Roteiro de Aula

Como está a autonomia das Agências Reguladoras?

O resultado do controle exercido pelo TCU sobre as Agências Reguladoras

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1. CONHECENDO O BÁSICO

As Agências Reguladoras Independentes surgiram na década de 90 como figuras novas, não enquadradas na estrutura tradicional de separação dos poderes. Essas entidades foram desenhadas para operar com autonomia e independência, visando a eficiência na regulação de setores essenciais à sociedade.

Entretanto, essa autonomia não está imune à sistemática constitucional. Visando um equilíbrio, há do outro lado da balança um conjunto de controles jurídicos, políticos e sociais, destinados a manter os objetivos constitucionais estabelecidos e visados pelo Estado democrático de direito.

A problemática que pauta a presente aula é justamente quando o pêndulo da balança pesa mais para o lado do controle. O resultado é a redução da autonomia? Esse resultado desconfigura a natureza das Agências Reguladoras Independentes?

Buscando guiar o estudo e a discussão que se propõe, algumas premissas básicas sobre o assunto devem ser apresentadas. A primeira delas está relacionada ao limite da atuação regulatória. A doutrina entende que a atividade regulatória deve ser pautada pelos princípios da subsidiariedade, da proporcionalidade e da legalidade. 

Ou seja, as Agências devem regular seus respectivos setores somente quando for necessário. E quando será necessário? De acordo com as principais teorias da regulação, essa necessidade pode surgir em casos de falhas de mercado ou atendimento a determinados interesses públicos. Traçado o limite da necessidade da regulação, a Agência deverá atuar de modo proporcional a respeitar esse limite. E, por fim, toda e qualquer regulação deverá ser pautada na previsão legal estabelecida para a questão. 

A segunda premissa esclarece que as Agências Reguladoras não possuem uma autonomia ilimitada, como figuras integrantes do Poder Executivo e em cumprimento ao modelo de freios e contrapesos observado pela sistemática da divisão de Poderes, sua atuação está submetida à realização de controle pelo Poder Judiciário. 

Nota-se, contudo, que esse controle não tem sido realizado tão somente pelo Poder Judiciário. Outro protagonista tem surgido nesse diálogo: o TCU.  

Nesse cenário, há uma interessante discussão sobre a competência do TCU para a realização desse controle. A doutrina entende que a competência seria para controlar as atividades-meio das Agências, não as atividades-fim, de regulação propriamente. Aliás, o próprio discurso institucional do TCU se alinha com esse entendimento. Contudo, a análise empírica de acórdãos prolatados pelo Tribunal, deixa alguma dúvida… 

A proposta desta aula é aprofundar a reflexão sobre a atuação do TCU e suas consequências para a autonomia das Agências Reguladoras. Buscaremos compreender se a intervenção do TCU é benéfica ou prejudicial à eficácia regulatória e quais soluções podem ser propostas caso essa interferência seja considerada excessiva.

A abordagem adotada aqui visa não apenas fornecer uma compreensão teórica sobre o tema, mas também conectar essa teoria à prática do direito administrativo. O objetivo é que os alunos consigam ver a intersecção entre os conceitos jurídicos e as realidades enfrentadas pelas Agências, reconhecendo a importância da análise empírica na formação de soluções adequadas e no desenvolvimento do direito.

Para guiar essa discussão, apresentaremos um material de leitura que permitirá aos alunos explorarem os tópicos tratados, fomentando um debate crítico e a formulação de novas perguntas. Questões como a eficácia da regulação, os limites do controle do TCU e as implicações para a autonomia das Agências são essenciais para o entendimento do papel dessas instituições no contexto do direito administrativo contemporâneo.

Assim, a aula consiste em oportunidade valiosa para que os estudantes de direito ampliem suas perspectivas sobre a atuação das Agências Reguladoras, compreendendo tanto as bases teóricas quanto as implicações práticas de sua atuação no cenário jurídico brasileiro. Essa análise crítica é fundamental para a formação de profissionais capacitados a lidar com os desafios da regulação em um ambiente dinâmico e em constante transformação.

Segue abaixo o material de leitura separado para guiar a reflexão e o debate proposto. 

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

O pontapé inicial para reflexão que se pretende desenvolver nessa aula se dá com a leitura dos arts. 70, caput, e 71 da Constituição Federal. A análise dos dispositivos constitucionais é importante pois é a partir dela que se pauta a discussão sobre a competência (ou não) do TCU para exercer o controle sobre as atividades das Agências Reguladoras. 

Arts. 70, caput e 71 da Constituição de 1988

DA FISCALIZAÇÃO CONTÁBIL, FINANCEIRA E ORÇAMENTÁRIA

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

(…)

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: 

I – apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

III – apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;

IV – realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II;

V – fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo;

VI – fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;

VII – prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;

VIII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

IX – assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;

X – sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;

XI – representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.

§ 1º No caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis.

§ 2º Se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de noventa dias, não efetivar as medidas previstas no parágrafo anterior, o Tribunal decidirá a respeito.

§ 3º As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo.§ 4º O Tribunal encaminhará ao Congresso Nacional, trimestral e anualmente, relatório de suas atividades.

Em seguida, dê uma olhada neste artigo elaborado por Floriano de Azevedo Marques Neto e Juliana Bonacorsi de Palma. Em linhas gerais, o artigo busca avaliar e debater qual seria o desenho constitucional a pautar o diálogo entre o TCU e as Agências Reguladoras. Apresenta as discussões envolvendo as competências do TCU para controlar as Agências Reguladoras e, por fim, faz uma importante relação do tema com a discussão fundamental sobre governabilidade. Confira-se: 

Diálogos fora de esquadro: o controle das agências reguladoras pelo Tribunal de Contas da União 

Por Floriano de Azevedo Marques Neto e Juliana Bonacorsi de Palma
Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 120, pp. 203-236, jan./jun. 2020

1. Introdução 

(…)

Neste artigo, argumentamos que duas instituições de primeira grandeza para o Direito Administrativo ficaram de fora do projeto Constituinte de construção institucional e, principalmente por essa razão, terminam por estabelecer um diálogo fora de esquadro. O TCU operacional e as Agências Reguladoras são estranhos desconhecidos da Constituinte. Porém, são reais e interagem. O diálogo institucional entre TCU e Agências Reguladoras é aqui caracterizado como “fora de esquadro”, pois embora o controle se dê dentro da ordem constitucional, jamais o enquadramento constitucional foi arquitetado considerando a dinâmica de controle entre uma Agência Reguladora dotada de autonomia e independência frente ao chefe do Poder Executivo e um TCU com competência operacional. Isso traz consequências concretas à dinâmica de controle para além da natural complexidade e incerteza jurídica.

