1. CONHECENDO O BÁSICO
Pensemos em alguns fatos cotidianos da vida privada que envolvem uma relação jurídica entre duas ou mais pessoas. A celebração de um contrato particular, a cobrança de uma dívida, a reparação de um dano ou a obrigação de fazer coisa certa. Todas essas atividades de Direito Privado, que pressupõem uma relação entre os particulares envolvidos, possuem em comum a busca dos mais variados fins e o exercício da autonomia da vontade entre os sujeitos.
Mas quando uma relação jurídica envolve a Administração Pública, como se dá a interação com os particulares? Elas podem se vincular por meio de relações jurídicas materiais e processuais. E essas formas de interação revelam que, em ambos os casos, a relação jurídica entre os particulares e a Administração Pública envolve uma participação dos sujeitos privados na formação das decisões públicas.
As formas de participação dos particulares nas decisões e nas escolhas públicas podem abranger tanto o reconhecimento quanto a defesa de um direito perante a Administração. Mas não é só isso. A participação do cidadão também pode se dar por meio da colaboração com a Administração Pública, no sentido de influenciá-la na tomada de uma decisão administrativa ou em uma escolha pública.
Assim, pense nas seguintes situações. Diante de um quadro de calamidade pública em decorrência de uma pandemia mundial, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) promove a abertura de uma consulta pública para colher a manifestação dos cidadãos sobre a vacinação contra o vírus em crianças de cinco a onze anos. Em uma segunda situação hipotética, a prefeitura de uma cidade abre audiência pública para que os moradores de determinado bairro possam se manifestar acerca das mudanças no local a serem realizadas pelo plano diretor do município. Ainda, um grupo de cidadãos pode apontar irregularidades em uma obra pública de determinado município perante o Tribunal de Contas, influenciando na aplicação de uma penalidade, se for o caso. O que esses três exemplos têm em comum é o fato de que particulares podem colaborar com a Administração para influenciá-la em uma escolha ou para que uma decisão pública possa ser tomada.
Você pode estar se perguntando se a relação entre a Administração Pública e os particulares sempre foi assim. E a resposta, infelizmente, é negativa. A partir do momento em que os particulares passaram a depender cada vez mais da efetivação de finalidades sociais pelo Estado, o ato administrativo, que até então se mostrava unilateral, tornou-se insuficiente para solucionar os problemas administrativos. A diversificação da atividade administrativa permitiu um maior contato entre os cidadãos e a Administração Pública. Essa nova roupagem da relação do particular com o Poder Público fez com que surgisse a necessidade de uma maior abertura e controle social dos atos da Administração. Assim, o Estado passou a permitir a intervenção dos particulares para democratizar a sua atividade por meio da colaboração e da coordenação, inclusive, procedimentalizando a sua atividade para concretizar esse fim.
Em verdade, a relação entre a Administração e os particulares continua sendo construída no sistema brasileiro e está em constante evolução. Basta olharmos para algumas recentes legislações que dispõem sobre a participação dos cidadãos nas atividades da Administração Pública, como a Lei n.º 13.460/17 e a Lei n.º 13.655/18, que alterou a LINDB e dispôs sobre o procedimento das consultas públicas. Além, é claro, dos instrumentos de participação administrativa previstos pela própria Constituição de 1988, como: a previsão da gestão democrática da Assistência Social (art. 204, II), da Seguridade Social (art. 194, VII), e do ensino (art. 206, VI), a regulamentação legislativa dos direitos dos usuários da prestação dos serviços públicos (art. 175, II), a participação dos trabalhadores nos colegiados dos órgãos públicos (art. 10), a exigência da participação do usuário na Administração Pública (art. 37, §3º), o direito de petição (art. 5º, XXXIV, a), o habeas data (art. 5º, LXXII, CF), o mandado de segurança (art. 5º, LXIX), o direito ao acesso à informação (art. 5º, XIV e XXXIII), o direito à ampla defesa em processo administrativo (art. 5º, LV), o direito a participar de audiências públicas (art. 58, II), além do direito de denunciar irregularidades ao Tribunal de Contas (art. 74, §2º).
Até aqui, compreendemos como foi a mudança na interação entre os particulares e a Administração Pública e percebemos que ela se tornou mais necessária a partir do momento em que os cidadãos passaram a depender de uma maior aproximação com as atividades administrativas. Mas, no contexto atual, o que justifica a interação entre eles? E como podem os particulares influenciar na tomada de uma decisão pública ou em uma escolha administrativa?
Em outras palavras, por que é (cada vez mais) importante garantir a participação dos particulares nas decisões e nas escolhas públicas?
Em primeiro lugar, porque a participação dos particulares legitima democraticamente as decisões administrativas. Ou seja, os sujeitos dialogam com a Administração Pública, controlam, fiscalizam e contribuem para que a decisão ou a escolha pública seja permeada por fatos, opiniões e interesses sobre os quais a administração não teria amplo acesso se não fosse oportunizado esse espaço participativo.
Em segundo lugar, a participação dos particulares pode diminuir eventual erro na tomada das decisões administrativas e também afastar a unilateralidade da motivação, reduzindo, assim, o espaço de discricionariedade. Em síntese, a decisão ou a escolha pública experimenta um incremento de qualidade e pode diminuir questionamentos.
A participação dos particulares ainda pode viabilizar a garantia de um justo tratamento, alinhando as expectativas dos cidadãos que obtém importantes informações das atividades do Estado. O que de outra forma possivelmente não alcançariam.
Já sabemos para que serve a participação dos particulares na formação das decisões e das escolhas públicas. Mas como ela pode ser feita de uma maneira efetiva? Se há várias formas de interação entre os sujeitos privados e a Administração, podemos prever que para essa relação ser satisfatória, há alguns dilemas a serem enfrentados, especialmente no que toca à eficiência e à transparência administrativa. Afinal, você consegue imaginar como a Administração Pública organiza e dispõe de mecanismos que possibilitam uma participação pública efetiva? E será que eles se mostram suficientes para legitimar a atividade administrativa?
