduardo Ferreira Jordão.
A atuação do advogado da concorrência cumpre um papel fundamental no sistema de redução do impacto anticompetitivo da regulação estatal. Esta importância se evidencia em cada um de seus múltiplos campos de atuação: (i) na divulgação dos benefícios sociais da concorrência, (ii) no auxílio ao Poder Judiciário como amicus curiae, (iii) na cooperação institucional com o regulador, (iv) no seu efeito anticaptura, entre outros. Entretanto, merecem particular destaque os efeitos pró-competitivos da atuação do advogado da concorrência em âmbitos não atingidos pela aplicação repressiva (enforcement) do direito antitruste, como o soft-law e as condutas imunizadas pela regulação pública.
De todo modo, a advocacia da concorrência possui também limites e problemas. Seus limites estão ligados ao fato de constituir atividade meramente persuasiva, e não autoritativa. Seus problemas derivam das dificuldades de examinar a efetividade desta atuação vis-à-vis com a sua finalidade. Em específico, é necessário avaliar os custos envolvidos no desempenho desta função e ponderar os diferentes métodos e instrumentos disponíveis para este fim.
Mas os mecanismos de cooperação também têm desafios. Luiz Felipe Monteiro Seixas apresenta algumas de suas dificuldades:
Friends or foes? Coordenação regulatória no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e das agências reguladoras federais
Por Luiz Felipe Monteiro Seixas. F
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 283, n. 2, p. 121-145, maio/ago. 2024.
Cabe destacar que coordenação regulatória não pode ser calcada em instrumentos que resultem num engessamento das atribuições das agências reguladoras e das autoridades antitrustes ou que implique mais burocracia em detrimento da atividade regulatória. Isso não significa que as medidas de coordenação entre reguladores sejam isentas de problemas ou custos, ao contrário. As burocracias regulatórias, como todas as burocracias, desejam proteger seu próprio espaço de competência. Nesse aspecto, as medidas de coordenação adotadas entre reguladores devem possuir caráter dinâmico e flexível, não podendo ser encaradas como um fim em si, mas um meio para o aperfeiçoamento dos instrumentos de regulação setorial e de promoção e proteção da concorrência.
A partir dessas críticas, qual o melhor caminho para criar cooperação regulatória? A legislação deve criar esses mecanismos? Ou deve apenas incentivar sua adoção? E deve prever sanções caso esses mecanismos não sejam utilizados?
Veja o que diz a Lei 13.848/2019, que estabeleceu normas para as agências reguladoras. Quais são os mecanismos previstos? Há mecanismos que os reguladores são obrigados a utilizar? O descumprimento de algum dos deveres de cooperação gera sanção?
LEI Nº 13.848, DE 25 DE JUNHO DE 2019
Dispõe sobre a gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras, altera a Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, a Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, a Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, a Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, a Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000, a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, a Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, a Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, a Medida Provisória nº 2.228-1, de 6 de setembro de 2001, a Lei nº 11.182, de 27 de setembro de 2005, e a Lei nº 10.180, de 6 de fevereiro de 2001.
CAPÍTULO III
DA INTERAÇÃO ENTRE AS AGÊNCIAS REGULADORAS E OS ÓRGÃOS DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA
Art. 25. Com vistas à promoção da concorrência e à eficácia na implementação da legislação de defesa da concorrência nos mercados regulados, as agências reguladoras e os órgãos de defesa da concorrência devem atuar em estreita cooperação, privilegiando a troca de experiências.
Art. 26. No exercício de suas atribuições, incumbe às agências reguladoras monitorar e acompanhar as práticas de mercado dos agentes dos setores regulados, de forma a auxiliar os órgãos de defesa da concorrência na observância do cumprimento da legislação de defesa da concorrência, nos termos da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011 (Lei de Defesa da Concorrência).
§ 1º Os órgãos de defesa da concorrência são responsáveis pela aplicação da legislação de defesa da concorrência nos setores regulados, incumbindo-lhes a análise de atos de concentração, bem como a instauração e a instrução de processos administrativos para apuração de infrações contra a ordem econômica.
