1. CONHECENDO O BÁSICO
Esta Aula busca apresentar a desapropriação como uma ferramenta do Direito Administrativo com potencial para impulsionar o efetivo cumprimento da função social da propriedade.
Dessa forma, a Aula busca destacar o instrumento da desapropriação-sanção, previsto na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Cidade e em Planos Diretores de cidades brasileiras, discorrendo sobre o seu conceito, procedimentos e desafios para sua aplicação por gestões municipais. Adicionalmente, com o intuito de contextualizar a importância do instrumento da desapropriação-sanção na dinâmica das cidades e, consequentemente, na vida das pessoas, conferindo um olhar prático ao Direito Administrativo, são apresentadas as tendências e debates atuais que cercam o tema.
Duante a leitura, você tomará contato com a utilização de recursos tradicionais do Direito – dispositivos legais, normativos e textos doutrinários – e casos concretos e reais, que auxiliam a compreensão do tema (em anexo). Assim, espera-se fomentar debates em torno de questões para discussões e atividades em sala de aula.
O instrumento da desapropriação pode ser descrito, de maneira geral, como o meio pelo qual o Poder Público retira determinado imóvel (terreno ou edificação) do patrimônio de seu proprietário, sob a justificativa da necessidade de utilizá-lo para o atendimento de finalidades específicas.
Direito Administrativo Moderno
Por Odete Medauar
(Disponível em: MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 19º ed. São Paulo: RT, 2015, p. 348)
“As características essenciais da desapropriação são as seguintes: a) é uma figura jurídica que expressa a face autoridade da Administração, acarretando limitação ao caráter perpétuo do direito de propriedade; b) tem como resultado a retirada de um bem do patrimônio do seu proprietário; c) tem por fim o atendimento do interesse público, visando a um resultado benéfico a toda a coletividade; d) em troca do vínculo de domínio, o proprietário recebe uma indenização”.
Na Constituição Federal de 1988 (CF/88) o instituto da desapropriação aparece, pela primeira vez, no art. 5º, inciso XXIV e, pela segunda, no art. 22, inciso II.
Arts. 5º, inc. XXIV e 22 da Constituição de 1988
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
II – desapropriação;
Diante do conteúdo dos dispositivos supracitados, pode-se inferir o comando constitucional da (i) competência privativa da União para legislar sobre o instituto da desapropriação, por meio de (ii) lei que descreverá o procedimento para que o Poder Público efetive o instrumento (iii) nos casos de necessidade ou utilidade pública ou interesse social que somente se realiza (iv) com indenização justa e prévia em dinheiro ao proprietário original.
O Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de julho de 1941, trata especificamente da desapropriação por utilidade pública e a Lei Federal nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, define os casos em que é possível ocorrer a desapropriação por interesse social. Interessante notar que ambos os diplomas legais são anteriores à CF/88, porém recepcionados por esta, já que permanecem vigentes e produzindo efeitos. Claro, ao longo dos anos as legislações sofreram alterações, inclusive a partir de construções doutrinárias. Por exemplo, apesar do Decreto-Lei nº 3.365/1941 mencionar apenas utilidade pública, há certo consenso na doutrina de que ali estão hipóteses de utilidade e necessidade pública a justificar a aplicação do instrumento da desapropriação.
No caso da desapropriação por utilidade pública ou necessidade pública, o Decreto-Lei nº 3.365/1941 estipula que para a ocorrência, bastará que o Presidente da República, o Governador ou o Prefeito (art. 6º) – a depender do ente federativo promotor da desapropriação – edite ato normativo (decreto) que declare a hipótese legal que justifique a desapropriação do bem (art. 2º) podendo o Poder Público, de imediato, adentrar na área a ser desapropriada (art. 7º), nos casos descritos no art. 5º.
Art. 5º do Decreto-Lei n.º 3.365/41
Art. 5o Consideram-se casos de utilidade pública:
a) a segurança nacional;
b) a defesa do Estado;
c) o socorro público em caso de calamidade;
d) a salubridade pública;
e) a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência;
f) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica;
g) a assistência pública, as obras de higiene e decoração, casas de saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais;
h) a exploração ou a conservação dos serviços públicos;
i) a abertura, conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos; a execução de planos de urbanização; o parcelamento do solo, com ou sem edificação, para sua melhor utilização econômica, higiênica ou estética; a construção ou ampliação de distritos industriais;
j) o funcionamento dos meios de transporte coletivo;
k) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza;
l) a preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens moveis de valor histórico ou artístico;
m) a construção de edifícios públicos, monumentos comemorativos e cemitérios;
n) a criação de estádios, aeródromos ou campos de pouso para aeronaves;
o) a reedição ou divulgação de obra ou invento de natureza científica, artística ou literária;
p) os demais casos previstos por leis especiais.