As leituras dos seguintes materiais podem ajudar você a refletir sobre o problema e a sua relevância.
2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
Vamos iniciar provocando o debate acerca do dimensionamento da democracia para a Administração Pública. Para fomentar a discussão, as primeiras leituras sugeridas versam sobre a crise da democracia representativa em alguns países e a influência que a Constituição de 1988 exerceu e ainda exerce na Administração Pública.
Veja o que o professor argentino Roberto Gargarella sustenta em seu livro “O direito como uma conversa entre iguais: o que fazer para que as democracias contemporâneas se abram – por fim – ao diálogo cidadão”. Nos trechos dos dois capítulos abaixo, ele utiliza da expressão “fadiga da cidadania” para referir que, em algumas democracias representativas, os cidadãos estariam “fartos de seus representantes” e que isso justificaria a adoção de mecanismos alternativos para a participação do cidadão para além do voto popular.
O Direito como uma conversa entre iguais: o que fazer para que as democracias contemporâneas se abram – por fim – ao diálogo cidadão
Por Roberto Gargarella
1ª edição, Buenos Aires: Siglo XXI, 2021
Um problema institucional e estrutural
Escrevo este artigo num momento político difícil (e, em grande parte, como resultado dele). Vivemos na era da primavera Árabe; do “Deixem-nos ir todos” na Argentina; do “Occupy Wall Street” nos Estados Unidos; da ascensão do Syriza na Grécia e do Podemos em Espanha; das mobilizações e protestos de massas contra as autoridades no poder na Catalunha e no Equador; de milhões de pessoas nas ruas a exigir a demissão do Presidente Piñera no Chile.
Muitas das nossas democracias constitucionais parecem ser assombradas por um espetro temível: o espetro do cansaço ou da fadiga dos cidadãos, que parecem fartos das suas instituições, esgotados pelos seus representantes. As ciências sociais deste momento (em 2019, quando estou a escrever esta página) parecem dominadas pela ideia de fadiga da democracia, que está ligada à forma como este sistema político é corroído por dentro, ao ponto de ser esvaziado de conteúdo substantivo. Falamos, então, de democracias que já não morrem, como antes, de um golpe único (tipicamente, um golpe de Estado), mas de uma morte lenta, e de um desmantelamento gradual por parte daqueles que se apropriaram do poder, e em passos sucessivos, todos eles aparentemente legais.
O resultado desta degradação progressiva do sistema de governo é bem conhecido (e é o que gera o cansaço). Tendemos a passar de um governo do povo, pelo povo e para o povo, para um governo de poucos, gerido por uma minoria e ao serviço dos privilegiados. O nosso sistema institucional (digo “nosso”, pensando no modelo constitucional que se generalizou na maioria dos países ocidentais desde finais do século XVIII) parece ser um sistema capturado.
As possibilidades de diálogo estão a expandir-se: audiências públicas, consulta prévia, participação significativa
Mudanças normativas (como a Carta canadiana) ou jurisprudenciais (como o acórdão “Grootboom”) não foram os primeiros nem os únicos sinais da emergência deste novo paradigma dialógico em matéria constitucional (Gardbaum, 2013). Em todo o caso, foram catalisadores de uma sucessão de novos desenvolvimentos que já estavam no ar e que se tornaram, desde então, símbolos do palco que se abria; em todo o caso, legitimaram e encorajaram essas mudanças. São muitas as inovações que tiveram lugar e que merecem ser inscritas como definidoras desta nova etapa. Para já, podemos falar de uma etapa dialógica em termos modestos: constatamos mudanças nas formas de organização do poder institucional.
Em particular, elas atuam sobre as formas tradicionais de relação entre os poderes, cuja relação era mais rígida (marcada pela capacidade de veto ou de agressão mútua) e permitia ao poder judicial conservar, na prática, a última palavra (uma decisão judicial adversa à política era praticamente definitiva). Com a chegada das inovações, o sistema institucional parece abrir-se progressivamente a novas formas de interação, menos violentas, e a política recupera um lugar de destaque, afirmando o seu direito à última palavra.
As mudanças que ocorreram nesta fase – ainda em aberto – foram muito importantes e surgiram a diferentes níveis. Três dessas novidades institucionais foram as audiências públicas, a consulta prévia e a participação significativa.
No trecho abaixo, retirado de um capítulo do livro “Uma teoria do Direito Administrativo”, Gustavo Binenbojm, também relata que a crise da democracia representativa e da lei formal fomenta a utilização de mecanismos alternativas de participação popular na Administração Pública. Sustenta que a contextualização desse problema marca uma tendência cada vez maior da discussão sobre as novas formas de legitimação da atividade administrativa.
O professor Binenbojm cita duas perspectivas dessa nova tendência de repensar a legitimação administrativa: a constitucionalização e a democratização do exercício da atividade administrativa. Sobre esse aspecto, veja que interessante é a leitura conjunta dos textos de Binenbojm e de Gargarella, que levantam a constitucionalização, o primeiro como vertente possível e o segundo, como meio ineficaz, com o artigo dos professores Patrícia Baptista e João Pedro Accioly, a respeito da influência da Constituição de 1988 sobre o Direito Administrativo e tecendo críticas acerca da chamada constitucionalização:
Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização
Por Gustavo Binenbojm
3ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2014
II.3.2. A democracia e a Administração Pública
Por derradeiro, cabe fazer referência ao influxo do princípio democrático sobre a conformação tanto das estruturas como da própria atividade administrativa. Como se adiantou, embora reconhecendo-se a preeminência dos direitos fundamentais no elenco de objetivos da Administração Pública, a eles não se limitam as tarefas administrativas.