(…)

4. Um novo diálogo institucional: o controle das Agências Reguladoras pelo Tribunal de Contas

A já complexa relação de controle da Administração Pública pelo Tribunal de Contas, notadamente no controle de caráter operacional, ganha patamares de ainda maior complexidade quando a instituição controlada detém natureza especial (…). Mais interessante ainda é considerar que TCU com competências operacionais e Agências Reguladoras são duas instituições desconhecidas pela Assembleia Nacional Constituinte. Eis uma das principais questões jurídicas que têm animado os debates jurídicos: que controle das Agências Reguladoras pelo Tribunal de Contas o sistema jurídico brasileiro desenha? Pode o TCU emitir recomendações às Agências Reguladoras? E determinações? Tem competência para comandar a produção de normas regulatórias? Goza de legitimidade para determinar o modo de fiscalizar as reguladas, inclusive determinando o desenvolvimento de estudos e a manutenção de banco de dados? Está a seu alcance determinar o encaminhamento periódico de relatório de desempenho em projeto desenhado pela Agência? Pode determinar a inclusão em novos contratos de cláusula que defina metodologia de cálculo de indenizações relativas a bens reversíveis, não amortizados? A Constituição Federal lhe confere competência para impedir assinatura de termos de ajustamento de conduta por Agência Reguladora? Pode determinar o que se deve atentar em uma fiscalização, bem como a ordem de preferência dos objetos fiscalizados? E determinar a elaboração de metodologia para reclassificação de serviços com vistas à otimização das tarifas? Seu rol de competência abarca dar ciência a Agência de que o escasso quadro de servidores da Agência em áreas chave pode comprometer a concretização dos objetivos institucionais da entidade, em afronta ao princípio constitucional da eficiência? Pode determinar que lhe remeta manifestação da Agência sobre a repactuação do equilíbrio econômico-financeiro em contratos? E quanto à determinação de divulgação de dados e informações de contratos no site de internet da Agência?

Aqui não se discute o acerto ou desacerto dessas medidas, mas argumenta-se simplesmente que esses exemplos de controle sobre as Agências Reguladoras estão compreendidos no rol de competência constitucional do Tribunal de Contas. Embora nenhum autor afaste o controle das Agências Reguladoras pelo Tribunal de Contas, há verdadeira discordância sobre a medida desse controle, considerando o regime especial dessas entidades, que gozam de autonomia e independência para exercício da função regulatória.

(…) 

Quanto à medida do controle, a questão que se coloca diz respeito à intensidade do controle do Tribunal de Contas sobre a regulação ou à Agência Reguladora. Mais especificamente, interessa saber se a decisão controladora do Tribunal de Contas vincula, ou não, as Agências Reguladoras. Para Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara, o controle de legalidade do Tribunal de Contas recai apenas sobre a gestão financeira em sentido amplo da Administração; sobre o restante da gestão administrativa, o Tribunal de Contas só pode fazer fiscalização operacional e emitir recomendações.

(…)

O grande debate pode ser sintetizado em duas chaves de análise: competência e medida do controle das Agências Reguladoras pelo TCU são hoje os eixos centrais de uma discussão fundamental sobre governabilidade. Às diferentes respostas teóricas em debate contrapõem-se no que diz respeito a uma prática de deslocamento das competências regulatórias ao TCU. Amparado por considerável reputação institucional, paulatinamente o TCU construiu o conteúdo jurídico da expressão “operacional” que designa a competência que ineditamente lhe fora atribuída pela Constituição.

(…)

5. Considerações finais 

A complexidade do controle das Agências Reguladoras pelo TCU não pode ser atribuída unicamente ao fato de a Constituinte não ter antevisto as Agências Reguladoras ou não ter tomado adequada dimensão do quanto o TCU se transformaria com a previsão da competência operacional. Contudo, essa é uma informação relevante que ajuda a compreender os caminhos trilhados até que se alcançasse a atual dinâmica de controle, um diálogo fora do esquadro.

A disciplina constitucional é apenas um ponto de partida. Como analisado, competência e medida do controle das Agências Reguladoras pelo TCU são hoje os eixos centrais de uma discussão fundamental sobre governabilidade. Às diferentes respostas teóricas em debate contrapõem-se no que diz respeito a uma prática de deslocamento das competências regulatórias ao TCU. Amparado por considerável reputação institucional, paulatinamente o TCU construiu o conteúdo jurídico da expressão “operacional” que designa a competência que ineditamente lhe fora atribuída pela Constituição.Em um tom crítico a esse deslocamento de competência das Agências Reguladoras para o TCU, à revelia do texto expresso em lei, pode-se indicar que o diálogo fora de esquadro também assume novo significado para expressar que a dinâmica de controle hoje em prática talvez não seja hoje o desenho mais eficiente ou mais favorável à governabilidade. Situando o debate nas “regras do jogo da governabilidade”, três respostas normativas podem ser consideradas para aperfeiçoamento desse sistema de controle: (1) reforma constitucional para estabelecer o modo de interação entre Poderes e instituições na dinâmica do controle, o que importa não apenas no controle de contas, já que a Constituição não se ocupou em estabelecer as fronteiras do controle de um modo geral; (2) elaboração de uma nova lei orgânica do TCU, cujo processo legislativo seja democraticamente permeável e as importantes decisões sejam tomadas pelo Congresso, sem amplas delegações em branco para o próprio TCU dispor em seu Regimento Interno; e (3) orientação normativa do controle pelo TCU, normas essas que devem ser aprovadas no rito de um processo administrativo normativo orientado por análises de impacto, devida motivação e fases de audiência e consulta pública. a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

Dando continuidade à discussão sobre a competência do TCU para controlar as Agências Reguladoras, vale destacar o seguinte texto com as reflexões e provocações de Eduardo Jordão:

Quais os limites das competências do TCU sobre as agências reguladoras?