A desapropriação efetiva-se somente com a indenização do privado. Para tanto, o Poder Público poderá firmar acordo para formalizar a transação e pagamento (com suas etapas descritas pelo arts. 10-A e 10-B) ou, em caso da discordância do valor da indenização, recorrerá ao Judiciário, cujo processo deverá observar, além do Código de Processo Civil, as regras dos arts. 11 a 30. A título de curiosidade, a lei é expressa a vedar que o Poder Judiciário decida sobre o mérito da desapropriação, ou seja, caso o proprietário tenha algum questionamento de mérito, deve ajuizar ação própria para isso (art. 9º).
Caso o DUP seja publicado e o Poder Público não inicie os atos para concluir a desapropriação de imediato, terá o prazo de 5 anos para fazê-lo. Somente depois de 1 ano do final daquele prazo, novo DUP poderá ser publicado para a mesma área (art. 10). Porém, caso durante os anos em que o DUP continue vigente seja comprovada a inviabilidade ou a perda objetiva do interesse público para a destinação pretendida inicialmente, o Poder Público poderá alterá-la, desde que continue atendendo outra finalidade pública, ou poderá alienar o bem com direito de preferência a pessoa física ou jurídica desapropriada (art.5º, §6º).
No entanto, quando o bem expropriado é, de fato, utilizado pelo Poder Público para finalidade diversa daquela prevista inicialmente, há a configuração de “tredestinação”, que poderá ser (i) lícita, se se mantém destinação alinhada ao interesse público, ou (ii) ilícita, quando verificado desvio na finalidade do uso do bem. Neste segundo caso, poderá ocorrer a retrocessão do bem ao patrimônio de seu antigo proprietário.
As regras procedimentais e demais disposições gerais previstas no Decreto-Lei nº 3.365/1941 também se aplicam à desapropriação por interesse social, por força do art. 5º da Lei Federal nº 4.132/1962, que se limita a tratar dos pontos que esta modalidade se diferencia da outra: (i) prazo e (ii) os casos de sua aplicação.
Quanto ao prazo, o Poder Público possui 2 anos a partir da publicação do decreto de desapropriação por interesse social para dar início aos atos expropriatórios (art. 3º) nos casos em que se configura a aplicação do instrumento, conforme o art. 2º da lei.
Lei n.º 4.132/62
Art. 1º A desapropriação por interesse social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem-estar social, na forma do art. 147 da Constituição Federal.
Art. 2º Considera-se de interesse social:
I – o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico;
II – a instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração não se obedeça a plano de zoneamento agrícola, VETADO;
III – o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola:
IV – a manutenção de posseiros em terrenos urbanos onde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham construído sua habilitação, formando núcleos residenciais de mais de 10 (dez) famílias;
V – a construção de casa populares;
VI – as terras e águas suscetíveis de valorização extraordinária, pela conclusão de obras e serviços públicos, notadamente de saneamento, portos, transporte, eletrificação armazenamento de água e irrigação, no caso em que não sejam ditas áreas socialmente aproveitadas;
VII – a proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais.
VIII – a utilização de áreas, locais ou bens que, por suas características, sejam apropriados ao desenvolvimento de atividades turísticas.
IX – a destinação de áreas às comunidades indígenas que não se encontravam em área de ocupação tradicional em 5 de outubro de 1988, desde que necessárias à reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 1º O disposto no item I deste artigo só se aplicará nos casos de bens retirados de produção ou tratando-se de imóveis rurais cuja produção, por ineficientemente explorados, seja inferior à média da região, atendidas as condições naturais do seu solo e sua situação em relação aos mercados.
§ 2º As necessidades de habitação, trabalho e consumo serão apuradas anualmente segundo a conjuntura e condições econômicas locais, cabendo o seu estudo e verificação às autoridades encarregadas de velar pelo bem-estar e pelo abastecimento das respectivas populações.
O legislador define o instrumento da desapropriação como um ato administrativo com procedimentos e regras especiais, criando, assim, uma noção da desapropriação enquanto processo que somente poderá ser efetivado por meio das particularidades deste ato administrativo conforme suas normas específicas que, por sua vez se sobrepõem àquelas de aplicação geral ao processo administrativo e ao processo cível.
Outro aspecto importante que condiciona a efetivação da desapropriação é a indenização ao proprietário privado original, que deverá ser “justa” e “prévia”, nos termos da CF/88. Assim, durante o processo de desapropriação, o bem deverá ser avaliado adequadamente para se chegar ao valor da indenização devida pelo Poder Público.