Com efeito, a lei democrática, produzida em observância aos lindes constitucionais, opera de forma complementar ao sistema de direitos fundamentais, concretizando, ampliando ou restringindo tais direitos, seja em prol de outros direitos fundamentais, seja em proveito de interesses difusos da comunidade. À Administração Pública, por intermédio de seus órgãos, entidades ou delegatários, cumpre tanto a realização dos direitos fundamentais (por meio de abstenções, restrições ou prestações positivas), como a consecução de objetivos de viés coletivo (decorrentes diretamente da Constituição ou estabelecidos validamente pelo legislador democrático).
Deste modo, como corolário da ideia de autogoverno coletivo, inerente ao projeto democrático, devem as estruturas da burocracia estatal e os objetivos de sua atuação ser responsivos à vontade geral do povo, consubstanciada na lei. Por evidente, quanto mais analítica e dirigente for a Constituição, menor será o espaço de livre conformação do legislador, e vice-versa. Em qualquer caso, todavia, a juridicidade administrativa não costuma ser delineada exclusivamente pelo constituinte ou pelo legislador, mas pela conjugação da obra normativa de ambos, conforme interpretada e ponderada por administradores públicos ou juízes.
De outra banda, assume papel cada vez mais proeminente no direito administrativo moderno a discussão sobre novas formas de legitimação da ação administrativa. Uma das vertentes desenvolvidas nesta linha é a da constitucionalização. Uma outra é baseada na democratização do exercício da atividade administrativa não diretamente vinculada à lei. Tal democratização é marcada pela abertura e fomento à participação dos administrados nos processos decisórios da Administração, tanto em defesa de interesses individuais (participação uti singulus), como em nome de interesses gerais da coletividade (participação uti cives).
Um dos traços marcantes dessa tendência à democratização é o fenômeno que se convencionou chamar de processualização da atividade administrativa. Tal termo é designativo da preocupação crescente com a disciplina e democratização dos procedimentos formativos da vontade administrativa, e não apenas do ato administrativo final. Busca-se, assim, (i) respeitar os direitos dos interessados ao contraditório e à ampla defesa; (ii) incrementar o nível de informação da Administração acerca das repercussões fáticas e jurídicas de uma medida que se alvitra implementar, sob a ótica dos administrados, antes da sua implementação; (iii) alcançar um grau mais elevado de consensualidade e legitimação das decisões da Administração Pública.
Não à toa, há uma reconhecidamente majoritária tendência, nos direitos administrativos espanhol e português, à atribuição de um status constitucional ao princípio da participação administrativa, apto, inclusive, a carrear para a decisão, tomada sem a devida oportunidade para manifestação dos interessados, a pecha da inconstitucionalidade. De outra parte, no mundo anglo-saxão, a participação tem fundamento nas fórmulas do right to a fair hearing e do right to a consultation, importantes garantias processuais ancestralmente consagradas pelo sistema de common law e que foram adaptadas e aplicadas por agências e departamentos administrativos, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos.
As crises da democracia representativa e da lei formal, a alocação cada vez maior de encargos decisórios na Administração Pública, por força de normas legais abertas, bem como a proliferação de autoridades administrativas independentes, não diretamente responsivas à vontade política de agentes eleitos, impulsionam hoje a tendência quase universal, embora não imune a críticas, ao fomento à participação social nos processos de formulação das decisões administrativas. Tamanha é a sua importância na atualidade que já tem sido considerada como uma forma de democratizar as democracias representativas.
A Administração Pública na Constituição de 1988. Trinta anos depois: disputas, derrotas e conquistas
Por Patrícia Baptista e João Pedro Accioly
In: Revista de Direito Administrativo, v. 277, n. 2, p. 45-74, 2018
3. Até que ponto a Constituição administrativa realmente importa? Uma crônica de disputas, retumbantes fracassos e suadas conquistas
Um olhar sobre o capítulo da administração pública na Constituição permite visualizar, talvez até com mais clareza do que em outros lados do texto constitucional, a distância existente — e que, nestes 30 anos, buscou-se reduzir — entre o otimismo constitucionalizante da Carta de 1988 e a realidade de um Estado patrimonialista, dominado por grupos políticos e corporações, e que ainda resiste à república e à democracia.
Como visto, a ideia de institucionalizar a administração pública como personagem constitucional veio de juristas. Seus autores intelectuais perseguiam a instituição e a racionalização de um Estado burocrático moderno. As normas editadas — ao menos as que conseguiram sobreviver — entraram no capítulo com a missão de atuar como catalisadoras (externas à realidade político-social vigente) do desenvolvimento de uma nova ordem constitucional administrativa. Outra leitura, porém, vislumbra, nesse processo de constitucionalização voltado à consolidação de um Estado burocrático moderno, um interesse próprio dos juristas de obter seu reposicionamento na nova ordem. A juridicização da administração pública assegura aos juristas uma inserção privilegiada na burocracia estatal, pela apropriação da expertise de aplicação e interpretação das normas. Sem precisar atuar, assim, diretamente no campo político, os juristas adquirem, nessa aproximação com o Estado burocrático (obtida pela via da constitucionalização), um capital político novo. Uma verdadeira reinvenção ou releitura contemporânea do velho bacharelismo novecentista.
No entanto, o grande processo de disputa que, desde o início, se instalou em torno de boa parte das normas do capítulo não apenas é evidência da desconexão do seu conteúdo com a ordem fática dominante, como foi o prenúncio do enorme desafio que seria assegurar a efetividade de seus dispositivos. Desafio esse, até aqui, não integralmente superado.