§ 2º Os órgãos de defesa da concorrência poderão solicitar às agências reguladoras pareceres técnicos relacionados a seus setores de atuação, os quais serão utilizados como subsídio à análise de atos de concentração e à instrução de processos administrativos.
Art. 27. Quando a agência reguladora, no exercício de suas atribuições, tomar conhecimento de fato que possa configurar infração à ordem econômica, deverá comunicá-lo imediatamente aos órgãos de defesa da concorrência para que esses adotem as providências cabíveis.
Art. 28. Sem prejuízo de suas competências legais, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) notificará a agência reguladora do teor da decisão sobre condutas potencialmente anticompetitivas cometidas no exercício das atividades reguladas, bem como das decisões relativas a atos de concentração julgados por aquele órgão, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas após a publicação do respectivo acórdão, para que sejam adotadas as providências legais.
Vamos agora a um caso de cooperação regulatória que encerrou um conflito de décadas.
Nos anos 90, o CADE e o Banco Central (BACEN) entraram em conflito. Discutiam se o CADE era competente para decidir sobre atos de concentração (no geral, operações societárias) de empresas do sistema financeiro nacional.
O BACEN afirmava que era o único ente competente com base em duas leis:
LEI Nº 4.595, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1964
Dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias, Cria o Conselho Monetário Nacional e dá outras providências.
Art. 10. Compete privativamente ao Banco Central da República do Brasil: […]
X – Conceder autorização às instituições financeiras, a fim de que possam:
a) funcionar no País;
b) instalar ou transferir suas sedes, ou dependências, inclusive no exterior;
c) ser transformadas, fundidas, incorporadas ou encampadas;
d) praticar operações de câmbio, crédito real e venda habitual de títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal, ações Debêntures, letras hipotecárias e outros títulos de crédito ou mobiliários;
e) ter prorrogados os prazos concedidos para funcionamento;
f) alterar seus estatutos.
g) alienar ou, por qualquer outra forma, transferir o seu controle acionário. […]
Art. 18. As instituições financeiras somente poderão funcionar no País mediante prévia autorização do Banco Central da República do Brasil ou decreto do Poder Executivo, quando forem estrangeiras. […]
§ 2º O Banco Central da Republica do Brasil, no exercício da fiscalização que lhe compete, regulará as condições de concorrência entre instituições financeiras, coibindo-lhes os abusos com a aplicação da pena nos termos desta lei.
LEI Nº 9.447, DE 14 DE MARÇO DE 1997
Dispõe sobre a responsabilidade solidária de controladores de instituições submetidas aos regimes de que tratam a Lei nº 6.024, de 13 de março de 1974, e o Decreto-lei nº 2.321, de 25 de fevereiro de 1987; sobre a indisponibilidade de seus bens; sobre a responsabilização das empresas de auditoria contábil ou dos auditores contábeis independentes; sobre privatização de instituições cujas ações sejam desapropriadas, na forma do Decreto-lei nº 2.321, de 1987, e dá outras providências.
Art. 5º Verificada a ocorrência de qualquer das hipóteses previstas nos arts. 2º e 15 da Lei nº 6.024, de 1974, e no art. 1º do Decreto-lei nº 2.321, de 1987, é facultado ao Banco Central do Brasil, visando assegurar a normalidade da economia pública e resguardar os interesses dos depositantes, investidores e demais credores, sem prejuízo da posterior adoção dos regimes de intervenção, liquidação extrajudicial ou administração especial temporária, determinar as seguintes medidas:
I – capitalização da sociedade, com o aporte de recursos necessários ao seu soerguimento, em montante por ele fixado;
II – transferência do controle acionário;
III – reorganização societária, inclusive mediante incorporação, fusão ou cisão.
Parágrafo único. Não implementadas as medidas de que trata este artigo, no prazo estabelecido pelo Banco Central do Brasil, decretar-se-á o regime especial cabível.