 Por Eduardo Ferreira Jordão

Direito do Estado, n. 476, 2021 (Adaptação de palestra apresentada em 28/10/2020 no Fórum sobre Concessões e PPPs, organizado pelo Estadão e pelo grupo Hiria).

A resposta mais óbvia a esta pergunta é a seguinte: os limites das competências do TCU sobre as agências reguladoras são, simplesmente, aqueles estabelecidos na Constituição e nas leis.

Essa resposta pode parecer tão óbvia, quanto banal e desnecessária. Afinal, este é o limite da atuação de quaisquer entidades públicas. Mas o fato é que a realidade e o dia-a-dia da atuação do TCU revelam a importância desta resposta óbvia, e a necessidade da sua afirmação.

É que, com a exceção dos autores que são membros do próprio TCU, a literatura é unânime em afirmar que a atuação do TCU extrapola inequivocamente e extensamente as competências que a Constituição e as leis preveem para ele.  E a literatura é também praticamente unânime em registrar como várias das atividades hoje realizadas corriqueiramente pelo TCU encontram respaldo normativo único nas normas infralegais criadas pelo próprio TCU. Ou seja, foi o próprio TCU que criou a base normativa de parte significativa da sua atuação.

(…)

Além disso, o Tribunal usa também as suas próprias normas para ampliar significativamente o significado de expressões que efetivamente constam do texto constitucional, como é o caso da ideia de “auditoria operacional”. 

(…)

Considerando a sua própria normatização infralegal, a jurisprudência do TCU frequentemente faz alusão ao Acórdão 1703/2004, de relatoria do Ministro Benjamin Zymler, para expor o entendimento do tribunal sobre o limite da sua atuação sobre as agências reguladoras.

Naquele acórdão, foi dito que, em relação às agências, o TCU exerce apenas um “controle de segunda ordem”, que teria como objeto “a atuação das agências reguladoras como agentes estabilizadores e mediadores do jogo regulatório” e não o “próprio jogo regulatório em si mesmo considerado”. Além disso, este controle de segunda ordem não permitiria ao TCU “se substituir às agências ou limitar os seus poderes”.

Esta, portanto, seria a resposta oficial do TCU à pergunta título deste artigo. Só que, a rigor, (i) nem é verdade que o TCU, na prática, só realiza um controle de segunda ordem; (ii) nem é verdade que este seja, de acordo com o nosso ordenamento, o único limite de sua atuação.

O TCU reconhecia ali, portanto, em 2004, que já tinha ido muito além desta ideia de controle de segunda ordem e já tinha feito às vezes de regulador, mas sugere que, dali em diante, as coisas seriam diferentes.

(…)

Em declaração do ano passado que foi bastante repercutida na mídia, outro Ministro do TCU justificava estas “intervenções mais fortes”, que seguem acontecendo, com um argumento bastante parecido ao que o acórdão 1703/2004 utilizou para se referir a um passado supostamente superado. Afirmou o Ministro que o Tribunal intervém mais nas agências que possuem pior reputação.

Ou seja, o TCU segue se crendo competente para avaliar qual agência reguladora é mais madura ou menos madura, mais bem reputada ou menos bem reputada, e se crendo competente para, nos casos em que considerar as agências imaturas ou com má reputação, se substituir a elas nas suas funções regulatórias.

Portanto, e a despeito de declarações em contrário, não é verdade que o TCU exerça sobre as agências reguladoras apenas um controle de segunda ordem. A propósito, acórdão recente de Relatoria do Ministro Raimundo Carreiro tem a seguinte ementa:

Acórdão 3251/2020 Plenário (Agravo, Relator Ministro Raimundo Carreiro)

Competência do TCU. Agência reguladora. Abrangência. Poder discricionário. Economicidade. Tarifa.

O TCU pode determinar medidas corretivas a ato praticado na esfera de discricionariedade das agências reguladoras, desde que esse ato viole o ordenamento jurídico, do qual fazem parte os princípios da economicidade da Administração Pública e da modicidade tarifária na prestação de serviços públicos.

O TCU admite que fará uma avaliação da correção de atos discricionários das agências reguladoras em face dos “princípios da Administração Pública”. Dada a lassidão por todos conhecida destes princípios, na prática que o TCU respeitará a discricionariedade das agências… quando concordar com as suas decisões.

Se é isso que é o controle de segunda ordem, fica difícil saber o que é um controle de primeira ordem.

De todo modo, tampouco é verdade que o nosso ordenamento jurídico estabeleça como único limite da atuação do TCU esta natureza de “segunda ordem” de seu controle.  Não é verdade que o TCU possa controlar totalmente a atividade das agências reguladoras, desde que não as substitua em suas competências finalísticas. Quais são, então, na realidade, os limites da atuação do TCU, de acordo com a nossa Constituição? Qual é o seu real papel? (…)

Finaliza-se a citação do texto sem as respostas para as perguntas finais de forma propositada, para estimular o desenvolvimento de possíveis e diferentes respostas durante a aula.