Ao final do processo constituinte originário, o Capítulo VII do Título III restou com sete artigos, cinco dedicados exclusivamente aos servidores públicos, seu regime funcional e previdenciário (os artigos 38 a 42). Incorporou-se verdadeiro estatuto constitucional da função pública (sem paralelo, pela extensão e conteúdo, nos textos anteriores e em outras Constituições). O maior artigo, porém, foi o de número 37, hoje com 22 incisos e 12 parágrafos (muitos reformados ou incluídos posteriormente pela Emenda constitucional no 19/1998). Nele, destaca-se seu caput, com caráter de pauta geral, positivando valores com que se pretendia guiar toda a ação pública. No mais, são disposições sobre o acesso e exercício da função pública, ao menos seis incisos discorrendo sobre o regime remuneratório dos servidores e disposições sobre matérias esparsas de direito administrativo alçadas à condição constitucional. Em comum a quase todas, a falta de um conteúdo materialmente constitucional.
Por detrás da opção do constituinte em constitucionalizar o arsenal de miudezas do regime funcional e remuneratório dos servidores públicos, pode-se divisar, de um lado — sob a ótica da Constituição “chapa-branca” —, uma tentativa de “entrincheiramento de privilégios de determinados setores do funcionalismo público”. De outro, no que havia de pretensão de modernização e republicanismo, uma justificável desconfiança em relação ao legislador infraconstitucional, particularmente os legisladores locais, em regra mais permeáveis a pressões corporativas.
Sob qualquer dos dois ângulos, porém, a constitucionalização das questões atinentes ao funcionalismo e ao funcionamento da máquina pública teve como pretensão blindar tais matérias do jogo político ordinário e, de algum modo, assegurar um padrão nacional no seu trato. Daí decorreram, contudo, duas consequências negativas: (i) a vulgarização da Constituição, cuja dignidade normativa é minada toda vez que a matéria conjuntural nela incluída sofre pressão de reforma e (ii) um déficit democrático e federativo relevante, já que o entrincheiramento constitucional de decisões políticas ordinárias e interesses corporativos obstrui injustificadamente os canais infraconstitucionais de deliberação política majoritária.
Outra externalidade (negativa) relacionada foi alçar os conflitos decorrentes do regime jurídico dos servidores públicos à natureza de conflitos constitucionais. Basta uma leitura despretensiosa dos repositórios de jurisprudência do STF para se constatar a dominância que as matérias atinentes ao funcionalismo e à administração pública em geral têm na sua pauta de julgamentos. Especialmente, no âmbito do controle concentrado, essa centralização temática pode ser resultado do perfil dos legitimados à sua provocação, das restrições jurisprudencialmente erigidas para o manejo das ações diretas e mesmo do background funcional dos ministros do Supremo — que, com frequência, já ocupavam cargos de relevo na burocracia jurídica do Estado.
De janeiro de 2000 até 15 de abril de 2018, o Supremo emitiu decisões finais em 3.160 ações de controle abstrato de constitucionalidade (ADI, ADPF, ADC e ADO). De acordo com a indexação temática do próprio Tribunal, 1.878 dessas decisões (59,43% do total) diziam respeito a matérias tipicamente de direito administrativo, sendo a grande maioria concernente a interesses do funcionalismo público.
Do processo de disputa instaurado em torno das normas do capítulo, tanto como do povoamento do texto com as miudezas e detalhes conjunturais mencionados, resultaram nove emendas formais, alcançando, por vezes substancialmente, um número expressivo das normas ali contidas. Quase 10% do total das emendas constitucionais aprovadas tiveram como alvo o capítulo dedicado à administração pública.
Outra interessante perspectiva acerca da legitimidade da ação administrativa é a sustentada pelo professor Eduardo Jordão, em artigo originalmente publicado em inglês e intitulado como “As três dimensões do Direito Administrativo”. No trecho abaixo, Jordão sustenta que, quando o Direito Administrativo assume a sua dimensão política, a abertura à participação dos particulares nos processos decisórios reveste a atividade administrativa de uma maior legitimidade.
As três dimensões do Direito Administrativo
Por Eduardo Jordão
In: A&C – Revista de Direito Administrativo e Constitucional.
Belo Horizonte, ano 19, n. 75, jan./mar. 2019
2.3 A dimensão política
A administração pública faz numerosas escolhas autônomas no âmbito da liberdade expressamente concedida pela lei ou resultante da sua indeterminação. Estas escolhas têm um carácter político, pelo menos em sentido fraco. De fato, muitas vezes é necessário dar prioridade a alguns deles, em detrimento de outros. Tomemos como exemplo a decisão de expropriar certas habitações para a construção de uma cidade universitária, ou a decisão de construir uma via de alta velocidade no interior de um parque público, ou a escolha de uma norma tecnológica nacional para a televisão digital.
Nestes e em muitos outros casos, o governo terá de fazer escolhas difíceis, beneficiando alguns cidadãos e prejudicando outros. Nos casos em que exerce uma função política ou quase política, é importante discutir a legitimidade das opções tomadas pelo administrador público. O direito administrativo não fica à margem dessa preocupação: ele também tem uma dimensão política. A intenção de garantir a legitimidade dessas escolhas administrativas é clara em medidas de dois tipos.
Em primeiro lugar, nos esforços para fazer com que a ação administrativa seja aderente à vontade dos cidadãos. Veja-se, por exemplo, a proliferação de regras que exigem (ou regulam) a participação dos cidadãos nas regras adotadas pelas autoridades administrativas. A abertura à participação do público serve para garantir que os seus desejos sejam ouvidos e que a decisão administrativa resultante seja razoavelmente informada por esses influxos.
Em segundo lugar, nas iniciativas destinadas a garantir a transparência da ação administrativa. Pensemos nas regras de publicidade ou de fundamentação das decisões administrativas, bem como nas regras de acesso aos documentos na posse dos organismos públicos. São formas de garantir a legitimidade da ação administrativa através da divulgação dos seus aspectos mais importantes.
A partir dessas premissas, você pode debater as diferentes perspectivas no sentido de adotar uma posição sobre a forma pela qual a ação administrativa é legitimada atualmente. Isso é importante para verificar como a participação dos particulares nas atividades administrativas se caracteriza. Como um direito fundamental? Como uma garantia processual? São alguns exemplos.
