1. CONHECENDO O BÁSICO
O objeto desta aula é o processo administrativo de seleção de parceiros do Estado para a inovação. Nota-se, desde logo, que não se está falando, necessariamente, de licitação, expressão que remete a processo administrativo cercado de formalidades específicas e regido, de forma geral, pela Lei nº 14.133/2021. Incluem-se no objeto da aula, portanto, outras formas procedimentais voltadas a selecionar particulares para inovar na construção de soluções administrativas.
O art. 1º, inc. IV, da Lei nº 10.973/2007, chamada de “Lei de Inovação”, define inovação como a “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho”.
Essa definição chama a atenção para o caráter de novidade que deve possuir uma solução inovadora. Ela deve resultar em novos produtos, serviços ou processos. É dizer: a Administração não sabe, de antemão, o que, exatamente, será contratado. O desenvolvimento e a execução do projeto inovador é justamente o que o Estado quer contratar, e não há como precisar, no planejamento da contratação, a solução esperada.
Imagine-se, por exemplo, um órgão público de saúde que tenha interesse em desenvolver, em conjunto com um parceiro privado, uma vacina para uma doença nova, sem saber se isso será viável nem quais métodos científicos são os mais adequados para serem empregados. Ou um departamento de polícia que queira ver desenvolvida e executada uma solução de inteligência artificial que o permita alocar policiais pela cidade de forma dinâmica e eficiente, assegurando-se, com base em critérios estatísticos e computacionais, que os locais com maior risco de ocorrência de crimes sejam sempre os mais policiados. Ou ainda um órgão de controle externo que queira obter novas soluções para exercer, de forma mais eficaz, a difícil tarefa de fiscalizar obras públicas por todo o país, sem saber quais soluções tecnológicas poderão ser desenvolvidas e serão efetivas.[1]
A ausência de prévia definição da solução ao problema administrativo torna a seleção do parceiro privado que pesquisará e desenvolverá o objeto tarefa bastante diferente das licitações voltadas à contratação de objetos mais tradicionais.
Nesse sentido, a licitação regida pela Lei nº 14.133/2021 se inicia com uma etapa de planejamento do certame e da futura contratação – trata-se da fase preparatória, regulada entre os seus arts. 18 e 53. No transcurso dessa fase, a Administração deve realizar estudos e se planejar para, entre outras coisas, especificar e elaborar a “descrição da solução como um todo, inclusive das exigências relacionadas à manutenção e à assistência técnica, quando for o caso” (art. 18, §1º, inc. VII); deve, ainda, optar expressamente por uma solução dentre aquelas existentes no mercado (art. 18, inc. V), descrever o objeto com precisão (art. 18, inc. II), e efetivar uma boa estimativa dos valores que serão despendidos com o futuro contrato, que deverá ser composta por estimativas mais específicas dos preços unitários dos diversos itens que compõem o objeto (arts. 18, inc. IV e 23).
Inaugurada a fase externa da licitação, os requisitos de seleção da melhor proposta deverão ser altamente objetivos, sem espaço para avaliações casuísticas ou subjetivas sobre as características de cada solução oferecida pelos particulares interessados em contratar com o poder público. Firmado o contrato, o contratado deve executá-lo de forma fiel ao que consta do instrumento, incluindo as definições do termo de referência ou dos projetos básico e executivo, conforme o caso; não o fazendo, sujeita-se a sanções e rescisão por inadimplemento.
Como já é possível perceber, esses aspectos da licitação podem se revelar incompatíveis com a seleção de parceiros para pesquisar, desenvolver e executar soluções inovadoras. Ao contrário dos objetos que são rotineiramente licitados com fundamento na Lei n º 14.133/2021, não se pode predefinir a solução que se deseja contratar, já que o que a Administração deseja é, justamente, obter uma solução nova, que não poderia ser pensada nem planejada de antemão. O que se quer contratar é, justamente, a inovação.
Tampouco é possível especificar quais são os resultados esperados. Afinal, tratando-se do desenvolvimento de algo inteiramente novo, os resultados da atividade dos parceiros privados serão intrinsecamente incertos. Espera-se que uma nova tecnologia ou solução seja desenvolvida e que ela seja capaz de resolver um problema administrativo. Mas não há, em princípio, qualquer descumprimento do contrato caso esses objetivos não sejam alcançados. É igualmente difícil estimar quanto a Administração desembolsará na futura e eventual contratação – embora tetos possam ser fixados, não há como estimar preços, nem decompor essas estimativas em planilhas de custos unitários, caso não o objeto seja, por definição, algo inédito.
Ao lado dessas dificuldades, os resultados das contratações para inovação são cercados de incerteza. E, aqui, vale trazer uma distinção importante: enquanto o risco pode ser mensurado por meio de probabilidades de ocorrência de determinados resultados, ainda que de forma estimada, a incerteza diz respeito àqueles resultados cuja mensuração quantitativa é inviável.[2] Quando se contrata para a inovação, não é possível antecipar probabilidades de que determinados resultados sejam obtidos ou que certos impedimentos à solução do problema surjam. Está-se diante de incerteza, não de risco.
Assim, embora a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos estabeleça uma série de mecanismos voltados a lidar com o risco na licitação e no contrato que será celebrado – como a matriz de alocação de riscos entre a Administração e o contratado (art. 6º, inc. XXVII e art. 22) e a obrigação de que se realize, na fase preparatória, “análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual” (art. 18, inc. X) –, essas ferramentas podem ser insuficientes nas contratações para a inovação. Realmente, a Lei nº 14.133/2021 parte da lógica do risco, pressupondo que a fase de planejamento da contratação vai conter estudos capazes de mapeá-los, compreendê-los e alocá-los de forma eficiente à parte que melhor seja capaz de mitigá-los, absorvê-los ou lidar com as suas consequências. Contudo, quando há incerteza quanto às intercorrências que podem suceder durante a contratação, ou mesmo incerteza quanto ao próprio objeto que se quer contratar, a Lei nº 14.133/2021 não nos oferece as ferramentas necessárias.
Bem compreendida a aparente incompatibilidade entre as normas gerais de licitações e contratos administrativos e a contratação para a inovação, o leitor já pode intuir que as soluções legislativas para a contratação para a inovação devem ser diferentes. Mas o quão diferentes elas devem ser? Deveríamos afastar completamente as normas de licitações e contratos previstas na lei geral e instituir um procedimento novo? Ou seria mais prudente afastá-las apenas quando claramente incompatíveis, utilizando as normas da Lei nº 14.133/2021 subsidiariamente a um regime específico de contratação para a inovação?
Na verdade, também cabe um questionamento antecedente: se o que se quer contratar é completamente inovador, faz sentido estabelecer normas prévias que amarrem o processo seletivo? Ou é melhor relegar o procedimento seletivo para a decisão dos administradores em cada caso concreto, vinculando-os apenas aos princípios da Administração Pública de que trata o art. 37, caput, da Constituição? Caso adotada esta última solução, haveria algum risco à segurança jurídica ou mesmo à moralidade administrativa?
Todas essas questões perpassam o estudo da legislação aplicável aos processos públicos de seleção de parceiros privados para a inovação. Na seção seguinte, você verá algumas das soluções que foram dadas pela legislação brasileira para esses problemas (sem pretensão de exaurir as normas sobre o assunto), contextualizadas a partir de comentários da literatura especializada. Ao estudar essas normas e os trechos de artigos e livros sobre o assunto, busque refletir e avaliar sobre a capacidade de o direito conformar um procedimento capaz de balancear, de um lado, o controle público desses processos de seleção, com transparência, isonomia e impessoalidade e, de outro lado, a necessidade de permitir a flexibilidade necessária para encontrar soluções inovadoras. Antes, porém, de se debruçar sobre as soluções legislativas para o assunto, veremos alguns textos que explicam o que significa contratar para a inovação e quais os desafios jurídicos que essas contratações impõem. Vamos a eles.