No caso judicial, uma das etapas fundamentais é a apresentação de laudos emitidos por peritos, que poderão ser contratados por ambas as partes para se chegar ao valor real do bem objeto da desapropriação. Ademais, para a composição “justa” da indenização deverão ser incluídos no valor os honorários advocatícios e do perito contratado, além de juros compensatórios, tendo em vista a perda de renda do proprietário expropriado (sendo aplicável a taxa de 12% ao ano, conforme a Súmula nº 618 do STF). Caso ocorra atraso no pagamento da indenização “prévia” ao proprietário, serão aplicados juros moratórios e correção monetária ao valor definido.
Sobre esse tópico, um ponto de reflexão: Você já imaginou a possibilidade de um privado somente ter conhecimento de que seu terreno será desapropriado por meio da publicação do Decreto de Desapropriação no Diário Oficial? Sem comunicação prévia ou informe anterior do Poder Público? Pela legislação, isso é possível. Inclusive, não é tão incomum. Considerando que ambas as legislações foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988 e vigoram no atual cenário em que o Direito Administrativo se propõe a se aproximar dos administrados, na sua opinião, faria sentido a realização, pelo Poder Público, de um procedimento anterior a publicação do Decreto de Desapropriação para realizar uma comunicação adequada, transparente e instruída, de forma a possibilitar a participação do privado de forma mais ativa e desde o princípio do processo administrativo de desapropriação? Como o Poder Público poderia realizar esta fase “preparatória” da desapropriação? Há benefícios para o Poder Público ao adotar esta fase “preparatória”?
Um exemplo que descreve a situação é o caso vivido pelos moradores do bairro Jardim Vilas Boas, na Zona Sul de São Paulo, noticiado pela VEJA São Paulo:
Famílias descobrem pelo Instagram que suas casas devem ser demolidas
Por Cleyton Freitas
Disponível em: VEJA São Paulo, 27 maio 2024. < https://vejasp.abril.com.br/cidades/familias-descobrem-pelo-instagram-que-suas-casas-devem-ser-demolidas> Acesso em: 29 out 2024.
Moradores da Zona Sul souberam por uma postagem de rede social que seus lares devem dar lugar a um terminal de ônibus
Sempre antenado com os fatos do bairro onde mora, o Jardim Vilas Boas, na Zona Sul, o professor Paulo Lima, 52, se assustou ao ler uma postagem no Instagram em setembro. O texto, publicado pelo perfil “Foco no Jardim Miriam”, que traz notícias da região, informava que a casa dele e as dos vizinhos viriam abaixo para permitir a construção de um terminal de ônibus da prefeitura. “Causou muita surpresa. Considerei uma enorme falta de respeito”, diz.
A mensagem procedia. E, dessa maneira, Lima e os vizinhos descobriram que em 7 de julho o prefeito Ricardo Nunes (MDB) assinou um decreto que transformava 18 000 metros quadrados da região em área de utilidade pública para desapropriação. A medida atingia cerca de 600 famílias que moram em 130 imóveis no bairro.
A maioria não gostou e passou a protestar. “Meu pai trabalhava a semana toda e, de sábado e domingo, juntava a família para erguer essa casa. Foi muito sacrifício”, diz Joanita Silva, 83, no bairro há sessenta anos – ela mesma ajudou a levantar o sobrado e lembra que o bairro dos tijolos vinha das margens de um córrego da região. “Aqui era tudo brejo e mato. Para onde vamos? Não dão a mínima para a gente”, diz Adolfo Sorge, 73, há 59 anos no Jardim Vilas Boas.
A rua mais atingida pela decisão da prefeitura é a Gomes de Amorim, entre a Luís Stolb e a Francisco Alves de Azevedo. Em setembro, a SPTrans — que gerencia o transporte público na capital — publicou um edital para contratar o projeto do terminal, prometido há anos para a região. Nos planos de Nunes, a construção deve sair do papel até o fim do atual mandato, em 2024.
Na opinião da advogada Mariana Chiesa, doutora em direito do estado pela USP, embora a prefeitura não seja obrigada por lei a avisar previamente os moradores sobre um decreto de desapropriação, essa regra foi criada em uma época autoritária, em 1941, na ditadura de Getúlio Vargas, e não condiz com os tempos atuais. “Não existe uma obrigação, mas seria de bom-tom o aviso, como uma melhoria de práticas internas da prefeitura”, afirma a especialista.
(…)
Os moradores — amplamente favoráveis à instalação de um terminal de ônibus no bairro — dizem ter feito pesquisas e sugerido outras áreas à SPTrans. A empresa afirma, em nota, que as sugestões foram analisadas e que o processo tem sido transparente “e pautado pelo diálogo com a comunidade”. Por fim, informa que o projeto original será levado adiante.
A SPTrans alega ainda que o terminal está previsto em lei, no Plano Diretor e no Programa de Metas do município. “A indicação da área considerou aspectos técnicos como topografia plana, condições e disponibilidade da oferta de transportes, possibilidade de conexão com outros modos de transporte e questões sociais, como os interesses de deslocamento e a proximidade aos serviços essenciais”, justifica. “A instalação levará benefícios não apenas de transporte público, mas para o desenvolvimento da região”, diz a nota.