Mas você pode se perguntar: por que é importante caracterizá-la dessa forma? Porque a depender do seu conteúdo e do seu enquadramento, é possível elencar alguns critérios para o seu efetivo cumprimento como um direito fundamental, como uma garantia processual ou apenas como um procedimento participativo. Ou, até, estabelecer critérios para a sua eventual restrição. Veja que a atribuição de um status constitucional ou de uma garantia processual pode ensejar a nulidade de uma decisão pública, no caso de ausência de participação dos particulares ou do grau de abertura à manifestação dos interessados.
Além do grau de abertura à participação dos particulares, outros fatores também podem ser relacionados. Tome como exemplo o entendimento sustentado pelo professor Jordão, de que a garantia da legitimidade da ação administrativa passa pelo interesse do Estado em divulgar os mecanismos de participação popular na Administração e de efetivar a transparência, a publicidade e a motivação das atividades administrativas. Esses também podem ser critérios para aferir a efetividade da participação dos particulares na Administração Pública.
E é a partir dessas perspectivas postas que algumas objeções são observadas na prática e, assim, merecem a nossa atenção.
A primeira delas é verificada em um caso da realidade em âmbito nacional que demonstra a utilização do instrumento participativo da consulta pública apenas formalmente, sem qualquer conteúdo material efetivo. Trata-se do questionamento da credibilidade da consulta pública realizada pelo Ministério da Educação (MEC) sobre o Novo Ensino Médio. As contestações de professores e profissionais do ensino surgiram após o presidente do Conselho Nacional de Secretários da Educação (CONSED) declarar que a proposta dessa entidade seria similar àquela que o governo pretendia anunciar após a finalização da consulta pública em âmbito nacional. Isso é, a decisão já estaria tomada antes da realização da consulta pública.
EDUCADORES QUESTIONAM “CREDIBILIDADE” DA CONSULTA PÚBLICA DO MEC SOBRE O NOVO ENSINO MÉDIO
Contestações surgiram após o presidente do Consed declarar que uma proposta do conselho seria similar à que o governo pretende anunciar
Por Ana Luiza Basílio
Carta Capital, 05/07/2023, Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/educadores-questionam-credibilidade-da-consulta-publica-do-mec-sobre-o-novo-ensino-medio/
Uma declaração do presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação gerou críticas de educadores e instituições à consulta pública de reestruturação da Política Nacional de Ensino Médio, aberta pelo Ministério da Educação e que será finalizada nesta quinta-feira 6.
Na segunda 4, o presidente do Consed, Vitor de Angelo, também secretário de Educação do Espírito Santo, anunciou ter entregue ao MEC um documento com sugestões de avanços na implementação do Novo Ensino Médio.
Em uma publicação nas redes sociais, escreveu: “Nossa proposta é similar ao que o governo pretende anunciar após a consulta pública sobre o novo modelo educacional”. A afirmação causou estranheza entre educadores, que chegam a questionar a credibilidade da consulta pública anunciada pelo Ministério da Educação.
Para Fernando Cássio, doutor em Ciências pela USP e professor da universidade Federal do ABC, a declaração é grave. “Se o Ministério da Educação já tem uma proposta definida, temos um problema”, alerta. “Qual o sentido de uma consulta pública aberta na sociedade se o governo já tem uma proposta e ela é igual à do Consed e à das instituições empresariais? E mais: se essa proposta já existe, onde ela está? Com quem ela foi debatida? Ao que parece, ela foi, sim, negociada, mas a portas fechadas”.
Crítica semelhante registrou nas redes a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda. “Consed apresentou proposta de NEM ao governo e seu presidente postou no IG que ‘é similar ao que o governo pretende anunciar após a consulta pública’. Essa afirmação, se procedente, é gravíssima, pois pressupõe que o MEC tem posição antes do fim da consulta. Consulta pra quê?”, escreveu.
Quando o Ministério da Educação anunciou a prorrogação da consulta pública, em junho, afirmou que atendia a um pedido do Conselho Nacional de Educação, do Fórum Nacional de Educação, do Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais e Distrital de Educação e do Conselho Nacional dos Secretários de Educação.
A reportagem de CartaCapital tentou conversar com o presidente do Consed, Vitor de Angelo, mas não obteve resposta. Procurado, o MEC informou em nota que “a proposta do Consed foi recebida, assim como as de outras entidades educacionais, e todas serão analisadas para elaboração do relatório”.
Ainda de acordo com a pasta, após consulta pública será elaborado um relatório no prazo de 30 dias com os principais pontos debatidos. O ministério também informou que mais de 100 mil pessoas já opinaram sobre o ensino médio, conforme dados computados até 15h57 desta quarta-feira.
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Outra objeção diz respeito aos temas submetidos às consultas e audiências públicas. Muitas vezes, revestidos de alta tecnicidade, o que os torna complexos e de difícil compreensão pelos particulares. Nessa perspectiva, o particular se torna submisso à falta de uma informação adequada justamente por um excesso de informação.
Perceba que, em decorrência do princípio da publicidade, a Administração tem o dever de adotar comportamentos necessários para o alcance e a difusão do conhecimento de atos e de informações do Poder Público. A insuficiência ou a deficiência de informações adequadas compromete a efetividade da participação e da influência dos particulares.
Os temas ainda podem ser muito específicos, alcançando apenas determinados grupos de interesse ou de atuação na área. O que poderia ocasionar a prevalência dos interesses participativos mais organizados e com mais recursos, em detrimento dos interesses de outros setores da sociedade.
Mas como uma eventual captura ou uma prevalência de interesses de grupos sociais poderia ser evitada? No trecho abaixo, retirado de um artigo de autoria dos professores Natasha Salinas, Lucas Thevenard e Patrícia Sampaio, reitera-se a importância de observar também a informação posta, dessa vez referente aos participantes das consultas e audiências públicas.