Seguindo com o debate, agora examine alguns acórdãos que demonstram como tem sido a atuação do TCU na prática. O primeiro acórdão que se propõe analisar é um julgado paradigma sobre o tema da atuação da Corte sobre as atividades das Agências Reguladoras. Destaca-se o voto do Ministro Relator Benjamin Zymler, que apresenta o controle do TCU como um controle de segunda ordem, um controle que estaria analisando a atuação das Agências, mas não se colocando em seu papel de regulador. Confira-se: 

Acórdão 1703/2004 – Plenário

Rel. Min. Benjamin Zymler, j. 03.11.2004

Sumário: Auditoria com o objetivo de verificar a adequação dos valores das tarifas do pedágio cobrado na rodovia Rio-Teresópolis, bem como acompanhar a execução do contrato de concessão e avaliar a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro. Falhas verificadas nas revisões, alterações e adequações tarifárias já ocorridas. Remessa de cópia do relatório à ANTT e à CRT, para manifestação prévia ao julgamento dessa auditoria. Audiência de um responsável. Determinação para reversão ao fluxo de caixa da CRT, para fins de redução da tarifa de pedágio, da receita recebida indevidamente, a qual deverá ser calculada com base no tráfego real. Outras determinações. Multa. Ciência ao Ministério dos Transportes, à ANTT e à CRT. Pedido de Reexame. Conhecimento. Provimento Parcial. Considerações sobre a competência do TCU para fiscalizar a atuação finalística das agências reguladoras. Substituição de algumas das determinações exaradas no Acórdão ora recorrido por recomendações de igual teor. Comunicação aos interessados. Arquivamento dos presentes autos.

Voto do Relator: 

(…)

13. Superada a discussão sobre o mérito das determinações dirigidas à ANTT, cumpre analisar a competência do TCU para expedir determinações relativas às atividades finalísticas das agências reguladoras. Ressalto não haver dúvida quanto à competência desta Corte no que concerne à atuação da área-meio dessas entidades. Assim, não está em questão, por exemplo, a possibilidade de este Tribunal determinar a adoção de um procedimento referente a uma licitação para a aquisição de bens de consumo ou à concessão de uma determinada vantagem salarial aos servidores desses entes reguladores.

14. Essa análise deve considerar que o advento dos entes reguladores integrou um novo arranjo político-institucional, decorrente de uma reforma do Aparelho do Estado Brasileiro que buscou redimensionar o papel da Administração Pública na prestação de serviços públicos. Naquela época, o Estado diminuiu sua função de prestador direto desses serviços na mesma proporção em que incrementou sua função regulatória. Por via de conseqüência, as agências reguladoras foram dotadas de maior autonomia financeira, administrativa e patrimonial em relação aos demais órgãos e entidades públicas.

15. Com esse desiderato, foi redefinido o conceito de concessão de serviços públicos, na forma prescrita pelo art. 175 da Constituição Federal de 1988, verbis:

(…)

16. Em atendimento ao disposto no parágrafo único do artigo 175 de nossa Carta Magna, acima transcrito, foi promulgada a Lei nº 8.987/1995, a qual dispôs sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos e deu outras providências.

17. Por meio da outorga da execução dos serviços públicos, o Estado visou garantir a prestação de serviços adequados, consoante se depreende da leitura do caput e do parágrafo único do art. 6º da Lei nº 8.987/1995, verbis:

(…)

18. Além disso, foi devidamente sopesada a possibilidade de a iniciativa privada aportar os recursos indispensáveis à expansão ou, até mesmo, à universalização desses serviços, num período histórico em que o Poder Público não tinha mais condições de investir o volume necessário de recursos.

19. Visando atingir tais objetivos, o Estado passou a regulamentar e a fiscalizar a prestação dos serviços públicos, diretamente, mediante um de seus órgãos, ou de forma descentralizada, por meio das agências reguladoras.

20. Em conformidade com essa nova concepção de Estado, o controle externo ganha preeminência. Em primeiro lugar, porque, além do exame da legalidade, os órgãos controladores devem verificar a eficiência e a economicidade da atuação das agências reguladoras. Esse poder-dever deflui das competências constitucionais da Corte de Contas Federal, especialmente daquela que autoriza a realização de auditorias operacionais (art. 71, IV, da Carta Magna). Aduz-se que diversas leis também consagram essa competência do TCU, como, por exemplo, a Lei nº 9.427/1996, que criou a Aneel, a qual estipulou em seu art. 7º que:

“Art. 7º A administração da Aneel será objeto de contrato de gestão, negociado e celebrado entre a Diretoria e o Poder Executivo no prazo máximo de noventa dias após a nomeação do Diretor-Geral, devendo uma cópia do instrumento ser encaminhada para registro no Tribunal de Contas da União, onde servirá de peça de referência em auditoria operacional.”

21. Em segundo lugar, porque a emissão pelo TCU de pareceres técnicos bem fundamentados pode ajudar a esclarecer muitas questões controvertidas relativas à regulação. Dessa forma, uma atuação eficaz e tempestiva da Corte de Contas diminuirá a quantidade e a complexidade das contendas que, como último recurso, serão encaminhadas ao Poder Judiciário.

22. Em terceiro lugar, porque a consagração do Princípio da Eficiência como um dos Princípios fundamentais da Administração Pública, em conformidade com a nova redação conferida pela Emenda Constitucional nº 19 ao caput do art. 37 da Constituição Federal, gerou novos deveres para o administrador público e, consequentemente, para o controle. Se, anteriormente, a atenção dos agentes públicos devia estar voltada para a legalidade dos atos administrativos, hoje, tanto o gestor quanto o auditor devem se dedicar à análise concomitante da legalidade e da eficiência. Donde se conclui que, independentemente da natureza jurídica da entidade pública que pratique um determinado ato, ele pode e deve ser apreciado sob os dois aspectos retromencionados.

23. Em quarto lugar, porque o TCU deve exercer o controle das agências reguladoras tanto sob o enfoque liberal (concernente à fiscalização da legalidade) quanto sob o enfoque gerencial (concernente ao incremento da eficiência da Administração Pública). Consequentemente, o Tribunal não só pode como deve atuar visando dotar as ações das agências da maior eficiência possível.

24. Finalmente, deve-se considerar que a atuação do Tribunal de Contas da União, analisando detalhadamente os atos praticados pelas agências e divulgando o resultado de seus trabalhos, facilita sobremaneira o exercício do controle social. Afinal, os usuários dos serviços públicos não dispõem de assessoria profissionalizada para fazer frente aos interesses dos grupos mais organizados. Ressalto que um dos desafios das democracias modernas é a construção de um modelo de governo baseado no controle exercido pela sociedade civil sobre os detentores do poder político. Aliás, nesse sentido, nossa Lei Maior previu a participação do usuário na Administração Pública direta e indireta.