O debate é ainda mais interessante e o problema maior se considerarmos que no cálculo da indenização pelo Poder Público não são contabilizadas todas as benfeitorias realizadas pelo proprietário. Há uma discussão entre as benfeitorias consideradas úteis e necessárias, sendo somente a última passível de ser indenizada pelo Poder Público em razão da desapropriação. Por exemplo, se após a publicação do Decreto de desapropriação e anterior ao conhecimento do proprietário este resolve construir benfeitorias úteis ao seu imóvel como piscina e áreas de lazer que definitivamente agregam valor ao bem, pode-se considerar justa a indenização que não abarca estas benfeitorias, neste caso?
O Poder Público também pode utilizar a desapropriação para fins de reforma agrária, conforme previsto pela Constituição Federal de 1988 em seus arts. 184 a 186 e regulada pela Lei Federal nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993.
Arts. 184, 185 e 186 da Constituição de 1988
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
§1º As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.
§2º O decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de desapropriação.
§3º Cabe à lei complementar estabelecer procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo judicial de desapropriação.
§4º O orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício.
§5º São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária.
Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:
I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;
II – a propriedade produtiva.
Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos à sua função social.
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Veja que ao prever a aplicação do instrumento nos termos acima, de competência privativa da União, a Constituição incrementa determinados conceitos importantes à desapropriação, sendo estes: “reforma agrária” e “função social da propriedade”. Outro aspecto que chama atenção é a indenização do privado expropriado por meio de títulos da dívida agrária.
Passando para a Lei n.º 8.629/93, que a regulamenta, é reforçada a finalidade da desapropriação para fins de reforma agrária:
Art. 13 da Lei n.º 8.629/93
Art. 13. As terras rurais de domínio da União, dos Estados e dos Municípios ficam destinadas, preferencialmente, à execução de planos de reforma agrária.
Parágrafo único. Excetuando-se as reservas indígenas e os parques, somente se admitirá a existência de imóveis rurais de propriedade pública, com objetivos diversos dos previstos neste artigo, se o poder público os explorar direta ou indiretamente para pesquisa, experimentação, demonstração e fomento de atividades relativas ao desenvolvimento da agricultura, pecuária, preservação ecológica, áreas de segurança, treinamento militar, educação de todo tipo, readequação social e defesa nacional.
Art. 16. Efetuada a desapropriação, o órgão expropriante, dentro do prazo de 3 (três) anos, contados da data de registro do título translativo de domínio, destinará a respectiva área aos beneficiários da reforma agrária, admitindo-se, para tanto, formas de exploração individual, condominial, cooperativa, associativa ou mista.
Ou seja, aplicando-se a estrutura clássica do instrumento da desapropriação, entende-se que, neste caso, o Poder Público (União, necessariamente) retira imóvel rural do patrimônio de seu proprietário, sob a justificativa do não cumprimento de sua função social, configurando-se, assim, um caráter sancionatório ao privado por meio da desapropriação.
O imóvel rural, conforme o texto constitucional, será destinado prioritariamente para a realização de políticas públicas de reforma agrária, admitidas as exceções acima. Para a sua a efetivação, a lei federal dispõe que transferência do terreno da União aos beneficiários ocorrerá até 3 anos após a conclusão da desapropriação, por meio de títulos de domínio, concessão de uso ou concessão de direito real de uso, inegociáveis por 10 anos:
No mais, diferenciando-se das demais modalidades, a legislação adiciona outro ator importante no processo de desapropriação para fins de reforma agrária: o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), responsável por conduzir etapas importantes da aplicação deste instrumento.
Cronologicamente, será o INCRA o responsável por (i) realizar a avaliação do imóvel – a partir de critérios técnicos – quanto a sua produtividade e ocupação real, sendo passível de desapropriação a área considerada improdutiva ou subutilizada; (ii) elaboração de laudo avaliativo do terreno, incluindo a verificação da existência de benfeitorias construídas pelo proprietário úteis e necessárias (sendo apenas esta segunda indenizável em dinheiro) para que então (iii) possa calcular, de forma transparente e técnica, o valor devido a título de indenização justa ao proprietário, que ocorrerá por meio da (iv) emissão de títulos da dívida agrária.
Para além da atuação direta e essencial no procedimento de desapropriação, o INCRA também realizará o processo de seleção das famílias beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária, que ocorrerá da seguinte forma prevista em lei.
Art. 18-A da Lei n.º 8.629/93
Art. 18-A. Os lotes a serem distribuídos pelo Programa Nacional de Reforma Agrária não poderão ter área superior a 2 (dois) módulos fiscais ou inferior à fração mínima de parcelamento.