Propostas para assegurar a efetividade das consultas e audiências públicas nos processos regulatórios
Por Lucas Thevenard Gomes, Natasha Schimitt Caccia Salinas e Patrícia Regina Pinheiro Sampaio
(Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/78223/1/Livro_Boas_Praticas_Regulatorias.pdf.)
3.2. – Ter atenção à qualidade das informações sobre os participantes
A regulação envolve interesses altamente assimétricos. Uma política pública considerada eficiente pode, ainda assim, alocar a maior parte de seus custos a grupos sociais considerados vulneráveis e concentrar benefícios em parcelas privilegiadas da população, suscitando questões distributivas Consequentemente, as decisões das entidades reguladoras devem ser informadas pelas preferências de atores oriundos de diferentes grupos sociais.
Deve-se considerar quem é mais ou menos afetado pela proposta regulatória e quais são os impactos percebidos pelos diferentes grupos.
No âmbito da participação social, isso significa que interessa saber quem participa de uma consulta ou audiência pública. É importante que seja fácil para o regulador – e também para a sociedade como um todo – identificar quais interesses estão representados nas contribuições oferecidas em consultas e audiências públicas.
Diversos estudos acadêmicos já identificaram um problema de sobre representação dos interesses de atores econômicos – sobretudo empresas do setor regulado – nas consultas e audiências de agências reguladoras, o que se explica pelo fato de que esses atores detêm interesse direto sobre o resultado regulatório a ser atingido, sendo, assim, um grupo com interesses mais homogêneos e, portanto, mais disposto a investir tempo e recursos necessários para participar. O projeto Regulação em Números, da FGV Direito Rio, levantou dados sobre a participação social nas 11 agências reguladoras federais brasileiras listadas na Lei Federal 13.848/2019, identificando que agentes econômicos (regulados e não regulados) respondem por grande parte das contribuições recebidas, ao passo que organizações de representação dos interesses dos usuários/consumidores possuem, como regra, participação muito menos expressiva. Usuários e consumidores tendem a ser grupos mais dispersos, com interesses múltiplos e, por conseguinte, menos dispostos a participar.
Diante desse quadro, torna-se particularmente importante que informações sobre os participantes estejam disponíveis, tanto para que as próprias agências tomem conhecimento da origem das contribuições que recebem em consultas e audiências e possam tomar decisões mais bem informadas, quanto para que a sociedade possa monitorar o problema e mais pesquisas acadêmicas possam ser feitas.
Sendo assim, é desejável que os dados disponibilizados pelos órgãos sobre suas consultas incluam informações de boa qualidade sobre os participantes, como atuação (ou não) no setor regulado, vínculos com empresas que atuam no setor ou organizações representativas de interesses econômico-sociais específicos ou de usuários/consumidores, dentre outros. Essa recomendação torna-se especialmente relevante para as pessoas físicas participantes. Nos relatórios de respostas às contribuições publicados pelas agências reguladoras, é comum a divulgação do nome da pessoa física do participante, sem que seja possível, no entanto, identificar se é o caso, por exemplo, de uma pessoa usuária de serviço, profissional do setor ou estudiosa sobre o tema da consulta ou audiência pública realizada.
A Anvisa atualmente utiliza em suas consultas públicas um formulário bastante completo, que poderia servir de modelo às demais agências. O preenchimento deve ser voluntário (campos não obrigatórios, para não desestimular aqueles que desejem ou necessitem realizar contribuições desidentificadas) e as informações e categorias utilizadas no formulário devem ser selecionadas de forma criteriosa, preservando a privacidade de participantes, sem que haja divulgação indevida de seus dados pessoais sensíveis.
Até aqui, você já observou que a influência e a participação dos particulares na Administração pode ser desvirtuada ou simulada em um processo decisório administrativo. Ou, até mesmo, enfrentar objeções de ordem prática que afetam diretamente a sua efetividade.
Embora assegurada pela Constituição de 1988 e por outros dispositivos legais, a manifestação dos particulares na Administração Pública foi evidenciada a partir da disposição do artigo 29 da Lei n.º 13.655/18, que alterou a LINDB e do Decreto n.º 9.830/19 e que regulamentou os seus artigos 20 a 30. Essa previsão legal corrobora a utilização de instrumentos participativos para a instrução de processos e edição de atos normativos. E mais: incentiva o uso de meios eletrônicos para a aumentar a divulgação e a participação, além de estabelecer o acesso aos autos como como uma verdadeira condição do direito de manifestação dos particulares. Isso evidencia uma nítida preocupação com o princípio da transparência administrativa.
Embora se observe uma inegável relevância do artigo 29 da LINDB para a consolidação do sistema de democracia administrativa, há quem aponte que o dispositivo analisado pouco ou nada avançou na disciplina das consultas públicas, tendo em vista que seu conteúdo não difere daquilo que já era previsto em outras legislações brasileiras e, principalmente, por algumas objeções verificadas. Veja a análise do professor Thiago Marrara a respeito dos problemas verificados a partir da disposição do artigo 29 da LINDB:
Consultas públicas: o que mudou com a LINDB?
Por Thiago Marrara
In: MAFFINI, Rafael; RAMOS, Rafael (Org.). Nova LINDB: Proteção da confiança, consensualidade, participação democrática e precedentes administrativos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 153-172
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Primeiro problema: a consulta como faculdade
A primeira falha do legislador foi prever a consulta pública como mecanismo de uso facultativo no art. 29 da LINDB. Qual a utilidade dessa faculdade? A consulta não era anteriormente permitida? Dependia de autorização legal para ser realizada?