25. Com fulcro nessas breves considerações, entendo ter ficado patente que o TCU possui competência para fiscalizar as atividades finalísticas das agências reguladoras. Entretanto, cumpre analisar a forma como o Tribunal deve atuar e os limites dessa atuação.

26. O TCU deve atuar de forma complementar à ação das entidades reguladoras no que concerne ao acompanhamento da outorga e da execução contratual dos serviços concedidos. Afinal, o fato de o Poder Concedente deter competência originária para fiscalizar a atuação das concessionárias não impede a atuação cooperativa e suplementar do TCU, que pode, assim, fiscalizar a prestação dos serviços públicos delegados. Por outro lado, a Corte de Contas não pode substituir o órgão regulador, sob pena de atuar de forma contrária à Constituição Federal. Nesse sentido, cumpre reiterar que a fiscalização do Tribunal deve ser sempre de segunda ordem, sendo seu objeto a atuação das agências reguladoras como agentes estabilizadores e mediadores do jogo regulatório. Logo, essa fiscalização não deve versar sobre o jogo regulatório em si mesmo considerado.

27. Ressalto que, em várias ocasiões, o Tribunal exerceu funções típicas de órgão regulador. Essa atuação, que pode ser considerada indevida, foi necessária quando as agências reguladoras, por se encontrarem em sua fase inicial de implantação, ainda não dispunham das condições necessárias para exercer plenamente as respectivas competências. Ocorre que essa fase está se encerrando, pois a maior parte das entidades reguladoras está se estruturando, inclusive no que concerne à formação de seus quadros de pessoal. Aduzo que, se esta Corte de Contas invadir o âmbito de competência das agências reguladoras, ainda que movida pela busca do interesse público, o TCU contribuirá para o incremento da “incerteza jurisdicional”, que gera o receio de que os contratos não serão cumpridos na forma em que foram celebrados e implica o incremento do custo indireto de transação dos investimentos internacionais, consoante lembrado pelo ilustre Procurador-Geral. Assim sendo, entendo que, daqui por diante, o TCU deve procurar restringir sua atuação de forma a adequá-la aos parâmetros constitucionais e legais.

28. Ademais, a atuação da Corte de Contas na área sob comento deve ser sempre pautada pela busca da excelência técnica, a qual conferirá ao Tribunal legitimidade junto às agências, aos concessionários e à sociedade civil em geral. Note-se que, sendo o TCU o órgão que examina, sob diferentes aspectos, a atuação de agentes reguladores em praticamente todos os setores da economia, ele detém as melhores condições potenciais para desenvolver uma visão sistêmica do modelo regulatório brasileiro. Em conseqüência, esta Corte pode contribuir significativamente para a disseminação de boas práticas de regulação, independentemente do segmento em que atuam as agências.

(…)

31. Finalmente, ressalto que, no exercício do controle externo das concessões de serviços públicos, o TCU se defronta com dois tipos de atos praticados pelas agências reguladoras: os vinculados e os discricionários. Quando os atos supostamente irregulares forem do primeiro tipo, ou seja, quando as entidades reguladoras tiverem violado expressa disposição legal, o Tribunal pode determinar a esses entes que adotem as providências necessárias à correção das irregularidades detectadas. Por outro lado, quando se tratar de atos discricionários, praticados de forma motivada e visando satisfazer o interesse público, esta Corte de Contas pode unicamente recomendar a adoção de providências consideradas por ela mais adequadas. Afinal, nessa última hipótese, a lei conferiu ao administrador uma margem de liberdade, a qual não pode ser eliminada pelo Tribunal de Contas da União.

32. Contudo, caso o ato discricionário sob enfoque contenha vício de ilegalidade, esta Corte de Contas será competente para avaliá-lo e para determinar a adoção das providências necessárias ao respectivo saneamento, podendo, inclusive, determinar a anulação do ato em questão.33. Com espeque nesses argumentos, entendo que compete a este Tribunal recomendar a adoção das providências que se fizerem necessárias para tornar mais eficiente a atuação finalística e discricionária das agências reguladoras. De maneira semelhante a que se verifica nas auditorias operacionais, agora tão freqüentes nesta Corte, o produto final das auditorias realizadas nessas atividades deve ser um conjunto de propostas e recomendações, cuja implementação propiciará uma maior qualidade na prestação de serviços públicos. Porém, quando for detectado o descumprimento de uma norma jurídica, o TCU pode e deve determinar a adoção das medidas tendentes a ilidir essa irregularidade. e demonstra – o que é imperdoável no intérprete – falta de visão sistemática da Constituição.

A problemática em torno desse acórdão é justamente aquela levantada no texto de Eduardo Jordão acima apresentado. Será que, como sustenta o TCU, esse controle tem sido somente de “segunda ordem”? Para responder a esta pergunta, talvez valha a pena ler outro acórdão emblemático da Corte, em que foi discutida a possibilidade ou não da cobrança do THC2 (ou SSE) pelos Terminais Portuários. A competência para análise da questão seria da ANTAQ, mas o TCU apresentou determinações sobre o tema, justificadas em suposta inércia da Agência. Confira-se: 

Acórdão 1704/2018 – Plenário 

Rel. Min. Ana Arraes, j. 25.07.2018

Sumário: AUDITORIA OPERACIONAL. PRINCIPAIS GARGALOS PARA LIBERAÇÃO DE CARGA CONTEINERIZADA. PORTOS DA REGIÃO SUDESTE. COBRANÇA DO TERMINAL HANDLING CHARGE 2 (THC 2). AUSÊNCIA DE REGULAÇÃO DA ANTAQ PARA MINIMIZAR FALHAS DE MERCADO DECORRENTES DE CONCORRÊNCIAS IMPERFEITAS. AUDIÊNCIAS DE DIRETORES DA ANTAQ. REJEIÇÃO DE JUSTIFICATIVAS. MULTA. DETERMINAÇÃO.

Voto da Relatora: 

116. Deve-se destacar que este Tribunal não discute quais são as atividades e serviços de movimentação, segregação e armazenagem de contêineres ou a pertinência de conceitos definidos pela agencia reguladora sobre THC e box rate, por entender que faz parte do papel da agência defini-los ao fixar regras que devem ser observadas pelos agentes do mercado.