1o Fica o Incra autorizado, nos assentamentos com data de criação anterior ao período de dois anos, contado retroativamente a partir de 22 de dezembro de 2016, a conferir o título de domínio ou a CDRU relativos às áreas em que ocorreram desmembramentos ou remembramentos após a concessão de uso, desde que observados os seguintes requisitos:
I – observância da fração mínima de parcelamento e do limite de área de até quatro módulos fiscais por beneficiário, observado o disposto no art. 8o da Lei no 5.868, de 12 de dezembro de 1972;
II – o beneficiário não possua outro imóvel a qualquer título;
III – o beneficiário preencha os requisitos exigidos no art. 3o da Lei no 11.326, de 24 de julho de 2006; e
IV – o desmembramento ou o remembramento seja anterior ao período de dois anos, contado retroativamente a partir de 22 de dezembro de 2016.
Enquanto nas demais bastará a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município emitir decreto de declaração de utilidade pública, necessidade pública ou interesse social da área para iniciar o seu processo e realizar a sua destinação, na desapropriação para fins de reforma agrária a União fica obrigada a realizar outros procedimentos e articulação com atores essenciais (INCRA) para a efetivação do instrumento com destinação prioritária à reforma agrária, visando o cumprimento da função social da propriedade, conforme critérios legais.
Arts. 9º e 10 da Lei n.º 8.629/93
Art. 9º A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta lei, os seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
§ 1º Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§1º a 7º do art. 6º desta lei.
§ 2º Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade.
§ 3º Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.
§ 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais.
§ 5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.
Art. 10. Para efeito do que dispõe esta lei, consideram-se não aproveitáveis:
I – as áreas ocupadas por construções e instalações, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reprodução e criação de peixes e outros semelhantes;
II – as áreas comprovadamente imprestáveis para qualquer tipo de exploração agrícola, pecuária, florestal ou extrativa vegetal;
III – as áreas sob efetiva exploração mineral;
IV – as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente.
V – as áreas com remanescentes de vegetação nativa efetivamente conservada não protegidas pela legislação ambiental e não submetidas a exploração nos termos do inciso IV do §3º do art. 6º desta Lei.
É a partir da previsão constitucional e da regulamentação da desapropriação para fins de reforma agrária que o instrumento passa a ser utilizado para identificar e destinar a uso adequado aqueles imóveis que não cumprem com a sua função social da propriedade, revelando-se como uma medida de caráter sancionatório ao proprietário privado.
2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
Como mencionado, a desapropriação para fins de reforma agrária traz a aplicação do instrumento pelo Estado atrelado a uma noção (i) sancionatória (ii) se verificada a inobservância do cumprimento da função social da propriedade, mediante indenização do proprietário privado.
Deslocando a mesma lógica para o contexto urbano, a Constituição Federal de 1988 dispõe o seguinte:
Art. 182 da Constituição de 1988
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
§4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Diante do dispositivo acima, há autorização constitucional para que o Poder Público municipal se utilize do instrumento da desapropriação para sancionar o privado que não destinar a sua propriedade urbana adequadamente.
Para a efetiva utilização deste instrumento, o art. 182 da Constituição Federal estabelece premissas obrigatórias, sendo: (i) lei federal regulamentadora do dispositivo, que veio a ser o Estatuto da Cidade (ii) existência de Plano Diretor, de iniciativa do Executivo local e aprovada pela Câmara de Vereadores (iii) cujo objetivo é “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (iv) por meio de diretrizes fundamentais que serão utilizadas para a verificação do cumprimento da função social da propriedade urbana – em outras palavras, regras que definem a “função social da propriedade”.
Tendo este arcabouço regulatório definido, o texto constitucional permite a faculdade do Poder Público municipal em exigir que o “proprietário so solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento” e quando não verificado este cumprimento a aplicação de “penas” sucessivas, sendo a primeira o parcelamento, utilização ou edificação compulsórios (PEUC), a segunda o IPTU progressivo e, por fim, a desapropriação-sanção.
Para a utilização destes instrumentos é premissa obrigatória a existência de Plano Diretor municipal que, inclusive, preveja a sua aplicação e defina os critérios a serem utilizados para a verificação do não cumprimento da função social da propriedade (bem como a definição deste conceito). Também é importante que o Município regulamente as etapas e procedimentos para a aplicação efetiva pelo Poder Público dos instrumentos (que poderá ser tratado por meio de norma infralegal, como decreto). No contexto prático, destaca-se a relação inerente existente entre os 3 instrumentos, já que a aplicação de um depende da aplicação prévia do anterior, razão pelo qual o dispositivo constitucional usa o termo “sucessivamente”. A figura abaixo ilustra essa relação:

Em termos procedimentais, o fluxo se inicia com a notificação do proprietário do imóvel pelo Poder Público, para a aplicação da PEUC quando verificada a ausência do cumprimento da função social da propriedade a partir dos critérios dispostos no Plano Diretor local.