A consulta pública é mecanismo de participação popular que, a princípio, não restringe nem viola princípios. Muito pelo contrário: ela promove o valor democrático, o direito de manifestação, a segurança jurídica e a efetividade das decisões. Por essas características, não se aplica ao instituto a exigência de reserva legal, ou seja, não há necessidade de que, no direito brasileiro, o legislador confira expressa autorização para que uma consulta ou audiência pública possa ser realizada. Na verdade, por estar lastreada em princípios de peso constitucional, a lei somente necessita tratar da consulta pública para: ou exigi-la em certos casos; ou proibi-la em certos casos ou disciplinar seu regime jurídico.
Em assim sendo, não se encontram justificativas plausíveis para a explicar a timidez do comando legal. Ao criar uma mera faculdade, a LINDB não muda nada em termos jurídicos. O legislador deveria ter ousado mais, previsto a obrigatoriedade da consulta pública nos processos administrativos preparatórios de atos impactantes sobre a vida coletiva, ou seja, de atos que restringem a vida social ou econômicas, afetando direitos e liberdades fundamentais. Deveria ter adotado algo parecido ao que consta da Lei federal das agências reguladoras, ou seja, imposto consultas públicas para atos regulamentares de conteúdo restritivo e baseados na polícia administrativa e na regulação, por exemplo.
Essa timidez do art. 29 no tocante ao uso da consulta pode (e deve) ser superada por, ao menos, três caminhos. A uma, os entes políticos (Estados e Municípios) necessitam legislar sobre a matéria e definir os casos de obrigatoriedade que entendem mais importantes. Isso pode ser feito por meio de disposições em leis gerais de processo administrativo estadual ou municipal. A duas, na falta das referidas leis, as próprias entidades da Administração Direta ou Indireta podem, em exercício de autolimitação a favor da democracia e da segurança jurídica, estipular compromissos de consulta obrigatória antes de tomar decisões que impactem os destinatários. A três, seria igualmente possível e recomendável alterar o art. 29 da LINDB para nele inserir disposições definidoras de processos que exigem consulta pública em razão do impacto potencial das decisões neles elaboradas. A Lei passaria, assim, a prever casos de obrigatoriedade da consulta para processos administrativos estratégicos e altamente restritivos da vida privada.
Segundo problema: a restrição da consulta a certos atos
A consagração de uma mera “faculdade” de realizar consulta pública se torna ainda mais incompreensível quando se considera que o texto da LINDB atrela seu uso a processos administrativos de normatização extroversa e afasta de seu comando os processos de elaboração de “atos normativos de mera organização interna” – de que são exemplos os regimentos internos e outros textos de normas gerais e abstratas que a Administração edita para que seus órgãos funcionem, sem, porém, visar a afetar imediatamente direitos e interesses de terceiros.
A questão que se põe frente a essas duas restrições legais são as seguintes: se o art. 29 da LINDB não prevê obrigatoriedade de consulta para qualquer tipo de processo administrativo, por que o legislador vinculou seu uso a processos de normatização? A contrario sensu, seria possível afirmar que a consulta fica proibida em todos os outros processos administrativos que não tratem de normatização? Seria a disposição legal relativa aos atos de mera organização interna uma proibição nacional para a realização de consulta pública?
A menção a atos normativos pelo dispositivo legal faria sentido se houvesse, como dito, a previsão de obrigatoriedade de uso da consulta pública. No entanto, como se consagrou na lei uma mera faculdade, essa referência a atos normativos extroversos e a exclusão de atos de organização interna mais confundem do que esclarecem. Passam a ideia de que essa faculdade não existiria, senão nos processos de normatização. A consulta restaria proibida fora deles.
A solução desse problema de interpretação a contrario sensu do texto legal é relativamente simples. Como toda e qualquer lei, a LINDB deve ser interpretada em conformidade com a Constituição da República que, como visto, sustenta a figura da consulta pública em vários princípios gerais, liberdades e direitos fundamentais. Levando-se em conta que a consulta é instrumento de concretização da Constituição, jamais poderá uma lei impedir o seu uso para situações plenamente justificáveis. A luz da Constituição, a consulta somente poderá ser rechaçada quanto for empregada a fim de protelar a finalização do processo administrativo e, portanto, comprometer a garantia fundamental da duração razoável e o exercício de direitos dos interessados. Igualmente concebível será a vedação de seu uso com qualquer tipo de desvio de finalidade.
Nesses casos patológicos, sim, restrições são possíveis.
No entanto, extrair da LINDB qualquer proposta de vedação geral de consultas pelo objeto do processo administrativo implica, a princípio, violar a Constituição. A forma mais simples de contornar o problema redacional consiste em simplesmente promover a interpretação da lei à luz dos comandos maiores do ordenamento ou, se possível, aprimorar a redação do art. 29 para dificultar inadequações interpretativas.
Terceiro problema: confusão de participantes com interessados
Existem termos técnicos do processo administrativo que são frequentemente confundidos, inclusive em textos legais, por seu conteúdo igualmente vulgar. Como já se alertou anteriormente, a palavra “interessado” é um desses conceitos que recebe definição própria na Administração Pública.
De maneira sintética, interessados são as pessoas físicas e jurídicas cujos direitos ou interesses juridicamente tutelados podem ser atingidos pela decisão administrativa final. Interessado no processo administrativo é o equivalente à parte no judicial. Como explica Egon Bockmann Moreira, o legislador preferiu a palavras “interessado”, em vez de parte, pois o processo administrativo é muito mais rico e multifacetado que o judicial.
Na LINDB, porém, afirma-se que a consulta será realizada para “manifestação de interessados”. Se interpretada em sentido técnico, esse trecho normativo poderá levar à falsa conclusão de que a consulta não é aberta a qualquer do povo, mas tão somente às partes do processo administrativo. Essa interpretação é muito perigosa, pois poderia negar a essência e finalidade da consulta pública, que não se confunde com mecanismos de garantia da ampla defesa. A função da consulta não é proteger a parte, viabilizar a ampla defesa ou o contraditório, mas sim garantir o exercício do direito de manifestação pela sociedade, ou seja, por qualquer pessoa física ou jurídica, a despeito de relação direta com o objeto do processo.