117. Se houvesse transparência e divulgação aos usuários da composição dos custos da THC e de todos os itens da Cesta de Serviços, incluída nessa regulamentação a descrição desses itens, a própria agência reguladora teria subsídio consistente para decidir quanto à ocorrência ou não de custos adicionais decorrentes de segregação e liberação de contêineres, bem como quanto a possíveis valores máximos admissíveis para a respectiva taxa de remuneração.

118. Referidas informações consistiriam em subsídios para decisões regulatórias consistentes e para que se evitasse situação de cobranças em duplicidade por serviços prestados, assim como para fixação de valores máximos para taxas de remuneração de serviço.

119. É desejável que autorregulação e regulação coexistam. Mas, ao se identificarem lacunas, a atuação regulatória da agencia é necessária para que se evitem abusos de poder econômico. No presente caso, a inércia da Antaq propiciou situações de mercado nas quais um dos agentes, que se encontra em posição singular, endereçou cobranças do preço que lhe convinha a outro agente que não tinha condições de negociação.

(…)

122. A então diretoria da Antaq optou por não regular o ponto conflituoso, eximindo-se, assim, de cumprir sua obrigação legal de minimizar falhas de mercado decorrentes de concorrência imperfeita e de impedir ocorrência de infrações da ordem econômica. Os ex-diretores suprimiram, sem justificativa, o único instrumento regulatório que limitaria a prática de preços abusivos pelos operadores portuários que cobrassem THC 2 dos recintos alfandegados independentes. A formulação do normativo foi pautada, nos âmbitos técnico e jurídico, pela adoção do mecanismo regulatório de teto tarifário. Contudo, a decisão dos diretores contrariou, no mérito, o posicionamento do órgão de defesa da concorrência, já conhecido à época.

123. Conforme pontuou o MPTCU, “o grau de reprovabilidade da conduta desses gestores eleva-se quando se considera que o ato praticado propiciou a permanência de um conflito já duradouro à época da edição da Resolução, o qual movimenta ainda hoje diversos órgãos estatais julgadores (Cade, TCU, Justiça Estadual, Justiça Federal e a própria Antaq) e provoca impactos negativos na cadeia logística do comércio exterior no Brasil”.124. Em decorrência de todo o exposto, cabe determinação à Antaq para que providencie a elaboração de composições de custo dos serviços prestados pelos terminais portuários relativos à movimentação, segregação, armazenagem, liberação e às demais atividades envolvidas nas operações de importação e exportação de carga conteinerizada. Cabe também determinação à SeinfraPortoFerrovia para monitorar se as questões suscitadas nestes autos foram contempladas e discutidas no âmbito de nova audiência pública para alteração da Resolução 2.389/2012, conforme publicação no Diário Oficial da União de 17/5/2018, e se as decisões tomadas na revisão da resolução foram fundamentadas em pareceres técnico-jurídicos orientados a minimizar falhas de mercado, representando a este Tribunal caso verifique irregularidade na atuação da Antaq.

Ainda dentro do tema do THC2/SSE, veja também este acórdão mais recente, em que a Corte de Contas determinou, expressamente, a anulação de ato normativo editado pela ANTAQ.       

Acórdão 1448/2022 – Plenário 

Rel. Min. Vital do Rêgo, j. 22.06.2022

Sumário: DENÚNCIAS. INDÍCIOS CONCERNENTES À ILEGALIDADE DE COBRANÇA POR SERVIÇO DE SEGREGAÇÃO E ENTREGA (SSE) DE MERCADORIA PELOS TERMINAIS PORTUÁRIOS. AUSÊNCIA DE ANÁLISE DE IMPACTO REGULATÓRIO (AIR) PREVIAMENTE A EDIÇÃO DE RESOLUÇÃO POR AGÊNCIA REGULADORA. INDÍCIOS DE IRREGULARIDADES NAS FASES PREPARATÓRIAS E PROCEDIMENTAIS DE AUDIÊNCIA PÚBLICA PRÉVIA AO RITO DE MODIFICAÇÃO DE NORMATIVO. NÃO ADOÇÃO DE MEDIDA CAUTELAR POR AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTOS. DETERMINAÇÃO PARA ANULAÇÃO DO ATO. CIÊNCIA.

Voto do Relator:

Como dito no início da análise, este Tribunal já concedeu à agência a oportunidade de revisar a regulamentação concernente à cobrança do serviço de segregação e entrega de contêiner (SSE ou THC 2), de modo a adequá-la ao arcabouço jurídico correspondente nos limites da atuação a ela endereçada por meio da Lei 10.233/2001 (subitens 9.1.1 e 9.1.2 do Acórdão 1704/2018-TCU-Plenário).

Ato contínuo, cabe a este TCU atuar nos termos definidos em sua jurisprudência mediante contornos de fiscalização de segunda ordem, tal qual explicitado no voto revisor do Acórdão 1756/2004-TCU-Plenário:

31. Finalmente, ressalto que, no exercício do controle externo das concessões de serviços públicos, o TCU se defronta com dois tipos de atos praticados pelas agências reguladoras: os vinculados e os discricionários. Quando os atos supostamente irregulares forem do primeiro tipo, ou seja, quando as entidades reguladoras tiverem violado expressa disposição legal, o Tribunal pode determinar a esses entes que adotem as providências necessárias à correção das irregularidades detectadas. Por outro lado, quando se tratar de atos discricionários, praticados de forma motivada e visando satisfazer o interesse público, esta Corte de Contas pode unicamente recomendar a adoção de providências consideradas por ela mais adequadas. Afinal, nessa última hipótese, a lei conferiu ao administrador uma margem de liberdade, a qual não pode ser eliminada pelo TCU.