[1] Este último exemplo se inspira no Edital nº 01/2024, publicado pelo Tribunal de Contas da União – TCU, para a celebração de Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI), com o objetivo de receber propostas inovadoras para viabilizar a fiscalização periódica de obras de calçamento e pavimentação. No caso, as “startups selecionadas apresentaram soluções tecnológicas e inovadoras que envolvem imagens de satélite de alta definição processadas por inteligência artificial; drones com sensores que permitem a construção de representações virtuais dos objetos inspecionados, os gêmeos digitais; e o crowdsourcing, método que usa a colaboração coletiva da sociedade para melhorar algum serviço.” (TCU, Contrato do TCU com startups permite fiscalização inovadora em obras de pavimentação. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/contrato-do-tcu-com-startups-permite-fiscalizacao-inovadora-em-obras-de-pavimentacao.htm. Acesso em 28.10.2024).
[2] KNIGHT, Frank. Risk, uncertainty and profit. Londres: Houghton Mifflin, 1921.
2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
Para avaliarmos os desafios que a Administração Pública enfrenta para contratar para a inovação, devemos, primeiro, compreender o que um contrato voltado à inovação tem de diferente em relação aos contratos em geral. Para isso, selecionou-se o trecho a seguir, extraído de um artigo denominado “Contracting for innovation: vertical disintegration and interfirm collaboration”, publicado na Columbia Law Review. Ele foi escrito por três autores norteamericanos, professores da Universidade de Columbia, que são referências em seus campos de estudo: Ronald Gilson é especialista em teoria da firma e em contratos empresariais; Robert Scott é conhecido por seus trabalhos sobre teoria geral dos contratos; e Charles Sabel é renomado por seus estudos sobre inovação pública, experimentalismo e desenvolvimento. Como essas diferentes qualificações indicam, o tema da inovação nos contratos é interdisciplinar.
O trecho indica, do ponto de vista teórico, alguns elementos distintivos que os contratos cooperativos para inovação possuem. Ele mostra que os mecanismos tradicionais, da teoria contratual, criados para lidar com os riscos e a incompletude dos contratos são insuficientes. Ao lê-lo, procure refletir se esses mesmos problemas se aplicam aos contratos firmados pela Administração Pública e quais são as formas pelas quais seria possível enfrentar essas dificuldades.
‘Contracting for innovation: vertical disintegration and interfirm collaboration’
Por Ronald Gilson, Robert Scott e Charles Sabel
Columbia Law Review, v. 109, pp. 431-502, 2009
(…)
None of the familiar mechanisms for coping with the problem of contractual incompleteness adequately responds to the challenge posed by structuring transactions in the face of continuous uncertainty. Nevertheless, while theory and conventional legal practice have lagged behind the conditions in the marketplace, transactional lawyers in a number of industries, apparently responding to their clients’ need to structure new relationships in light of the constraints that uncertainty imposed, have begun creating the novel contracting patterns whose characteristics we now address.
A. Elements of Contractual Governance Under Continuous Uncertainty
The location of the innovative activity distinguishes the contracts of interest to us from more traditional relational contracting. In the new arrangements, innovation is the product of a joint effort by two or more organizations; it is metaphorically situated between them and is dependente on both. The development of the Boeing 787 aircraft is a good example. Innovation in the design and manufacture of the wing, the province of one supplier (or group of suppliers), is dependent on the design and manufacture of the fuselage, the province of a different supplier (or group of suppliers), and vice versa.51 Innovation in one structure must mesh with innovation in the other in order for either to be successful. The design of the wing must not only be compatible with the design of the fuselage on all relevant dimensions; the two must physically fit together. Innovation is thus a collaborative and iterative process rather than a discrete product supplied by a party upstream in the supply chain according to specifications set by a downstream customer.52
Precisely how have parties to these new collaborative relationships structured their contracts? We set out to answer this question in two stages. We began our research for this Article with a small group of twelve contracts, each of which committed the parties to a collaborative process of design and production. From that initial group we selected three exemplars, described in detail in Part III, that reflect distinct patterns of collaborative production and supply. The Deere–Stanadyne contract addresses collaboration but without any product/sale obligation;53 the Apple–SCI contract couples collaboration with production for a fixed period, while contemplating joint efforts for a longer term to which, however, neither party was obligated;54 and the Warner-Lambert–Ligand contract covers the collaborative search for a product and the noncollaborative commercialization of it.55
As the foregoing suggests, the transactions governed by these contracts share a number of characteristics. First, the primary output is na innovative “product,”56 one whose characteristics, costs, and manufacture, because of uncertainty, cannot be specified ex ante. Second, neither party alone has the capacity to specify and develop the product’s characteristics, costs, and methods of manufacture; hence, there must be collaboration among companies with different capabilities. Third, the process of specification and development will be iterative: Individual design elements will depend on the recurrent input from those working upstream or downstream and from those working on other design elements. Thus, central to these transactions are communication and cooperation across the two (or more) firms—the design, specification, and determination of manufacturing characteristics will be the result of repeated interactive collaborative efforts by employees of separate firms with distinct capabilities.
These commonalities highlight the conceptual questions that any explanatory theory must resolve. How do the parties deal with the problems of opportunism and the risk of hold-up that seem endemic in such interactive collaborative relationships? In particular, how do the parties constrain the temptation to exploit for private purposes information that is developed collaboratively? And how do the parties divide the eventual gains from the collaborative relationship when uncertainty precludes specifying the division ex ante and specific investment makes ex post allocation subject to hold-up? Is this temptation to use jointly produced information opportunistically and to hold up the counterparty when dividing gains adequately deterred by the elaborate set of formal and informal governance mechanisms that are a defining characteristic of these collaborative contracts?
B. The Technology of Contracts: The Problem of Incompleteness57
To begin to answer these questions, recall first the principal reasons that transacting parties seek to write explicit contracts and the limits to such efforts. Explicit contracts can protect, and thereby encourage, specific cific investments,58 which are often critical to transactions that contemplate more than a single simultaneous exchange. Yet contractual terms that encourage both parties to make efficient ex ante investments in the subject matter of the contract may undermine the ex post efficiency of the transaction if completion is compelled whenever one party still benefits, even when circumstances have so changed that the result is a net loss for the parties jointly.59 Thus, the goal of efficient specific investment ex ante and of efficient ex post trade will often be at loggerheads when parties contract under uncertainty. The commitment necessary to motivate specific investments that maximize the contractual surplus will typically conflict with the flexibility needed to halt transactions (even when one party will still benefit) that have insufficient net value when uncertainty is resolved.
To see why, consider a benchmark solution to the dual objective of ex ante and ex post efficiency: a complete, legally enforceable, state-contingent contract. Such a contract specifies ex ante the parties’ obligations in each possible ex post state of the world and is enforceable according to its terms, thereby assuring that performance occurs when, but only when, it is efficient. But while complete state-contingent contracts theoretically can address the tension between efficient ex ante investment and eficiente ex post performance, the transaction costs of contracting frustrate this outcome. Of particular importance are the information barriers that prevent parties from controlling moral hazard when the future states of the world depend on their own actions. As a result, when the level of uncertainty is high, contracts will be incomplete because it simply costs too much (or may be impossible) for contracting parties to foresee and then describe appropriately the contractual outcomes for all (or even most) of the possible future states of the world that might materialize.60
The information costs of contracting are incurred in two stages. Ex ante contracting costs are those of anticipating contingencies that may affect efficient performance and therefore efficient investment, and of writing a contract that specifies an outcome for each. Ex post enforcement costs are those of observing and proving any fact relevant to determining the actual state of the world (given that the parties have an incentive to misrepresent reality). It is costly to specify what should happen in different future states, and it is costly to prove what actually did happen. Both ex ante and ex post contracting costs prevent parties from writing complete state-contingent contracts.