Para tanto, o Plano Diretor deverá prever o que se considera, naquele contexto local, o cumprimento da função social da propriedade, verificável a partir de critérios e parâmetros objetivos e já com o referencial constitucional, que menciona “propriedade não edificadas, subutilizadas e não utilizadas”. Há, portanto, uma correlação entre função social da propriedade urbana e atividade construtiva.
Solo “não edificado” é aquele em que o seu coeficiente de aproveitamento é igual a zero. O “coeficiente de aproveitamento” é o parâmetro estabelecido para determinar “a relação entre a área edificável e a área do terreno” (Art. 28, §1º do Estatuto da Cidade).
Em outras palavras, ele define quantos metros quadrados podem ser construídos em um lote urbano, limitando o volume e a densidade das construções conforme o zoneamento da cidade, de acordo com a legislação local (Plano Diretor ou Lei de Uso e Ocupação do Solo). Por exemplo, se a lei de uma cidade estabelece que o coeficiente de aproveitamento básico para uma determinada região é 1,0, significa que em um terreno de 500 m², o proprietário poderá, no máximo, ter 500 m² de área construída, independentemente de quantos andares a edificação possua (pode ser um pavimento único de 500 m² ou dois pavimentos de 250 m² cada).
Já o solo “subutilizado” é definido pelo Estatuto da Cidade.
Art. 5º da Lei n.º 10.257/2001 – Estatuto da Cidade
Art. 5o Lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para implementação da referida obrigação.
§ 1o Considera-se subutilizado o imóvel:
I – cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente;
II – (VETADO).
Tratando-se do termo “não utilizado”, por inexistência de sua definição no Estatuto da Cidade, a doutrina especializada dedicou-se a buscar uma interpretação deste conceito.
Para Fernando Dias Menezes de Almeida [1] solo “não edificado” é aquele que não é ocupado por nenhuma edificação; solo “subutilizado” é aquele que apresenta edificação abaixo do coeficiente de aproveitamento mínimo da região, definido na legislação municipal; e solo “não utilizado” é aquele que possui coeficiente de aproveitamento igual a “zero”. O que, na prática, segundo o autor o conceito de solo “não utilizado” não possui diferença do que se entende por “solo não edificado”.
Porém, o entendimento não abarca todas as possibilidades de uso do solo no contexto urbano por indicar uma interpretação que, na prática, esvazia a expressão “não utilizado” da Constituição Federal, deixando de reconhecer que a palavra utilização é polissêmica, podendo ser relacionada ao atendimento do coeficiente de aproveitamento ou a seu uso/destinação.
Isto porque há a possibilidade de existir área não edificada, ou seja, com coeficiente de aproveitamento igual a zero e com destinação compatível com a sua função social, portanto adequadamente utilizada (como ocorre nos imóveis urbanos destinados a manter mata virgem com uso para hortas urbanas) ou área com edificação conforme o seu coeficiente de aproveitamento, porém que não esteja abandonada, sem destinação ou ocupada de forma inadequada.
No mesmo sentido, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo utilizou-se da conjunção dos critérios (i) de aproveitamento igual ou superior ao coeficiente de aproveitamento da área e (ii) que tenha, no mínimo, 60% de sua área construída desocupada por mais de 1 ano ininterrupto para definir o conceito de imóveis “não utilizados”.
Retomando a hipótese de áreas sem edificação, mas em consonância com a função social, o Decreto do Município de São Paulo nº 55.638, de 30 de outubro de 2014, que regulamenta os instrumentos indutores da função social da propriedade na cidade de São Paulo, apresenta essas atividades.
Art. 6º do Decreto do Município de São Paulo n.º 55.638/2014
Art. 6º São consideradas atividades que não necessitam de edificação para o desenvolvimento de suas finalidades, dentre outras:
I – estações aduaneiras;
II – postos de abastecimento de veículos;
III – terminais de logística, transportadoras e garagens de veículos de transporte coletivo ou de cargas;
IV – depósitos de material de construção a céu aberto;
V – depósitos de material para reciclagem;
VI – indústria de estruturas pré-moldadas de concreto, artefatos de cimento e preparação de massa de concreto e argamassa para uso na construção civil;
VII – pátios descobertos de deposição ou manobra de contêineres;
VIII – linhas de transmissão de energia ou dados, trilhos, antenas e assemelhados, quando operados por concessionárias ou permissionárias de serviços públicos ou característicos da atividade econômica licenciada para o imóvel;
IX – estação ou equipamentos de captação, tratamento e distribuição de água e esgoto;
X – indústrias que utilizem equipamentos industriais como fornos, tanques de combustíveis, dutos e assemelhados;
XI – áreas de lazer descobertas com quadras, piscinas e assemelhados;
XII – hortas urbanas, quando caracterizadas como atividade econômica, nos termos incentivados pelo Plano Diretor Estratégico.