32. Contudo, se o ato discricionário sob enfoque contiver vício de ilegalidade ou se tiver sido praticado por autoridade incompetente, se não tiver sido observada a forma devida, se o motivo determinante e declarado de sua prática não existir ou, ainda, se estiver configurado desvio de finalidade, esta Corte de Contas será competente para avaliá-lo e para determinar a adoção das providências necessárias ao respectivo saneamento, podendo, inclusive, determinar a anulação do ato em questão. Assim sendo, será sempre necessária uma análise caso a caso para determinar a existência de um desses vícios ensejadores da ação corretiva do TCU. (grifos acrescidos)

Para finalizar, ressalto que os elementos expostos nos presentes autos permitem concluir que não há respaldo legal para opção regulatória que instituiu a cobrança do THC2. Conforme demonstrado, embora não haja nenhuma relação contratual entre o terminal portuário e o recinto alfandegado, o primeiro consegue impor ao segundo o pagamento de um valor referente à THC2 de maneira cogente, sem que haja qualquer interesse público associado.

Diante do exposto, pelas razões já fundamentadas, proponho determinar à Antaq que anule todos os dispositivos da Resolução 72/2022 que dizem respeito à possibilidade de cobrança do serviço de segregação e entrega de contêiner (SSE) em face do desvio de finalidade consubstanciado na afronta ao que estabelece o art. 36, incisos I e IV da Lei 12.529/2011, art. 4º, inciso I, da Lei 13.847/2019, bem como o art. 20, inciso II, alínea “b” e art. 27, inciso IV, da Lei 10.233/2001.

Através da análise de acórdãos como esses destacados acima é possível verificar diversos aspectos relacionados ao controle que o TCU tem exercido sobre Agências Reguladoras. 

Por fim, confira o trabalho de pesquisa realizado por Floriano de Azevedo Marques Neto, Juliana Bonacorsi de Palma, Danilo Rehem, Nara Merlotto, e Yasser Gabriel, que resultou no artigo “Reputação institucional e o controle das Agências Reguladoras pelo TCU”.

O trabalho por eles desenvolvido mapeou o diálogo institucional entre oito Agências Reguladoras Federais (Anatel, Anac, Antaq, ANTT, Aneel, Anvisa, ANS e ANP) e o TCU. Verificaram que esse diálogo estaria marcado por três etapas: controle pelo TCU, reação das Agências e checagem da reação pelo TCU. A partir dos acórdãos analisados, foram pontuados os seguintes achados:

Reputação institucional e o controle das Agências Reguladoras pelo TCU

Por Floriano de Azevedo Marques Neto, Juliana Bonacorsi de Palma,
Danilo Rehem, Nara Merlotto e Yasser Gabriel
In Revista de Direito Administrativo, v. 278 (2019)

O presente artigo se volta à análise do controle das Agências Reguladoras pelo Tribunal de Contas da União em uma perspectiva empírica, considerando o diálogo travado entre essas instituições. Este é um diálogo marcado por três etapas – controle pelo TCU, reação da Agência e checagem desta reação pelo TCU –, cuja análise dos documentos produzidos nesse processo permitiu alcançar as seguintes constatações: (i) as recomendações do TCU têm caráter mandatório, pois o TCU tem a expectativa de que elas sejam observadas pelas Agências; (ii) é alto o grau de deferência das Agências Reguladoras às recomendações do TCU, ressalvada a Aneel; e (iii) não raro a unidade técnica do TCU rivaliza com a unidade técnica da Agência sobre decisões relacionadas com as atividades-fim das Agências, preferindo o colegiado pela orientação da unidade técnica. Aplicamos a teoria da reputação institucional para explicar o cenário da preferência da cúpula do TCU pela interpretação técnica de suas unidades técnicas. 

(…)

Por meio desta investigação pôde-se identificar os padrões de controle praticados pelo TCU ante as Agências Reguladoras federais brasileiras e, assim, posicionamo-nos sobre o problema de pesquisa. Constatamos que esse controle é amplo, abrangendo não apenas a estrutura organizacional das Agências Reguladoras, mas especialmente a atividade-fim por elas desempenhada. Nossa hipótese de pesquisa se confirmou: a autonomia e a independência das Agências Reguladoras são condicionadas pelo TCU na medida em que as determinações desta instituição de controle afetam a atividade-fim das Agências e são prontamente obedecidas pelas Agências, sem maiores enfrentamentos. Como exemplos de decisões de controle, mencionamos: decisões que impõem métodos de atuação regulatória, como a dosimetria de sanções regulatórias; decisões que definem o modo de diálogo com a sociedade, ao padronizar a formalização da publicidade de dados e atividades; decisões que afetam a estrutura organizacional das Agências, pela determinação de novas nomeações de dirigentes, por exemplo; e decisões de suspensão ou de invalidação de decisões regulatórias concretas. 

Este modo de controle está fundado na imagem reputacional que tem o TCU das instituições: imagem reputacional negativa para as Agências Reguladoras e imagem reputacional positiva da própria instituição do TCU. 

Em termos mais específicos, considerando a complexidade da dinâmica de controle das Agências Reguladoras pelo TCU, com forte atuação da unidade técnica, temos que os órgãos técnicos do TCU compostos por auditores são fortemente acreditados pelo Plenário. Mais importante que verificar o “discurso de confiança” dos ministros com relação às análises dos órgãos técnicos, preferimos analisar o regime jurídico que conforma o diálogo institucional entre Agências e TCU, bem como avaliar fontes de gestão pública primária, notadamente os Acórdãos proferidos pelo TCU. Evidenciamos que os órgãos técnicos do TCU, muitas vezes em cooperação com o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, gozam de maior prestígio junto ao Plenário do TCU que as Agências Reguladoras. 

Em termos de regime jurídico, notamos que o cargo de auditor é forte na instituição do TCU e guarda estreita sinergia com o Plenário. Aliás, a própria Constituição Federal prevê indicações de ministros que sejam auditores de carreira. No mais, elementos constatados na análise empírica dos julgados o TCU referentes às Agências Reguladoras demonstra que o depósito de confiança do Plenário sobre qual instituição tem maior capacidade institucional para indicar os caminhos da regulação e a governança regulatória mais eficiente é a unidade técnica do TCU, e não as Agências Reguladoras. Consequentemente, a competência legal originalmente conferida às Agências Reguladoras desloca-se para o TCU; se esta instituição não for a principal reguladora do Brasil, com respaldo empírico podemos afirmar que ela participa ativamente da regulação no Brasil, o que pode colocar em dúvidas a segurança jurídica e a estabilidade das regras do jogo regulatório. 