Facing uncertainty and information costs, how should parties formalize their contracts? One option is to write an intentionally incomplete contract with precise, unchanging terms—i.e., determinate outcomes that apply across the board regardless of the eventual state of the world. For example, Buyer might contract with Seller at a fixed price for the manufacture of a precisely specified, customized machine, where Seller promises to deliver and Buyer promises to pay even if subsequent events increase Seller’s costs or reduce Buyer’s value. Such “hard” terms bind the parties to their respective commitments, which motivates each party as promisee to undertake relation-specific investments and encourages each party as promisor to take cost-effective steps to reduce anticipated risk-bearing costs.
But, because the hard terms of such an intentionally incomplete contract do not change based on what actually happens, they may be ineficiente ex post, when the passage of time replaces uncertainty with fact. As suggested above, the actual cost to Seller of manufacturing the customized machine precisely as specified in the contract may exceed its value to Buyer.61 Both parties would prefer to design their contract ex ante so as to avoid the possibility of inefficient production ex post.
In theory, one solution to the inflexibility of hard terms is for the parties to renegotiate the contract once uncertainties are resolved. But if parties have made specific investments in the contract, later renegotiation raises the risk of a hold-up. Increased risk of hold-up, in turn, undermines the incentive to make those investments in the first place.62
Alternatively, if information costs are high because neither the likelihood nor character of ex post change can be anticipated, the parties may emphasize ex post rather than ex ante efficiency in seeking to balance the two. In that case, they could draft a formal contract with vague standards, i.e., “soft” terms that invite subsequent adjustment to reflect what actually happened. Thus, for example, Seller might agree to adjust in good faith the specifications for the customized machine if the cost of providing the machine as originally specified later proved greater than its value to Buyer. By agreeing to “good faith adjustment,” the parties seek to ensure that their contract is efficient both ex ante (by constraining ex post holdup) and ex post (by providing for a mechanism that assures that the machine is produced if and only if it is efficient to do so).
But a contract that uses soft terms to address both ex ante uncertainty and the risk of ex post hold-up raises a moral hazard problem of its own through the actual operation of the soft terms. Here, moral hazard results from a promisor with the discretion to adjust performance as conditions change always choosing the best alternative for himself Rather than the “good faith” adjustment required by the soft terms, even though the self-interested choice is unlikely to be best for the promisee or to maximize the parties’ joint welfare.63 Nor can the moral hazard problem necessarily be solved by delegating authority to determine the proper adjustment to a court. Soft terms such as “good-faith adjustment” remain as intractably ambiguous to judges as to the parties themselves, especially since the latter can act in bad faith in establishing the facts and in persuading the former what “good faith” should entail. Given, therefore, that a judge or other third party verifying contract performance under a broad standard of “good-faith adjustment” may mistakenly permit the promisor to substitute a lower-cost proxy for the agreed performance (say, by tendering an inferior machine), the promisor will be tempted to do so, even when this reduces joint welfare.
In short, neither hard nor soft contract terms can, standing alone, solve the problem of incomplete contracts. Under conditions of uncertainty, therefore, parties predictably seek to optimize total contracting costs by trading off the respective benefits and costs of commitment and flexibility. They can do this by shifting costs between the front and back end—the two stages—of the contracting process. As the preceding discussion illustrates, a core feature of contract design is the allocation of resources between drafting and enforcement. When the parties agree, for instance, to use their best efforts or to behave in a commercially reasonable manner, the subsequent adjudication of contractual disputes concerning their efforts or behavior requires a court to give precise meaning to those vague phrases. Thus, by using soft terms, parties delegate the specification of performance requirements to a court at the back end of the contracting process. The parties must bear the expected costs of litigation (including the costs of moral hazard in their conduct). But because a court has the benefit of some information unavailable to the parties at the time of formation, adjudication potentially allows them to benefit from more efficient performance standards than they could have specified ex ante. Alternatively, when the parties agree to precise (hard) terms, such as the obligation to supply a precisely specified, customized machine at a fixed price, they withdraw authority from courts to determine their particular performance obligations and instead direct enforcement of the obligations specified in advance. As noted above, this strategy requires the parties to fix performance obligations that rely on mere estimates of the likelihood of various future events rather than the actual occurrence of those events that is available to a court at a later date. The parties thus trade off the benefits of ex ante precision (with resulting ex post inefficiency) against the hindsight advantage of the court in later litigation tempered by the moral hazard costs inherent in the process.
C. Contracting Under Continuous Uncertainty: The Limits of Contract Theory
The preceding discussion highlights the problem that contracting for collaborative innovation must confront. As discussed in Part II.A, the transactional structure must provide mechanisms for the sharing of information between the parties. In particular, the parties need credible information about each other’s technical capacity, ability to manage a collaborative effort, capability for cooperative interaction, and especially each party’s capacity to deal productively with disagreements that necessarily will arise when the characteristics of the desired innovation cannot be specified in advance. Moreover, this sharing of information is a continuous, collaborative process, one that requires asymmetric Investments by each party as the collaboration proceeds along the critical path. Under these conditions, the contract design problem is particularly acute, because the collaborative process generates continuous uncertainty. As we have just seen, uncertainty creates problems for contract design, forcing parties to balance ex ante and ex post efficiencies. But, under conditions of continuous uncertainty, the problem is even more significant. When uncertainty is continuous, the parties cannot simply agree on the optimal trade off between ex ante and ex post informational advantages. There is no ex post period in which hindsight can be used to optimize a contractual relationship; the parties are continually cycling between different combinations of ex ante and ex post states. The crucial question thus becomes whether one’s counterparty acts opportunistically— that is, takes advantage of the collaborative process to capture a larger share of the jointly created surplus (say, by using jointly produced information for its private benefit).64 And the key challenge for transactional design is correspondingly to support the cooperative effort by constraining the strategic behavior made possible by ex ante specific investments in the collaborative project.
As discussed above, renegotiation of the contract ex post can, in theory, assure both ex ante and ex post efficiency in the face of uncertainty. Once the uncertainty is resolved, parties can in effect write a new contract specifying the decision the party in control should take—whether to per form, alter the terms of performance, abandon the transaction, or make a side payment. This renegotiation can achieve ex post efficiency through Coasian bargaining: If a contract remains profitable to the promisor and yet is inefficient, the promisee will “bribe” the promisor not to perform.
As we have seen, however, renegotiation addresses only half the problem. It creates the flexibility to achieve ex post efficiency. But the prospect of renegotiation itself creates the possibility of hold-ups, which in turn undermines ex ante efficient investment. Contract and property rights theorists have proposed solutions to the hold-up problem that rely on regulating renegotiation to constrain the eventual sharing of the surplus. For example, property rights theorists propose favoring the “efficient” owner, the one whose human capital is most complementary to the physical assets deployed in the project and whose propensity to invest in those assets is therefore most sensitive to the assurance of continuing control of them. Contract theorists, in turn, have proposed several alternative mechanisms to increase one party’s bargaining power in the future negotiations, for example, by allocating to that party the rights to control key decisions or property rights in assets specific to the exchange.65 From these perspectives, a contract sets the field for future renegotiation of the terms of exchange after uncertainty has been resolved.