§ 1º As atividades relacionadas no “caput” deste artigo afastam a notificação apenas quando inerentes e predominantes relativamente ao uso licenciado para o imóvel.
§ 2º O estacionamento rotativo de veículos não será considerado como atividade econômica que não necessita de edificação.
§ 3º Outras atividades poderão ser reconhecidas mediante deliberação da Câmara Técnica de Legislação Urbanística – CTLU.
Assim, o termo “não utilizado” disposto no Estatuto da Cidade possui mais de um sentido: (i) o primeiro, de caráter técnico, em relação à verificação do cumprimento de seu coeficiente de aproveitamento e taxa de ocupação; e (ii) o segundo, de caráter contextual, em que se verifica o uso e ocupação efetiva por meio da atividade empregada ao imóvel pelo seu proprietário.
Portanto, caso o Poder Público identifique que determinado imóvel esteja descumprindo sua função social por estar não edificado, subutilizado ou não utilizado, será expedida notificação ao proprietário para que este protocole nos órgãos municipais competentes projeto de parcelamento ou de edificação ou, se for o caso, de proceder com ações de ocupação do imóvel.
Contudo, na prática, é possível verificar a existência de desafios para que as cidades brasileiras realizem este procedimento. O primeiro município brasileiro a regular o tema foi São Paulo, a partir de estudos conduzidos internamente pelo executivo municipal para a formulação do Plano Diretor Estratégico de 2014, em que foram diagnosticadas dificuldades para a aplicação da PEUC prevista no Plano Diretor de 2002.
Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios em São Paulo
Disponível em: Prefeitura da Cidade de São Paulo. Departamento de Controle da Função Social da Propriedade. 2014. Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2014/05/Guia-adaptado-imprensa.pdf. Acesso em 30 outubro 2024.
“O PEUC deve ser concebido e, principalmente, aplicado de forma criteriosa e sistemática, seja porque são raras as experiências já havidas e documentadas em outras cidades brasileiras, seja porque o objetivo final não é a punição, e sim a adequação do exercício da propriedade. O primeiro grande desafio encontrado é listar e qualificar os imóveis sujeitos à notificação, observados os critérios constitucionais, legais e regulamentares expostos acima. O ponto de partida são os dados cadastrais da própria Prefeitura, tanto no que tange à situação dos imóveis, quanto à identificação dos proprietários. A partir daí, deve-se afinar e complementar as informações com outras fontes, como: as matrículas dos cartórios de registro de imóveis, os dados de juntas comerciais, imagens aéreas, e, inclusive, diligências e vistorias físicas aos imóveis.
Particularmente quanto aos imóveis não utilizados (aqueles que possuem edificação sem nenhum uso), essa tarefa torna-se um pouco mais complexa, obrigando a Administração a buscar ainda mais indícios, como, por exemplo, o uso efetivo (ou não) de serviços públicos (fornecimento de água, energia elétrica e GLP), e até reclamações de vizinhos, tudo combinado com diligências apuradas e vistorias in loco que confirmem categoricamente esta situação.
Após a identificação, tem início a etapa de notificação, que deve ser realizada por funcionário do Poder Público ao proprietário do imóvel, ou, em caso de pessoa jurídica, a quem detenha poderes de gerência ou administração. O recurso da correspondência registrada só é aceita caso estes residam fora do município. Se frustrada por três vezes a tentativa de notificação, a publicação por edital é admitida tanto pelo Estatuto da Cidade quanto pela legislação municipal.
Uma vez notificado, e conforme anotado acima, o proprietário terá prazos para cumprimento da obrigação, ou para o protocolo do projeto de construção (no caso de terrenos não edificados) ou o uso efetivo (imóveis não utilizados e subutilizados), comunicando à Administração Pública acerca dessas providências. Em todas essas situações, e a fim de evitar que a aplicação do instrumento se torne inócua, o órgão público responsável deverá acompanhar a efetividade de tais ações. Transpostos para a escala de São Paulo, a maior cidade do Hemisfério Sul, esses problemas ganham uma complexidade ainda maior, o que deve ser superado com ferramentas, planejamento e ação também diferenciados”.