O CADE afirmava que sua perspectiva para atos de concentração era focada na concorrência. Por outro lado, a visão do BACEN seria voltada para a solidez do sistema financeiro nacional. Para o CADE, isso justificava uma atuação complementar e cooperativa entre os dois entes.
O CADE também entendia que era competente com base em sua lei de regência à época:
LEI Nº 8.884, DE 11 DE JUNHO DE 1994
Transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) em Autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica e dá outras providências.
Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE.
§ 1º O CADE poderá autorizar os atos a que se refere o caput, desde que atendam as seguintes condições:
I – tenham por objetivo, cumulada ou alternativamente:
a) aumentar a produtividade;
b) melhorar a qualidade de bens ou serviço; ou
c) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico;
II – os benefícios decorrentes sejam distribuídos eqüitativamente entre os seus participantes, de um lado, e os consumidores ou usuários finais, de outro;
III – não impliquem eliminação da concorrência de parte substancial de mercado relevante de bens e serviços;
IV – sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os objetivos visados.
§ 2º Também poderão ser considerados legítimos os atos previstos neste artigo, desde que atendidas pelo menos três das condições previstas nos incisos do parágrafo anterior, quando necessários por motivo preponderantes da economia nacional e do bem comum, e desde que não impliquem prejuízo ao consumidor ou usuário final.
A partir da leitura das leis de regência, você entende que o CADE é competente para analisar atos de concentração no sistema financeiro nacional?
Em 2001, a Advocacia Geral da União (AGU) se manifestou sobre o tema no Parecer GM-20. Entendeu que a competência era privativa do BACEN. O CADE não poderia analisar em atos de concentração de empresas do sistema financeiro nacional.
O Parecer GM-20 foi aprovado pelo Presidente da República. Por isso, passou a vincular toda a Administração Pública Federal (conforme o art. 40 da Lei Complementar 73/1993).
Aqui vemos uma “adjudicação” regulatória. Os reguladores não conseguem cooperar e, por isso, um terceiro resolve a disputa. Mas a solução é formulada dentro da própria Administração Pública.
Entretanto, as discussões não pararam. Diversos processos continuaram a debater o tema e o conflito chegou ao Superior Tribunal de Justiça. Veja a decisão do STJ:
STJ, REsp n. 1.094.218/DF
Rel. Min. Eliana Calmon, Primeira Seção, j. 25/8/2010
ADMINISTRATIVO – ATO DE CONCENTRAÇÃO, AQUISIÇÃO OU FUSÃO DE INSTITUIÇÃO INTEGRANTE DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL – CONTROLE ESTATAL PELO BACEN OU PELO CADE – CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES – LEIS 4.594/64 E 8.884/94 – PARECER NORMATIVO GM-20 DA AGU.
1. Os atos de concentração, aquisição ou fusão de instituição relacionados ao Sistema Financeiro Nacional sempre foram de atribuição do BACEN, agência reguladora a quem compete normatizar e fiscalizar o sistema como um todo, nos termos da Lei 4.594/64.
2. Ao CADE cabe fiscalizar as operações de concentração ou desconcentração, nos termos da Lei 8.884/94.
3. Em havendo conflito de atribuições, soluciona-se pelo princípio da especialidade.
4. O Parecer GM-20, da Advocacia-Geral da União, adota solução hermenêutica e tem caráter vinculante para a administração.
5. Vinculação ao parecer, que se sobrepõe à Lei 8.884/94 (art. 50).
6. O Sistema Financeiro Nacional não pode subordinar-se a dois organismos regulatórios.
7. Recurso especial provido.
Em termos práticos, o que o STJ decidiu?
Depois, uma sequência de medidas de coordenação regulatória colocou fim à disputa. A primeira medida foi a celebração de um Memorando de Entendimentos entre BACEN e CADE. Veja parte do seu texto:
MEMORANDO DE ENTENDIMENTOS RELATIVOS AOS PROCEDIMENTOS DE COOPERAÇÃO NA ANÁLISE DE ATOS DE CONCENTRAÇÃO ECONÔMICA NO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
Superior Tribunal de Justiça, Rel. Min. Eliana Calmon, Primeira Seção, j. 25/8/2010.