But efforts to constrain hold-ups by ex ante assignment of ex post decision rights fail for the contracts that concern us here. If there is no clear separation between the ex ante contract that supports transaction-specific investment and the resolution of uncertainty ex post, the identity of the party to whom decision or property rights should be allocated will continually shift, if it can be detected at all. Assignment of decision rights to this ephemeral owner will thus be meaningless. The discussion in Part I described a new pattern of collaborative innovation in the supply chain, one characterized by multiple information flows, iterative design, and mutual adaptation, all between separate firms. This network production responds to a technological and commercial environment where change is constant, adaptation must take place quickly and continuously, and the technology necessary to produce a cutting-edge product is not found in a single firm. The parties are not contracting over a temporary state whose resolution can be anticipated with enough precision to choose the efficient structure of post-resolution negotiation.66 Rather, they are contracting over the creation of something whose features—and the complementarities between those features and their own (changing) interests—emerge only through many iterations between them. When it is unclear at the time of the formation how large the contractual investments should be, and which party should make them and how gains should be shared, it is plainly impossible to mitigate the risk of ex post strategic behavior by regulating renegotiation in the familiar ways.67
In response to these limitations, George Baker, Robert Gibbons, and Kevin Murphy have developed a model that realistically assumes that decision rights often are not contractible ex post, so that neither renegotiation to the efficient outcome nor the allocation of decision rights through options is possible. In this environment, the formal contract dictates a governance structure that motivates self-enforcing informal adjustments.68 The optimal governance structure is achieved in this model by the ex ante contractual allocation—often in the form of an option—of ex post decision rights to the party who, because of informal constraints, has the least incentive to behave opportunistically. As one of us put it some time ago, “the goal is to shift the discretion to the party whose misuse of it can be most easily constrained,”69 rather than to specify the appropriate adjustment. For example, in venture capital contracting, the decision whether to continue a project is shifted to the venture capitalist through staged financing because his decision, unlike that of the entrepreneur, is policed by an effective reputation market.70
But while ex ante assignment of ex post decision rights via an option can address the governance problem where the option holder is constrained by informal mechanisms (as well as by contractually determined “prices”), an option approach has important limits. When the parties must adapt continuously, uncertainty about which party’s opportunism needs to be constrained, and a consequent inability to predict the decisions that actually will have to be made, imply that options are not a feasible technique for assuring efficient adaptation.71 This setting, which describes the transactional environment in many of the new collaborative arrangements, requires instead a formal governance mechanism that stimulates the development of stable cooperative equilibria to support informal, relational contracting. (…)
A partir dessa contextualização sobre alguns dos problemas de fundo envolvidos na contratação para inovação, partimos ao exame específico do caso da Administração Pública. Algumas normas ilustram algumas das soluções legislativas adotadas no Brasil. O primeiro dispositivo que você lerá é o art. 20 da Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004 (“Lei de Inovação”), que regulamenta os contratos com a Administração Pública que recebem o nome de contratos de encomenda tecnológica.
Lei nº 10.973, de 2 de dezembro 2004
Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências.
“Art. 20. Os órgãos e entidades da administração pública, em matéria de interesse público, poderão contratar diretamente ICT, entidades de direito privado sem fins lucrativos ou empresas, isoladamente ou em consórcios, voltadas para atividades de pesquisa e de reconhecida capacitação tecnológica no setor, visando à realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador. (Redação pela Lei nº 13.243, de 2016)
§ 1º Considerar-se-á desenvolvida na vigência do contrato a que se refere o caput deste artigo a criação intelectual pertinente ao seu objeto cuja proteção seja requerida pela empresa contratada até 2 (dois) anos após o seu término.
§ 2º Findo o contrato sem alcance integral ou com alcance parcial do resultado almejado, o órgão ou entidade contratante, a seu exclusivo critério, poderá, mediante auditoria técnica e financeira, prorrogar seu prazo de duração ou elaborar relatório final dando-o por encerrado.
§ 3º O pagamento decorrente da contratação prevista no caput será efetuado proporcionalmente aos trabalhos executados no projeto, consoante o cronograma físico-financeiro aprovado, com a possibilidade de adoção de remunerações adicionais associadas ao alcance de metas de desempenho no projeto. (Redação pela Lei nº 13.243, de 2016)
§ 4º O fornecimento, em escala ou não, do produto ou processo inovador resultante das atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação encomendadas na forma do caput poderá ser contratado mediante dispensa de licitação, inclusive com o próprio desenvolvedor da encomenda, observado o disposto em regulamento específico. (Incluído pela Lei nº 13.243, de 2016)
§ 5º Para os fins do caput e do § 4º, a administração pública poderá, mediante justificativa expressa, contratar concomitantemente mais de uma ICT, entidade de direito privado sem fins lucrativos ou empresa com o objetivo de: (Incluído pela Lei nº 13.243, de 2016)
I – desenvolver alternativas para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto ou processo inovador; ou (Incluído pela Lei nº 13.243, de 2016)
II – executar partes de um mesmo objeto. (Incluído pela Lei nº 13.243, de 2016)
§ 6º Observadas as diretrizes previstas em regulamento específico, os órgãos e as entidades da administração pública federal competentes para regulação, revisão, aprovação, autorização ou licenciamento atribuído ao poder público, inclusive para fins de vigilância sanitária, preservação ambiental, importação de bens e segurança, estabelecerão normas e procedimentos especiais, simplificados e prioritários que facilitem: (Incluído pela Lei nº 13.322, de 2016)
I – a realização das atividades de pesquisa, desenvolvimento ou inovação encomendadas na forma do caput ; (Incluído pela Lei nº 13.322, de 2016)
II – a obtenção dos produtos para pesquisa e desenvolvimento necessários à realização das atividades descritas no inciso I deste parágrafo; e (Incluído pela Lei nº 13.322, de 2016) III – a fabricação, a produção e a contratação de produto, serviço ou processo inovador resultante das atividades descritas no inciso I deste parágrafo. (Incluído pela Lei nº 13.322, de 2016)”
Verifica-se que se optou pela contratação direta, sem licitação, para a encomenda tecnológica, não havendo qualquer outra disposição a respeito das normas aplicáveis a essa seleção. O trecho abaixo comenta esse dispositivo, comparando-o com a solução dada pela legislação da União Europeia para enfrentar o mesmo problema. O trecho citado menciona a Lei nº 8.666/1993, hoje revogada, mas as alterações promovidas pela Lei nº 14.133/2021, nos pontos citados, não foram tão substanciais a ponto de tornar a leitura desatualizada.
Parceria para a Inovação na União Europeia e a Lei Federal de Inovação Brasileira
Por Caio Márcio Melo Barbosa
Revista Publicações da Escola da AGU, n. 1, 2015
4 VANTAGENS DO MODELO EUROPEU DE PARCERIA PARA A INOVAÇÃO SOBRE AS ENCOMENDAS TECNOLÓGICAS DO BRASIL
A vantagem mais evidente do modelo adotado pela Diretiva 2014/24/ UE é que a parceria para a inovação não é uma contratação direta e, por isso, prestigia o princípio da competitividade, favorecendo, por meio da fase de negociação concorrencial, que o Estado possa dialogar com vários fornecedores privados no propósito de obter resultado mais efetivo a partir da comparação de diferentes soluções.
Considerando que as modalidades licitatórias atualmente previstas no ordenamento brasileiro não preveem uma fase de negociação e desestimulam fortemente os critérios de qualidade – sob o pretenso temor de que qualquer flexibilidade outorgada ao gestor aumenta o risco de corrupção e de quebra da isonomia –, nosso sistema jurídico acaba escorregando num paradoxo: o legislador prefere inserir inúmeras situações de dispensa na Lei nº 8.666, de 1993, a permitir que as licitações tenham uma fase de negociação e adotem critérios de adjudicação que vão além do preço.
Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA 9 mostra que existe um excesso de situações na Lei nº 8.666, de 1993, que permitem ao gestor efetuar uma contratação direta por dispensa e inexigibilidade. Do total de contratações feitas no Brasil, 34,36% se utilizam de alguma modalidade direta contra apenas 14% da UE. Dentre as causas de tanta contratação direta no Brasil, pode-se mencionar:
(a) a dificuldade de se realizar licitações que atendam a propósitos específicos da Administração Pública, sobretudo ante o fato notório de que a Lei nº 8.666, de 1993, foi concebida sob a lógica das empreitadas de obras, tornando extremamente complexo e moroso qualquer tipo de contratação. Essa dificuldade foi atenuada com a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, que, todavia, só se aplica a bens e serviços comuns, não alcançando contratos complexos nem soluções inovadoras;
(b) as modalidades de licitação existentes não preveem qualquer fase de negociação que constitua etapa do processo de escolha da proposta vencedora do certame, o que contribui para a maléfica perpetuação da assimetria de informações entre os setores público e privado, fazendo com as aquisições do Estado nem sempre resultem na solução da necessidade estatal; e
(c) ainda que a Lei nº 8.666, de 1993, estabeleça tipos de licitação fundados na melhor técnica e na técnica e preço, a verdade inconteste hoje é que o gestor que se aventura na realização de uma licitação que não seja na modalidade pregão eletrônico se arrisca a ter o certame anulado, sofrer multa punitiva dos tribunais de contas e responder ao Ministério Público por ato de improbidade. Por conseguinte, o gestor se sente desestimulado a adotar critérios de adjudicação além do menor preço, prejudicando, com isso, a qualidade do produto contratado.
Na tentativa de contornar esses problemas, os legisladores acabaram produzindo efeito inverso: foram criadas diversas hipóteses de dispensa de licitação, tornando a atuação do gestor muito mais flexível do que o necessário e, ainda, dando um sinal claro para o mercado em desfavor da concorrência. Ao invés de procedimentos de licitação com negociação transparente com diversos fornecedores, as hipóteses de dispensa fazem com que o gestor escolha arbitrariamente e negocie diretamente com um fornecedor privilegiado, sem que nada do que foi negociado fique documentado nos autos processuais. Um traço típico do capitalismo de compadrio ou de laços.
O regime legal adotado no Brasil para as encomendas tecnológicas tem outro inconveniente. É que a mera dispensa da licitação não evita que a celebração do contrato de encomenda esbarre nos demais dispositivos da Lei nº 8.666, de 1993, que sejam contrários à natureza dos contratos de P&D, ou melhor, que não levam em conta as especificidades do mundo da inovação. Cito dois exemplos de ordem prática.
A um, a Lei de Inovação foi omissa a respeito do cálculo do valor estimado da contratação. Como a encomenda tecnológica tem por objeto soluções não disponíveis no mercado, torna-se impossível realizar pesquisa de mercado que atenda aos parâmetros contidos no art. 2º da Instrução Normativa nº 5, de 27 de junho de 2014, da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento. Tais parâmetros são insuficientes – ou melhor, imprestáveis – quando se está diante de encomendas tecnológicas.
Talvez uma maneira de resolver esse impasse seja a lei prever que o ente estatal proceda à verificação, ainda na fase interna da contratação, do valor máximo que lhe é possível dispor para a realização da encomenda, em vista da impossibilidade de se realizar uma orçamentação prévia visando ao estabelecimento da média de preços, que é aqui substituída pela limitação do montante a pagar. Já na fase externa, a negociação com diversos fornecedores abarcaria – assim como se dá nas parcerias para a inovação – as questões financeiras do contrato, como o preço e garantias.
A legislação poderia, ainda, estabelecer que o pagamento fosse feito por preço fixo, com reembolso de custos ou com prêmio de incentivo, de forma similar ao que é feito pelo Regulamento de Aquisições Federais dos Estados Unidos (Federal Acquisition Regulation – FAR, part 16). A definição do modelo remuneratório deve levar em conta, entre outros fatores, o risco tecnológico envolvido e a incerteza de resultados. Quando o nível de incerteza é elevado, o contrato a preço fixo – adotado pela legislação brasileira – causa efeito inibidor, pois o custo da nova tecnologia pode superar bastante o preço previamente orçado. 10
A propósito, Denis Borges Barbosa 11 bem aponta que o §3º do art. 20 da Lei de Inovação é um desastre, na medida em que preconiza que o pagamento será efetuado proporcionalmente ao resultado obtido, convertendo aparentemente o contrato em uma obrigação de resultado e impondo ao contratado o risco tecnológico, o que certamente afugentaria a participação de qualquer empresa sensata.
Em face disso, propõe-se que tal dispositivo seja interpretado no sentido de que como “resultado obtido nas atividades de pesquisa e desenvolvimento pactuadas” se entenda o atendimento do projeto específico a que se refere o §1º do art. 21 do Decreto nº 5.563, de 2005.
A dois, tem-se o fato de que a Lei de Inovação não previu por expresso a possibilidade de o ente estatal contratar simultaneamente com duas ou mais pessoas jurídicas o desenvolvimento da solução. Apenas deixou aberta a participação de consórcios de empresas, o que não é a mesma coisa. O consórcio já está previsto nas normas brasileiras. A novidade – que não veio – consistiria, justamente, na possibilidade de duas ou mais empresas poderem ser contratadas para a realização do mesmo objeto de forma concorrente e simultânea. Portanto, seria preferível que, ao invés de tratar a encomenda tecnológica como mais uma hipótese de dispensa de licitação, o legislador nacional viesse, na verdade, a disciplinar uma nova modalidade licitatória, similar ao procedimento específico das parcerias para a inovação previsto no art. 31 da Diretiva 2014/24/UE, que fosse aplicável para o contrato de encomenda e que disciplinasse todo o processo de licitação, contratação, execução e pagamento.”
Ainda sobre esse assunto, vale destacar que a previsão do contrato de encomenda tecnológica como hipótese expressa de contratação direta só ocorreu com o advento da Lei nº 13.243, de 2016, que alterou o caput do art. 20 da Lei de Inovação para trazer essa previsão. Antes disso, a literatura especializada discutia soluções possíveis. Nesse contexto, vale a leitura do curto trecho abaixo, de autoria de Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pinto de Campos, que, antes da alteração legislativa de 2016, conjecturavam qual seria a melhor forma de seleção para a celebração desse tipo de contrato:
Incentivo à inovação tecnológica nas contratações governamentais: um panorama realista quanto à segurança jurídica
Por Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pinto de Campos
FCGP, ano 5, n. 60, 2006
“Diante das dificuldades levantadas para a implementação de uma alteração de tal monta na lei geral de licitações, uma solução possível seria, à moda do já sugerido no tópico anterior deste estudo, a instituição de novas hipóteses de dispensa de licitação, que contivessem, de maneira pormenorizada, as características dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico capazes de permitir a contratação direta com a Administração Pública. Ao adotar essa saída, o Estado brasileiro estaria sinalizando claramente sua intenção de empreender uma política governamental de apoio às empresas que investem em P & D, na medida em que as mesmas estariam autorizadas a celebrar contratos com o Poder Público sem necessidade de submissão a um procedimento licitatório.
Conforme já referido no tópico anterior, contudo, não se mostraria suficiente a mera criação de novas hipóteses de dispensa de licitação. Caso se fizesse apenas isso, o administrador público teria ampla discricionariedade para escolher a empresa a ser contratada, dentre as várias que poderiam igualmente fazer jus à contratação. Necessário, então, criar métodos inovadores de determinação do contratado, como, por exemplo, a “seleção pública de propostas”, já sugerida neste estudo. Ao agir dessa forma, a Administração estaria realizando uma interessante mudança de paradigma nos seus procedimentos de contratação, fazendo com que o enquadramento de determinada situação como hipótese de dispensa de licitação não mais significasse uma porta aberta para a celebração de contratos com qualquer empresa que simplesmente preenchesse os requisitos legais. A dispensa, nesse novo contexto, passaria a ser o ponto de partida para a seleção, dentre todos os interessados legalmente habilitados, daquele que mais se prestasse a atingir o interesse público objetivado pela contratação em causa.”