A palavra interessado, tal como empregada no art. 29, caput da LINDB, é completamente incabível e deve ser interpretada em sentido distinto, vulgar, simples. Melhor dizendo: a consulta pública serve para viabilizar a manifestação dos “interessados” em auxiliar a Administração, ou seja, de qualquer pessoa que tenha interesse em colaborar com o Estado. Não se trata do interessado em sentido técnico, com parte dos processos administrativos na defesa de seus direitos, mas sim de pessoas em geral, ou seja, dos participantes.
Para que a consulta seja efetiva e não meramente simbólica, a esses participantes (impropriamente chamados de interessados pela LINDB) devem ser garantidos quatro direitos subjetivos: (i) o de acesso aos autos, que a lei prevê de modo explícito no § 1º do art. 29; (ii) o de manifestação escrita; (iii) o direito à consideração da manifestação e (iv) o de resposta. Todos eles derivam da própria lógica e finalidade da consulta pública. Dessa maneira, ao violá-los, a Administração maculará a participação popular e poderá ocasionar a anulação da consulta.
Quatro problema: o veto à publicação
O quarto e último problema do art. 29 resulta não de deficiências redacionais, mas do veto que o § 2º sofreu, porque o Presidente da República entendeu que suas exigências gerariam morosidade e ineficiência na sistemática da consulta pública em prejuízo a interesses públicos.
Muito antes da LINDB, em 2005, Paulo Modesto já alertava que “ a participação popular tem sido entre nós sobretudo um discurso, não se traduzindo de modo constante e relevante em facticidade”. Isso exigiria, a seu ver, reflexões urgentes sobre as formas e as condicionantes, inclusive extralegais, da participação cidadã. Nessa lógica, entendo que uma estratégia para com-
bater o uso simbólico e retórico que alguns órgãos da Administração fazem da consulta pública consiste em densificar seu regime jurídico e explicitar melhor os direitos dos participantes na legislação.
É exatamente por isso que o texto originário da LINDB teria um papel estratégico para o avanço da Administração brasileira. Ao exigir medidas de transparência, em última instância, o § 2º embutia uma proteção relevantíssima de alguns direitos básicos dos participantes nas consultas públicas e, com isso, tinha grande potencial de modificar a prática da Administração nos planos federativos dos Estados e dos Municípios.
Somando-se ao § 1º, que prevê o direito de acesso aos autos como uma garantia para a formulação de manifestações, o § 2º impunha “a publicação, preferencialmente em meio eletrônico, das contribuições e de sua análise, juntamente com a do ato normativo”. Ao exigir a publicação (i) das manifestações e (ii) das análises, o parágrafo tornava efetivo dois direitos essenciais para a funcionamento das consultas públicas: o direito de ter a crítica ou sugestão considerada pelo órgão condutor do processo e o direito de obter uma resposta oficial sobre a manifestação. A divulgação requerida pelo parágrafo vetado geraria a transparência necessária para viabilizar o controle do respeito aos direitos à consideração e à resposta, tornando a consulta um instrumento mais efetivo e menos simbólico.
Mas não é só isso: a transparência das manifestações e das análises também serviria para (i) evitar distorções no uso da consulta pública e (ii) afastar o comodismo dos órgãos públicos em certos casos.
Como bem alerta Irene Patrícia Nohara, para que mecanismos de participação popular alcancem o objetivo de “ser reflexo de manifestação da soberania popular”, os agentes públicos necessitam adotar “posturas éticas, evitando direcionar os debates, de forma autoritária, para um entendimento preestabelecido…”.
Ao exigir a divulgação das manifestações e das análises, o § 2º desestimularia esses riscos de distorção, de desvio de finalidade e outras práticas imorais, pois exporia as condutas dos agentes públicos responsáveis pela consulta.
Além disso, a proposta técnica de divulgação contribuiria para coibir a má-gestão, o descaso e o comodismo no processo administrativo. Esse problema não deve ser minimizado na atualidade. De acordo com Sérgio Ferraz e Adilson Dallari, a prática do processo administrativo tem demonstrado que autoridades de instrução e decisão competentes para decidir operam com certo desinteresse em muitas ocasiões, deixando de fazer o exame aprofundado das provas e dos fatos. Ao exigir que as manifestações e análises da consulta recebessem divulgação juntamente com o ato normativo aprovado ao final do processo, o § 2º do art. 29, se não tivesse sido vetado, estimularia as autoridades a tomar mais cuidado com o conteúdo e o motivo da sua decisão, bem como a examinar com redobrada cautela e dedicação todos os elementos do processo, inclusive as manifestações que a população carregou aos autos, por meio da consulta, para auxiliar a tomada de decisão.
3. DEBATENDO
- A participação dos particulares na Administração Pública pode ser elevada a um status constitucional ou ser considerada como um direito fundamental ou é apenas uma garantia processual? E o que isso implicaria na prática?
- A partir da leitura dos textos dos professores Binenbojm, Gargarella, Patrícia Baptista e João Pedro Accioly, quais as implicações da constitucionalização sobre o Direito Administrativo e, em especial, sobre a sua influência na interação dos particulares com a Administração Pública?
- Há alguma restrição à participação dos particulares que poderia ser imposta pela Administração Pública? Isso seria legítimo?
- Quais outras objeções que podem ser elencadas para a efetividade da participação dos particulares na Administração Pública?
- Como se pode dimensionar a transparência administrativa na participação dos particulares nas decisões e escolhas públicas?
- Levando em consideração a divisão digital brasileira, quais os critérios para assegurar uma participação efetiva dos particulares na Administração Pública?
- As consultas e audiências públicas são um dever ou uma faculdade? E o que a obrigatoriedade delas influenciaria na eficiência administrativa?
4. APROFUNDANDO
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