1.1. As partes se comprometem a envidar os melhores esforços de cooperação e a estabelecer, de forma conjunta, regras especificas para a análise de processos administrativos de controle de atos de concentração envolvendo instituições financeiras e de apuração de infrações à ordem econômica envolvendo instituições supervisionadas pelo Banco Central do Brasil, tendo em vista o interesse público na segurança jurídica, na eficiência, na higidez e na concorrência nos mercados regulados. […]
2.1. Os pleitos referentes a atos de concentração serão submetidos pelos interessados ao BCB e ao CADE, conforme ato normativo conjunto a ser editado por ambas as autarquias.
2.2. A análise dos pleitos será conduzida em cada autarquia mediante processo próprio, observando-se a regulamentação aplicável, as regras do presente Memorando de Entendimentos e as disposições de ato normativo conjunto a ser editado por ambas as autarquias.
2.3. A eficácia dos atos de concentração envolvendo instituições financeiras fica condicionada à autorização de ambas as autarquias, nos termos do art. 10, inciso X, alíneas c e g c/c art. 18, § 2º, da Lei nº 4.595, de 1964, e do art. 88, §3°, da Lei nº 12.529, de 2011.
2.4. As partes se comprometem a agir de forma cooperativa e eficiente, inclusive na edição de normas de interesse comum, reconhecendo a relevância da análise de ambas as autarquias e o marco legal em vigor, bem como a eventual existência de aspectos de natureza prudencial, assim reconhecida pelo BCB.
2.5. As partes se comprometem a criar mecanismos de cooperação técnica e a trocar informações, observado o dever de sigilo, no âmbito de processos administrativos no controle de atos de concentração e na apuração de infrações à ordem econômica envolvendo instituições supervisionadas pelo BCB.
2.6. Sem prejuízo das correspondentes competências, o BCB e o CADE se comprometem a comunicar um ao outro atividades que possam configurar infrações concorrenciais, bem como fornecer dados e informações técnicas úteis à apuração de potenciais condutas infracionais, visando à preservação de condições propícias à concorrência nos mercados, sem prejuízo do dever de sigilo.
2.7. O CADE, em sua análise, previamente à imposição de penalidades por infração à ordem econômica, consultará o BCB sobre os mercados e entidades por esse regulados.
2.8. As partes buscarão estreitar o relacionamento mútuo por meio da elaboração de guias em conjunto, treinamentos, seminários, estudos e outras atividades que possam maximizar a eficiência da atuação de ambas as autarquias. […]
As partes se comprometem a rever as regulamentações de sua competência, se necessário, e a trabalhar conjuntamente perante o Poder Legislativo, para fins de aprovação do projeto de lei complementar anexado ao presente Memorando de Entendimentos.
Depois, os próprios órgãos editaram o Ato Normativo Conjunto nº 1, uma medida de normatização conjunta para tratar da distribuição de competências. Como esse ato normativo se relaciona com a decisão do STJ? Ele a confirma ou a supera?
ATO NORMATIVO CONJUNTO Nº 1
Dispõe sobre procedimentos em processos administrativos de ato de concentração de instituições financeiras e de controle de condutas de instituições sujeitas à supervisão ou vigilância do Banco Central do Brasil nas infrações à ordem econômica, e dá outras providências.
A Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil, em sessão realizada em 28 de novembro de 2018, com respaldo no art. 18, § 2º, da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, e o Plenário do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, em sessão de 5 de dezembro de 2018, com respaldo na Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011,
RESOLVEM:
Art. 1º Este Ato Normativo Conjunto disciplina os procedimentos aplicáveis:
I – à análise de atos de concentração econômica envolvendo instituições financeiras;
II – à apuração de infrações à ordem econômica envolvendo instituições sujeitas à supervisão ou vigilância do Banco Central do Brasil (BCB);
III – ao intercâmbio de informações entre o BCB e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Parágrafo único. As normas deste Ato Normativo Conjunto não prejudicam a aplicação de regras específicas expedidas pelo BCB e pelo Cade.