Lembremo-nos que essa diferenciação trazida pelo regramento deve ser observada no âmbito federal, nos casos dos estados e municípios e na ausência de legislação específica local, o que prevalece é o conteúdo do ajuste, a despeito das diversas nomenclaturas utilizadas. Confira o que Rafael Costa ensina sobre o assunto:
Nomenclatura: convênio e congêneres
Por Rafael Costa
Convênios Administrativos, 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 81/82
Conforme o art. 116 da Lei nº 8.666/93 e o art. 184 da Lei nº14.133/21, com exceção de distinções previstas em nível regulamentar outorga-se o mesmo tratamento jurídico aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração. A lei não diferencia o que seria um convênio ou termo de cooperação, nem concede tratamento distinto para nenhuma das variações linguísticas retromencionadas.
(…)
O Decreto Federal nº 6.170/07 delimita diferentes categorias de ajustes, classificando essas variedades de ajustes pelo conteúdo do acordo a ser feito, elencando as regras especiais para cada um dos respectivos acordos de cooperação regulamentados. No âmbito federal, o ajuste que envolve repasse de recursos financeiros deveria ser chamado de “convênio”. Já o ajuste que envolve obras e serviços de engenharia, por meio de instituição financeira pública federal se denomina “contrato de repasse”. Noutra via, o “termo de execução descentralizada” se refere a instrumento que formaliza a descentralização de crédito entre órgãos e/ou entidades integrantes dos orçamentos fiscal e da seguridade social da União. Contudo, deve-se ressaltar que, via norma infralegal, não podem ser dispensados requisitos previstos em lei para firmação dos convênios, apesar da discriminação dessas subcategorias. O que os decretos regulamentares fazem, em regra, não é exatamente a criação de novas figuras jurídicas, com a inovação de requisitos dessemelhantes para a formalização de cada uma dessas categorias. O papel do regulamento, nesses casos, é compilar as exigências (até então espalhadas em leis esparsas) para situações específicas, com o objetivo de viabilizar o firmamento dos convênios e de facilitar o manuseio dessas exigências especiais, direcionar o usuário para nomenclaturas que classificam esses ajustes em subcategorias, destacando as peculiaridades relacionadas à exigência legal, para hipóteses específicas de parceria.
(…)
As nomenclaturas previstas no respectivo decreto só são cogentes no âmbito federal. No âmbito dos estados e municípios, é necessário observar as legislações regionais ou locais, e, caso não existam, juridicamente torna-se sem efeitos jurídicos qualquer diferenciação da terminologia concedida a esses ajustes, devendo o seu o regime jurídico ser analisado pelo conteúdo, independentemente da nomenclatura estampada no documento que o formaliza. Sintetizando, é adequada a utilização de convênio quando entes públicos, ou entes públicos e privados, estabelecem esforços para atingir objetivo comum, independentemente da nomenclatura concedida ao instrumento que formaliza o acordo cooperativo, ressalvada a hipótese de regramento próprio na respectiva entidade federativa, prevendo consequências jurídicas próprias para tipos específicos de acordos cooperativos.
Em seguida, constam dispositivos que regulam a licitação para a seleção de parceiro privado para celebrar Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI), na forma da Lei complementar nº 182, de 1º de junho de 2021 (“Marco Legal das Startups”).
Lei complementar n.º 182, de 1º de junho de 2021
Institui o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador; e altera a Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.
“CAPÍTULO VI
DA CONTRATAÇÃO DE SOLUÇÕES INOVADORAS PELO ESTADO
Seção I
Disposições Gerais
Art. 12. As licitações e os contratos a que se refere este Capítulo têm por finalidade:
I – resolver demandas públicas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia; e
II – promover a inovação no setor produtivo por meio do uso do poder de compra do Estado.
§ 1º Os órgãos e as entidades da administração pública direta, autárquica e fundacional de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios subordinam-se ao regime disposto neste Capítulo.
§ 2º As empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias poderão adotar, no que couber, as disposições deste Capítulo, nos termos do regulamento interno de licitações e contratações de que trata o art. 40 da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, e seus conselhos de administração poderão estabelecer valores diferenciados para os limites de que tratam o § 2º do art. 14 e o § 3º do art. 15 desta Lei Complementar.
§ 3º Os valores estabelecidos neste Capítulo poderão ser anualmente atualizados pelo Poder Executivo federal, de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ou outro que venha a substituí-lo.
Seção II
Da Licitação
Art. 13. A administração pública poderá contratar pessoas físicas ou jurídicas, isoladamente ou em consórcio, para o teste de soluções inovadoras por elas desenvolvidas ou a ser desenvolvidas, com ou sem risco tecnológico, por meio de licitação na modalidade especial regida por esta Lei Complementar.
§ 1º A delimitação do escopo da licitação poderá restringir-se à indicação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pela administração pública, incluídos os desafios tecnológicos a serem superados, dispensada a descrição de eventual solução técnica previamente mapeada e suas especificações técnicas, e caberá aos licitantes propor diferentes meios para a resolução do problema.
§ 2º O edital da licitação será divulgado, com antecedência de, no mínimo, 30 (trinta) dias corridos até a data de recebimento das propostas:
I – em sítio eletrônico oficial centralizado de divulgação de licitações ou mantido pelo ente público licitante; e
II – no diário oficial do ente federativo.
§ 3º As propostas serão avaliadas e julgadas por comissão especial integrada por, no mínimo, 3 (três) pessoas de reputação ilibada e reconhecido conhecimento no assunto, das quais:
I – 1 (uma) deverá ser servidor público integrante do órgão para o qual o serviço está sendo contratado; e
II – 1 (uma) deverá ser professor de instituição pública de educação superior na área relacionada ao tema da contratação.
§ 4º Os critérios para julgamento das propostas deverão considerar, sem prejuízo de outros definidos no edital:
I – o potencial de resolução do problema pela solução proposta e, se for o caso, da provável economia para a administração pública;
II – o grau de desenvolvimento da solução proposta;
III – a viabilidade e a maturidade do modelo de negócio da solução;
IV – a viabilidade econômica da proposta, considerados os recursos financeiros disponíveis para a celebração dos contratos; e
V – a demonstração comparativa de custo e benefício da proposta em relação às opções funcionalmente equivalentes.
§ 5º O preço indicado pelos proponentes para execução do objeto será critério de julgamento somente na forma disposta nos incisos IV e V do § 4º deste artigo.
§ 6º A licitação poderá selecionar mais de uma proposta para a celebração do contrato de que trata o art. 14 desta Lei Complementar, hipótese em que caberá ao edital limitar a quantidade de propostas selecionáveis.
§ 7º A análise da documentação relativa aos requisitos de habilitação será posterior à fase de julgamento das propostas e contemplará somente os proponentes selecionados.
§ 8º Ressalvado o disposto no § 3º do art. 195 da Constituição Federal, a administração pública poderá, mediante justificativa expressa, dispensar, no todo ou em parte:
I – a documentação de habilitação de que tratam os incisos I, II e III, bem como a regularidade fiscal prevista no inciso IV do caput do art. 27 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993; e
II – a prestação de garantia para a contratação.
§ 9º Após a fase de julgamento das propostas, a administração pública poderá negociar com os selecionados as condições econômicas mais vantajosas para a administração e os critérios de remuneração que serão adotados, observado o disposto no § 3º do art. 14 desta Lei Complementar.