São os seguintes elementos que demonstram o depósito de confiança na unidade técnica do TCU em detrimento da Agência Reguladora: (i) o exercício do controle sobre a atividade-fim da Agência Reguladora não é fundamentado juridicamente, com a indicação do preceito normativo que autoriza o controle externo sobre a estruturação das Agências ou a regulação; (ii) o processo regulatório das Agências não é apreciado; (iii) as análises da unidade técnica são acatadas pelo Plenário, cuja motivação dos votos é, em geral, altamente discrepante da fundamentação exposta no relatório da unidade técnica; (iv) as recomendações elaboradas pela unidade técnica do TCU são chanceladas pelo Plenário e endereçadas às Agências Reguladoras com caráter de determinações; (v) o TCU não tem diferenciação categórica entre recomendações e determinações, o que, na prática, indica que as recomendações funcionam como efetivas determinações, com prazo e monitoramento ou acompanhamento posterior; (vi) há alta conta da participação da unidade técnica na regulação na medida em que a provocação dela, na visão do Plenário do TCU, desenvolve a regulação e a atuação das Agências Reguladoras; (vii) interpretações diferentes entre unidade técnica e Agências Reguladoras são resolvidas pelo Plenário em favor da unidade técnica, resultado em considerável número de casos, em declaração de ilegalidade na ação ou omissão das Agências Reguladoras; e (viii) as Agências Reguladoras são altamente deferentes às recomendações do TCU, com exceção da Aneel, sendo o diálogo institucional fraco. O depósito de confiança na unidade técnica pelo Plenário do TCU determina, como avaliamos, o deslocamento da competência regulatória das Agências Reguladoras para o próprio TCU. Trata-se de um tema de fundamental importância para se refletir sobre o desenvolvimento dos setores regulados e mesmo considerar o efetivo papel das Agências Reguladoras na economia. Ainda, é a oportunidade de avaliar a prática do controle sobre as Agências Reguladoras e seus impactos, positivos e negativos, sobre a regulação.

3. DEBATENDO

Após a análise do material indicado acima, propõe-se a realização do debate entre os alunos, através da mediação e orientação do professor, sobre temas relacionados ao exercício do controle do TCU sobre as Agências Reguladoras. Seguem algumas perguntas que podem ser úteis para balizar o debate:

1. O TCU é competente para controlar as Agências Reguladoras? 

2. O TCU deve ter a capacidade de auditar todas as atividades das Agências Reguladoras, ou deveria limitar-se às atividades-meio?

3. O controle exercido pelo TCU sobre as atividades-fim das Agências é legítimo? Quais são as implicações dessa prática?

4. Como a atuação do TCU pode influenciar a autonomia das Agências Reguladoras?

5. Quais seriam as consequências de um controle excessivo sobre as Agências Reguladoras em termos de eficiência e eficácia na regulação?

6. Quais seriam as possíveis soluções para reduzir o controle que o TCU tem exercido sobre as Agências? 

7. Como as Agências poderiam melhorar o seu diálogo com o TCU, se posicionando de forma mais ativa e sendo menos deferentes? 

4. APROFUNDANDO

Para saber mais, busque, além dos textos citados ao longo da aula, os seguintes livros e artigos:

ARAGÃO, Alexandre Santos de. (coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed.¸Rio de Janeiro: Renovar, 2014. 

BOOTH, W.C.; COLOMB, G.G.; WILLIAMS, J.M. A arte da pesquisa. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 

CABRAL, Flávio Garcia. O ativismo de contas do tribunal de contas da união (TCU). Revista de Direito Administrativo e Infra-estrutura, vol. 16, p. 215 – 257, jan./mar. 2021.

DUTRA, Pedro; REIS, Thiago. O soberano da regulação: o TCU e a infraestrutura. São Paulo: Editora Singular, 2020.

GOMES, Eduardo Granha Magalhões.. As agências reguladoras independentes e o Tribunal de Contas da União: conflito de jurisdições? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 40, n. 4, p. 615-630, 2006.

GONÇALVES NETO, Luiz Alonso. O controle da regulação – limites ao controle do Tribunal de Contas aos atos de Agências Reguladoras. Interesse Público, Belo Horizonte, v. 43, p. 199-235, 2007.

JORDÃO, Eduardo Ferreira. Quais os limites das competências do TCU sobre as agências reguladoras? Direito do Estado, n.476, 2021.

______. A intervenção do TCU sobre Editais de Licitação não publicados – controlador ou administrador? Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, v. 47, p. 209-230, 2014.

JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002. 

LOSS, Giovani R. Contribuições à Teoria da Regulação no Brasil: Fundamentos, Princípios e Limites do Poder Regulatório das Agências. IN: ARAGÃO, Alexandre Santos de. (coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 

MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. “Limites à Abrangência e à Intensidade da Regulação Estatal”, Revista de Direito Público da Economia n° 1, pp. 74-75, jan./mar. 2003.

MONTEIRO, Vera. ROSILHO, André. Agências Reguladoras e o controle da regulação pelo Tribunal de Contas da União. In: PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva; PINHEIRO, Luís Felipe. Direito da infraestrutura. São Paulo: Saraiva, 2017, v. 2. 

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Agências Reguladoras, diálogos institucionais e controle. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, v. 49, p. 159-189, 2015.

PEREIRA, Gustavo Leonardo Maia. O TCU e o controle das agências reguladoras de infraestrutura: controlador ou regulador? 2019. 194 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Escola de Direito de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, 2019.

PEREIRA NETO, Caio Mario da Silva; LANCIERI, Filippo; ADAMI, Mateus Piva. O diálogo institucional das Agências Reguladoras com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário: uma proposta de sistematização. In: SUNDFELD, Carlos Ari; ROSILHO, André (Org.). Direito da regulação e políticas públicas. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 140-185.

RODRIGUES, Walton Alencar. O controle da regulação no Brasil. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 7, n. 33, p. 345-358, 2005.