Art. 2º Os atos de concentração econômica de instituições financeiras deverão ser submetidos tanto ao BCB quanto ao Cade, que os examinarão de forma independente, em processos próprios, observados os prazos e condições previstos na legislação que disciplina a atuação de cada uma das autarquias.
Parágrafo único. O BCB e o Cade compartilharão informações e documentos, sigilosos ou não, de titularidade dos interessados em atos de concentração econômica, exigido o expresso consentimento dos requerentes para os dados protegidos por sigilo legal.
Art. 3º O BCB e o Cade, observado o dever de sigilo, manterão comunicação e intercâmbio de dados e informações que permitam, dentre outros:
I – ciência, de cada uma das autarquias, da submissão dos atos de concentração econômica de instituições financeiras;
II – acompanhamento do processo administrativo em cada uma das autarquias em atos de concentração de instituições financeiras; e
III – apuração de indícios de infrações concorrenciais verificados, com disponibilização da documentação comprobatória.
Art. 4º. O BCB e o Cade reunir-se-ão, sempre que necessário, para:
I – discussão de temas que possam ensejar ação normativa com impactos concorrenciais em mercados e instituições submetidas à supervisão ou vigilância do BCB; e
II – cooperação técnica no âmbito de processos administrativos no controle de atos de concentração e na apuração de infrações à ordem econômica envolvendo instituições supervisionadas pelo BCB, inclusive com a participação destas.
Art. 5º Nos processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica envolvendo instituições submetidas à supervisão ou vigilância do BCB, o Cade notificará o BCB:
I – na instauração do respectivo processo administrativo pela Superintendência Geral do Cade, com a indicação da infração imputada; e
II – na remessa dos autos pela Superintendência Geral ao Presidente do Tribunal do Cade, prevista no art. 74 da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011.
§1º O BCB poderá, informado das possíveis penalidades aplicáveis pelo Cade aos representados no processo administrativo, nos termos do inciso II do caput, manifestar-se a respeito da possibilidade de materialização de hipótese prevista no art. 6º deste Ato Normativo Conjunto e sobre a existência de informações relevantes sobre procedimentos administrativos que possam estar relacionados ao caso.
§2º A notificação feita pela Superintendência Geral do Cade ao BCB não suspenderá ou interromperá a análise do referido processo administrativo pelo Tribunal do Cade, que seguirá o curso normal nos termos da Lei nº 12.529, de 2011, e do Regimento Interno do Cade.
Art. 6º O BCB poderá aprovar unilateralmente os atos de concentração envolvendo instituição financeira sempre que aspectos de natureza prudencial indiquem haver riscos relevantes e iminentes à solidez e à estabilidade do Sistema Financeiro Nacional.
§ 1º Consideram-se operações com aspecto de natureza prudencial aquelas que, a juízo do BCB:
I – envolvam risco à solidez de instituição financeira ou de segmento do Sistema Financeiro Nacional;
II – comprometam a manutenção da estabilidade do Sistema Financeiro Nacional e a prevenção de crise sistêmica;
III – prejudiquem a efetividade de regime de resolução aplicado em instituição financeira;
IV – prejudiquem a efetividade de medidas necessárias para mitigar a necessidade de aplicação de regime de resolução; e
V – prejudiquem a efetividade de medidas necessárias para reverter trajetória de perda de solidez de instituição financeira ou de segmento do Sistema Financeiro Nacional, com modelo de negócio identificado como inconsistente, vulnerável ou inviável.
§ 2º Verificada a situação prevista no caput, o BCB notificará o Cade em 1 (um) dia útil, indicando os fundamentos de sua decisão e informando se os aspectos de natureza prudencial abrangem toda a operação ou apenas mercados relevantes específicos.
§ 3º A notificação de que trata o § 2º não altera o rito de análise no Cade, que aprovará a operação sem restrições utilizando os fundamentos da decisão do BCB como base para o reconhecimento de eficiência e desenvolvimento econômico, nos termos da Lei nº 12.529, de 2011.