§ 10. Encerrada a fase de julgamento e de negociação de que trata o § 9º deste artigo, na hipótese de o preço ser superior à estimativa, a administração pública poderá, mediante justificativa expressa, com base na demonstração comparativa entre o custo e o benefício da proposta, aceitar o preço ofertado, desde que seja superior em termos de inovações, de redução do prazo de execução ou de facilidade de manutenção ou operação, limitado ao valor máximo que se propõe a pagar.
Seção III
Do Contrato Público para Solução Inovadora
Art. 14. Após homologação do resultado da licitação, a administração pública celebrará Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI) com as proponentes selecionadas, com vigência limitada a 12 (doze) meses, prorrogável por mais um período de até 12 (doze) meses.
§ 1º O CPSI deverá conter, entre outras cláusulas:
I – as metas a serem atingidas para que seja possível a validação do êxito da solução inovadora e a metodologia para a sua aferição;
II – a forma e a periodicidade da entrega à administração pública de relatórios de andamento da execução contratual, que servirão de instrumento de monitoramento, e do relatório final a ser entregue pela contratada após a conclusão da última etapa ou meta do projeto;
III – a matriz de riscos entre as partes, incluídos os riscos referentes a caso fortuito, força maior, risco tecnológico, fato do príncipe e álea econômica extraordinária;
IV – a definição da titularidade dos direitos de propriedade intelectual das criações resultantes do CPSI; e
V – a participação nos resultados de sua exploração, assegurados às partes os direitos de exploração comercial, de licenciamento e de transferência da tecnologia de que são titulares.
(…)
Seção IV
Do Contrato de Fornecimento
Art. 15. Encerrado o contrato de que trata o art. 14 desta Lei Complementar, a administração pública poderá celebrar com a mesma contratada, sem nova licitação, contrato para o fornecimento do produto, do processo ou da solução resultante do CPSI ou, se for o caso, para integração da solução à infraestrutura tecnológica ou ao processo de trabalho da administração pública.
§ 1º Na hipótese prevista no § 6º do art. 13 desta Lei Complementar, quando mais de uma contratada cumprir satisfatoriamente as metas estabelecidas no CPSI, o contrato de fornecimento será firmado, mediante justificativa, com aquela cujo produto, processo ou solução atenda melhor às demandas públicas em termos de relação de custo e benefício com dimensões de qualidade e preço.
§ 2º A vigência do contrato de fornecimento será limitada a 24 (vinte e quatro) meses, prorrogável por mais um período de até 24 (vinte e quatro) meses. § 3º Os contratos de fornecimento serão limitados a 5 (cinco) vezes o valor máximo definido no § 2º do art. 14 desta Lei Complementar para o CPSI, incluídas as eventuais prorrogações, hipótese em que o limite poderá ser ultrapassado nos casos de reajuste de preços e dos acréscimos de que trata o § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.”
Percebe-se que foram conferidas soluções legislativas muito diferentes quanto à forma de seleção do parceiro privado na Lei de Inovação e no Marco Legal das Startups. Sobre este último, leia os comentários abaixo, tecidos em parecer elaborado por André Rodrigues Cyrino, examinando o rito aplicável à fase preparatória das licitações para a celebração de Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI):
Parecer nº 25/2024 – ARCY
Parecer da PGE/RJ lavrado por André Rodrigues Cyrino
(…) soluções inovadoras exigem que se saia da zona de conforto. Para inovar, é preciso experimentar, o que implica assumir riscos. Tradicionalmente, porém, a atuação do gestor público sempre foi pautada na segurança; num desejo forte por previsibilidade. E nada mais seguro do que repelir riscos e afastar incentivos a uma atuação experimental e inovadora. O gestor tem um medo natural de errar, daí que evita arriscar-se. A legislação, tradicionalmente, teve esse foco, gerando incentivos à paralisia. Um foco que repelia a experiência, pelo risco do erro e da possibilidade da responsabilização.
Embora o ordenamento jurídico, por muito tempo, tenha refletido a prevalência da ideia de segurança na Administração Pública, o constituinte reformador trouxe como princípio orientador da atuação administrativa o chamado princípio da eficiência (art. 37 CRFB). Trata-se de dever que, em seus múltiplos significados, implica a necessidade de atuação pública voltada a resultados efetivos ao interesse público, o que, muitas vezes, é alcançado com o experimentalismo e soluções inovadoras.
Nos últimos anos, então, viu-se uma transformação relevante: a segurança cedeu espaço à demanda por soluções experimentais. Dito de outra forma, a inovação e o experimentalismo passaram a ser nortes possíveis da atuação contemporânea da Administração Pública, diante da necessidade de se adaptar às constantes mudanças sociais e tecnológicas. Tornou-se necessária a “quebra da uniformidade e reconhecimento do ambiente regulatório como fator decisivo para o desenho de serviços novos, de impacto singular e valor público”.7
O experimentalismo, a propósito, pode ser compreendido como um “um sistema fundado na valoração da experiência dentro de uma determinada prática científica. Dessa maneira, assim como um cientista faria experiências para comprovar suas teses, arranjos jurídicos experimentais seriam adotados para testar o sucesso e efetividade da ação pública pretendida. O experimentalismo é, assim, entre outras coisas, uma prática de descoberta, análise e aprendizagem”.
Quando aplicado à Administração Pública, o experimentalismo possibilita a existência de um espaço no qual soluções e alternativas inovadoras poderão ser avaliadas no cotidiano administrativo com maior segurança jurídica. Numa lógica de tentativa e erro, serão verificadas a viabilidade, vantagens, desvantagens e oportunidades de aperfeiçoamento destas soluções. Tem-se, assim, um modelo baseado no aprendizado contextual, o qual implica um arranjo jurídico caracterizado pela flexibilidade e pela contingência – muito diferente do modelo típico e rígido de controle.
Um cenário de valorização de experimentalismo e de inovações exige o reconhecimento de que o erro pode sim fazer parte do processo decisório do gestor público. Afinal, é imprescindível errar para que se desenvolvam inovações na Administração Pública. O erro é inerente ao ser humano, e o administrador pode cometê-los. Do mesmo modo, exige a superação da cultura do medo dos administradores. A criação de uma cultura do medo prejudica e distorce o processo decisório do gestor público, desencorajando inovações, experimentalismos e uma adequada administração de riscos no setor público.
Não por outro motivo foi inserido o art. 28 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), por meio da Lei nº 13.655/2018. Trata-se de norma que admite que o administrador bem-intencionado e cuidadoso possa errar sem ser punido. Em outras palavras, trata-se de norma cujo escopo é proteger o gestor com boas motivações e que quer inovar, como destacado pelo STF quando declarou a constitucionalidade do dispositivo.
Ora, a criação de uma estrutura adequada de incentivos à inovação e ao experimentalismo, no contexto específico das startups, resultou, justamente, na edição da Lei Complementar nº 182/2021, que instituiu Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador (MLSEI). Referido Marco Legal, além de disciplinar a modalidade especial de licitação para a celebração de Contrato Público para Soluções Inovadoras (CPSI) – objeto deste parecer – instituiu a possibilidade do sandbox regulatório, que favorece um cenário em que a Administração possa romper com sua tradicional atuação uniforme e de rotina, e impulsiona a experimentação da ação administrativa.
O art. 3º, inciso VIII da LC nº 182/2021 estabelece como princípio e diretriz o “incentivo à contratação, pela administração pública, de soluções inovadoras elaboradas ou desenvolvidas por startups, reconhecidos o papel do Estado no fomento à inovação e as potenciais oportunidades de economicidade, de benefício e de solução de problemas públicos com soluções inovadoras”.
III. Interpretação da norma e não aplicabilidade da fase preparatória nos Contratos Públicos para Soluções Inovadoras.
Demonstrada a mudança contextual de favorecimento à inovação e ao experimentalismo na Administração Pública, passa-se a examinar, especificamente, a aplicabilidade das normas atinentes à fase preparatória da licitação presentes na Lei nº 14.133/2021 às licitações visando à celebração de CPSI.