§ 4º Os atos de concentração econômica nos termos da Lei nº 12.529, de 2011, que não sejam de notificação obrigatória ao BCB e que se enquadrem nas hipóteses previstas no § 1º, conforme manifestação do Banco Central, serão aprovados sem restrições pelo Cade, com base no reconhecimento de eficiência e desenvolvimento econômico.
Art. 7º Qualquer alteração deste Ato Normativo Conjunto depende da deliberação do Cade e do BCB.
Art. 8º. Este Ato Normativo Conjunto entra em vigor na data da sua publicação.
Como atividade, sugere-se a comparação entre o Ato Normativo Conjunto nº 1 e o projeto de lei proposto conjuntamente por BACEN e CADE (disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7873042&ts=1630410798412&disposition=inline).
Diversos mecanismos foram utilizados para tentar resolver o conflito entre BACEN e CADE.
Em um primeiro momento, a Advocacia-Geral da União decidiu sobre o tema. Depois, o Poder Judiciário julgou a disputa. As duas primeiras respostas foram dadas por terceiros, sem cooperação regulatória.
Mas BACEN e CADE inauguraram um capítulo de cooperação regulatória. Celebraram Memorando de Entendimentos e recorreram à normatização conjunta.
Quais são as diferenças entre esses métodos para resolver conflitos? É melhor que um terceiro decida sobre o tema ou que os reguladores utilizem cooperação regulatória?
Aqui é possível aprofundar ainda mais. O ato normativo promulgado por BACEN e CADE é válido? BACEN e CADE podem se considerar competentes para determinados atos? Vamos ver duas posições divergentes:
Regulação e concorrência nos setores de infraestrutura: análise do caso brasileiro à luz da jurisprudência do CADE
Tese (doutorado) de Patrícia Regina Pinheiro Sampaio.
No entanto, os convênios não são mecanismos eficazes para colocar termo a dúvidas em caso de conflitos de competência. O CADE e a ANEEL não têm legitimidade para, por hipótese, reunirem-se e decidir, em caráter definitivo, se a Lei 9.427/96 instituiu um modelo de complementaridade de atribuições entre essas entidades, uma situação de competências concorrentes ou, ainda, de isenção antitruste. Falta-lhes, a esse respeito, o elemento primeiro norteador do ato administrativo: a competência.
Conflito de competência entre o CADE e as Agências Reguladoras que atuam no campo dos serviços públicos
Por Flávio Amaral Garcia
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 1, 2002, p. 241-255.
Portanto, o ideal, como se verá adiante, é uma relação de cooperação entre agências e o CADE, já que as primeiras detém o conhecimento técnico específico do serviço, e o segundo é o ente responsável pela defesa da concorrência e principal responsável pelo amadurecimento do direito antitruste brasileiro.
É difícil sustentar, do ponto de vista estritamente jurídico, que o CADE possa atuar em matéria de serviço público sem lei específica autorizando a sua ação ou sem manifestação de vontade das agências neste sentido, formalizada, por exemplo, através de convênios.
3. DEBATENDO
- Quais são os problemas gerados por conflitos entre CADE e agências reguladoras?
- Quem pode resolver os conflitos entre CADE e agências reguladoras?
- O que deve ser feito para evitar conflitos entre CADE e agências reguladoras? Devemos mudar as leis? Se sim, o que elas devem passar a definir? Quais mecanismos podem ser utilizados?
- Existe algum critério geral que podemos utilizar para resolver esses conflitos? Quais fatores devem ser considerados?
- As discussões sobre competências devem considerar qual a capacidade (por exemplo, a estrutura e o orçamento) de cada entidade?
- Quais são os mecanismos de interação entre CADE e agências reguladoras no direito brasileiro? Quais os problemas de cada mecanismo?
- Quais outros mecanismos podem ser utilizados por esses entes?
- O que pode melhorar a relação entre CADE e agências reguladoras?