Pois bem. A Lei Complementar nº 182/2021, em seu art. 13, instituiu modalidade especial de licitação para contratar pessoas físicas ou jurídicas para o teste de soluções inovadoras. Dentre as inúmeras peculiaridades que diferenciam esta modalidade de licitação, destaco o §1º do art. 13, que trata do que vem a ser o procedimento preparatório desta modalidade de licitação. Veja-se:
Art. 13. § 1º A delimitação do escopo da licitação poderá restringir-se à indicação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pela administração pública, incluídos os desafios tecnológicos a serem superados, dispensada a descrição de eventual solução técnica previamente mapeada e suas especificações técnicas, e caberá aos licitantes propor diferentes meios para a resolução do problema.
Isso significa que, nestas circunstâncias, o edital da licitação não precisa especificar detalhadamente o objeto da licitação, bastando que indique o problema a ser resolvido, os resultados esperados e os desafios tecnológicos a serem superados. Não será necessário, portanto, observar o art. 18, caput, §1º e seus respectivos incisos da Lei nº 14.133/2021.
O tratamento dado pela legislação a essa modalidade especial de licitação em análise não poderia ser diferente. Como mencionado no capítulo anterior, a inovação exige maior flexibilidade, tornando necessário que o procedimento para a contratação de startups tenha como objetivo a apresentação da raiz do problema dos resultados esperados, em vez de pretender identificar uma solução para o problema que é, muitas vezes, técnica, complexa e de difícil mensuração.
(…) O foco, repise-se, é o resultado; não o processo. Daí que a racionalidade das contratações inovadoras, ligadas ao experimentalismo é incompatível com a fase interna da legislação geral de licitações. Tão incompatível que sequer há de se falar em preenchimento de lacunas da legislação especial pelas normas gerais sobre a fase preparatória. Nesse ponto, a sistemática da Lei nº 14.133/2021 é simplesmente inaplicável.
Como o legislador optou por não prever, de forma expressa, a aplicação subsidiária da Lei nº 14.133/2021, entende-se que o regime geral de licitações não é aplicável à modalidade especial de licitações do MLSEI. No mesmo diapasão, aliás, do decidido pelo Plenário do TCU no Acórdão 739/2020, quando se examinou a possível aplicação subsidiária da Lei de Licitações e Contratos às licitações regulamentadas pela Lei das Estatais, no que coubesse. Na ocasião, o Plenário da Corte de Contas assim se manifestou: “Não se aplica subsidiariamente a Lei 8.666/1993 a eventuais lacunas da Lei 13.303/2016, exceto nas hipóteses nela expressamente previstas (arts. 41 e 55, III), sob pena de violação aos arts. 22, XXVII, e 173, §1°, III, da Constituição Federal”. Um último registro: o fato de não haver aplicação subsidiária da Lei nº 14.133/2021 não implica liberdade indevida. Vale dizer: o silêncio eloquente do legislador não pode ser compreendido como uma carta branca para a atuação do administrador. Isso, porque, ainda que não haja normatização específica e minuciosa sobre todos os aspectos destas licitações, a atuação do administrador é sempre adstrita aos princípios que regem a Administração Pública, notadamente os do art. 37, caput, da CRFB. O mesmo se diga da incidência das normas gerais de processo administrativo, que robustecem os deveres de justificação administrativa.
3. DEBATENDO
Perguntas de fixação e revisão sobre os textos lidos
1. A partir do trecho retirado do artigo “Contracting for innovation”, explique (i) de que forma a incompletude inerente aos contratos costuma ser enfrentada pelas partes e (ii) por quais razões os autores entendem que essas formas tradicionais de lidar com a incompletude contratual não são eficazes em contratos sob incerteza contínua, como são os contratos para a inovação.
2. O texto de Caio Márcio Melo Barbosa apresenta visão crítica sobre a solução dada pela Lei de Inovação ao problema de como selecionar um parceiro privado para firmar contratos para a inovação com o poder pública. Quais são os fundamentos de sua crítica?
3. Indique quais são os principais pontos de distinção entre o regime jurídico do contrato de encomenda tecnológica e dos contratos com a Administração de que trata o Marco Legal das Startups.
4. Segundo André Rodrigues Cyrino, como se deve planejar uma contratação para a inovação com startups? Qual é o nível de detalhe que os documentos de planejamento das futuras contratações devem ter?
Questões para debates e reflexões adicionais a partir das leituras
5. As leituras acima revelam que a Lei de Inovação e o Marco Legal das Startups deram respostas diferentes ao problema de como selecionar um parceiro público da Administração em contratos para a inovação. Quais aspectos diferenciam essas soluções legislativas?
6. Qual é a densidade normativa suficiente de leis que tratam da seleção de parceiros públicos para a inovação? Quais são os riscos jurídicos que uma previsão muito genérica pode gerar?
7. Elabore um texto argumentativo curto (de 10 a 20 linhas) argumentando a favor de maior discricionariedade na seleção de parceiros públicos para a inovação, sem que a lei pré-defina procedimentos licitatórios.
8. Elabore um texto argumentativo curto (de 10 a 20 linhas) argumentando a favor de maior controle na seleção de parceiros públicos para a inovação, com previsão legal de procedimentos e dos critérios de julgamento possíveis.
*OBS.: o professor poderá dividir a turma entre as perguntas “7” e “8” acima, de modo que cada metade reflita elabore argumentos em sentidos contrários, preparando-se para um debate em sala de aula.
9. A Lei nº 14.133/2021 exige, em seu art. 93, a cessão de “todos os direitos patrimoniais” relativos aos projetos ou serviços técnicos especializados contratados para a Administração Pública. Essa norma, como você pôde verificar, é excepcionada nas leis específicas sobre contratação para inovação, permitindo-se a alocação de forma diversa. O Marco Legal das Startups, por exemplo, prevê que o contrato deverá conter “a definição da titularidade dos direitos de propriedade intelectual das criações resultantes do CPSI” (art. 14, § 1º, inc. IV). Na sua opinião, faz sentido pré-definir no contrato a alocação de propriedade intelectual referente a inovações que sequer se sabe, de antemão, no que constituirão? Existem mecanismos contratuais alternativos para resolver esse problema? Que tipo de instrumento de governança contratual poderia ser estabelecida para isso?
10. Elabore um anteprojeto de lei alternativo, voltado a reger o processo seletivo e o regime contratual dos contratos para a inovação com a Administração Pública. Você pode, se preferir, formatá-lo como proposta de alteração aos dispositivos vigentes de uma das leis que foram trabalhadas nesta aula.
4. APROFUNDANDO
BARBOSA, Caio Márcio Melo. Parceria para a Inovação na União Europeia e a Lei Federal de Inovação Brasileira. Revista Publicações da Escola da AGU, n. 1, 2015.
BARBOSA, Denis Borges. Direito da Inovação: comentários à Lei Federal de Inovação, Incentivos Fiscais à Inovação, legislação estadual e local, poder de compra do Estado (modificações à lei de licitações), 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
CAMARÃO, Tatiana Martins da Costa. Contratação de startup pela Administração Pública – Lei Complementar nº 182/2021. Revista da Procuradoria do Tribunal de Contas do Estado do Pará, ano 2, n. 2, 2022.
GILSON, Ronald; SCOTT, Robert; SABEL, Charles. Contracting for innovation: vertical disintegration and interfirm collaboration. Columbia Law Review, v. 109, pp. 431-502, 2009.
MODESTO, Paulo. Direito administrativo da experimentação: uma introdução. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 2021.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; CARMO, Thiago Gomes do. Administração pública experimental: licitação e contratação de soluções inovadoras. FCGP, ano 22, n. 259, 2023.
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