- Em sua opinião, o CADE é competente para controlar atos de concentração no sistema financeiro nacional? A Advocacia-Geral da União acertou ao elaborar o Parecer GM-20?
- O CADE e o BACEN superaram a decisão do STJ por meio do Ato Normativo Conjunto nº 1? Se sim, eles poderiam ter feito isso?
- O Ato Normativo Conjunto nº 1 dá mais poder ao CADE ou ao BACEN?
- Reguladores concorrencial e setorial podem elaborar acordos que disponham sobre suas competências? Você concorda com Patrícia Sampaio ou com Flávio Garcia?
- O que esses acordos devem definir para reduzir conflitos entre o CADE e as agências reguladoras?
- Há algum espaço para o Tribunal de Contas da União (TCU) atuar nos conflitos entre regulação concorrencial e setorial?
- Para aprofundar: pesquise como se deu o conflito entre CADE e ANTAQ nos casos relativos ao Serviço de Segregação e Entrega de Contêineres (SSE). Também pesquise pelo Memorando de Entendimentos nº 01/2021, celebrado entre CADE e ANTAQ. Como o Poder Judiciário lida com o conflito de competências? Como ocorreu a participação do TCU?
- Para aprofundar: pesquise os acordos entre o CADE e agências reguladoras. Alguns deles estão disponíveis no link https://www.gov.br/cade/pt-br/acesso-a-informacao/transparencia-e-prestacao-de-contas/acordos-cooperacao-tecnica/acordo-nacionais/acordos-com-agencias-reguladoras-1. Qual o papel desses acordos? As obrigações neles estabelecidas são suficientes para reduzir os conflitos entre CADE e agências?
4. APROFUNDANDO
ALEXIADIS, Peter; PEREIRA NETO, Caio Mario. Competing architectures for regulatory and competition law governance. European University Institute, 2019.
GARCIA, Flávio Amaral. Conflito de Competência entre o CADE e as Agências Reguladoras que atuam no campo dos serviços públicos. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 1, 2002, p. 241-255.
JORDÃO, Eduardo Ferreira. Restrições regulatórias à concorrência. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
LEBBOS, Carolina Moura. Divisão de Competências e Articulação entre Reguladores Setoriais e Órgãos de Defesa da Concorrência. In: MOREIRA, Egon Bockmann; MATTOS, Paulo Todescan Lessa (Coord.). Direito concorrencial e regulação econômica. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010, p. 217-238.
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Competição entre reguladores – caso BACEN vs. CADE. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MOREIRA, Egon Bockmann; GUERRA, Sérgio (Coord.). Dinâmica da regulação. Estudo de casos da jurisprudência brasileira: a convivência dos tribunais e órgãos de controle com agências reguladoras, autoridade da concorrência e livre iniciativa. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2023.
OLIVEIRA, Gesner. Regulação e defesa da concorrência: Bases conceituais e aplicações do sistema de competências compartilhadas. Relatório de pesquisa nº 9/2001 do Núcleo de Pesquisas e Publicações EAESP/FGV), 2001.
PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva; PRADO FILHO, José Inacio Ferraz de Almeida. Espaços e interfaces entre regulação e defesa da concorrência: a posição do CADE. Revista Direito GV, São Paulo, v. 12, 2016, p. 13-48.
SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. Regulação e concorrência nos setores de infraestrutura: análise do caso brasileiro à luz da jurisprudência do CADE. Tese (doutorado) apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.
SEIXAS, Luiz Felipe Monteiro. Friends or foes? Coordenação regulatória no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e das agências reguladoras federais. Revista de Direito Administrativo, v. 283, n. 2, 2024, p. 121–145.
SUNDFELD, Carlos Ari. Contratações públicas e o princípio da concorrência. Revista de Contratos Públicos, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, mar./ago. 2012, p. 55-79.
SUNDFELD, Carlos Ari. O CADE e a Competição nos Serviços Públicos. Fórum Administrativo – Direito Público, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, mar. 2001, p. 32-35.