Levando em consideração o diagnóstico, com o intuito de estabelecer estratégias efetivas para a aplicação da PEUC, o Plano Diretor Estratégico alterou a Lei Municipal nº 15.234, de 1º de julho de 2010 e regulamentou o dispositivo por meio do Decreto Municipal nº 55.638/2014, que dispõe sobre a aplicação dos instrumentos para o cumprimento da função social da propriedade na cidade de São Paulo, definindo áreas prioritárias para que a Prefeitura realizasse as etapas necessárias para a aplicação da PEUC: Zonas Especiais de Interesse Social 2, 3 e 5; áreas de Operações Urbanas Consorciadas; áreas de influência dos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana; regiões das Subprefeituras da Sé e da Mooca; áreas localizadas nas Macroáreas de Urbanização Consolidada e de Qualificação da Urbanização e na Macroárea de Redução da Vulnerabilidade Urbana, exclusivamente para glebas ou lotes com mais de 20.000m.
Com esta estratégia, até dezembro de 2020 haviam sido notificados pela Prefeitura de São Paulo 1.746 imóveis que não estavam cumprindo a sua função social.
Prefeitura da Cidade de São Paulo. Gestão Urbana SP. Monitoramento do PDE. Disponível em: < https://monitoramentopde.gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/?_ga=2.82272214.135298119.1730476207-1146346470.1634677405&_gl=1%2A1d1hbgk%2A_ga%2AMTE0NjM0NjQ3MC4xNjM0Njc3NDA1%2A_ga_S5NE6F20ZB%2AMTczMDUwMzk0Ni4xNC4wLjE3MzA1MDM5NDYuMC4wLjA.%2A_ga_0BWCVT4KZD%2AMTczMDUwMzk0Ni4zNy4wLjE3MzA1MDM5NDYuMC4wLjA.>. Acesso em 01 novembro 2024.
Com este diagnóstico, a Prefeitura de São Paulo pôde aplicar o instrumento da PEUC aos proprietários dos imóveis. O quadro abaixo consolida as notificações emitidas pela Prefeitura entre 2014 e 2020:
Os mapas a seguir, identificam os lugares da cidade em que a Prefeitura aplicou o instrumento da PEUC, por meio das notificações, até 2020:
Até 2020, do universo de 1.746 imóveis somente 175 atenderam integralmente à notificação realizada pela Prefeitura de São Paulo:
Destes 175 imóveis, a tabela a seguir apresenta a categoria em que cada um foi enquadrado e o ano em que atenderam integralmente a notificação, cumprindo a função social de sua propriedade:
Vale destacar que o Estatuto da Cidade (art. 5º, §4º) estabelece o prazo de 1 ano a partir da notificação para que o proprietário protocole projeto no órgão municipal competente e 2 anos a partir da aprovação do projeto, para iniciar as obras do empreendimento.
Descumprido estes prazos, o município poderá aplicar o instrumento do IPTU progressivo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de 5 anos consecutivos e, se após este prazo o proprietário ainda não atender a sua obrigação de parcelar, edificar ou utilizar o imóvel, poderá ser mantida a cobrança da alíquota máxima do IPTU progressivo, que não poderá ser maior que 15% do valor original do imposto, conforme o art. 7º do Estatuto da Cidade.
Continuando a utilizar a cidade de São Paulo como caso de estudo, o IPTU progressivo é regulamentado pelo Decreto Municipal nº 56.589, de 10 de novembro de 2015 na cidade de São Paulo e aplicado da seguinte forma:
Relembrando, a CF/88, seu art. 182, §4º, inciso III dispõe que a desapropriação-sanção somente se efetiva “com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal” (art. 182, §4º, inciso III). O Estatuto da Cidade reforça esta condição em seu art. 8º, §1º que autoriza os Municípios a procederem com a desapropriação-sanção com pagamentos em títulos da dívida pública previamente aprovados pelo Senado Federal.
Sobre a emissão de títulos da dívida pública, entre as décadas de 1970 e 1990, os estados e municípios podiam emitir títulos de suas dívidas, porém com o endividamento excessivo dos Estados e Municípios perante instituições financeiras, em 1997 a União assumiu e refinanciou grande parte dos valores devidos [2]. Para evitar a contratação de novas dívidas impagáveis, os Estados e Municípios ficaram proibidos de emitir qualquer tipo de título no mercado, com o advento da Resolução nº 43 de 2001 do Senado Federal [3] e da Lei Complementar nº 148, de 25 de novembro de 2014 [4], ficando somente a União autorizada a realizar tal operação.
Sendo assim, para aplicação da desapropriação-sanção os Municípios dependem de uma forte articulação e interlocução com a União (por meio do Ministério da Fazenda) e autorização do Senado Federal que, na realidade fática, se mostram extremamente difíceis de se materializarem.
Contudo, ainda que a desapropriação-sanção fosse realizada por determinado Município a partir da autorização do Senado Federal para a emissão de títulos da dívida pública para constituir a indenização devida pelo Poder Público para a transferência de propriedade do bem, resta o questionamento se este instrumento possui, de fato, caráter sancionatório àquele que não cumpre a função social de sua propriedade.
Em outros países, como na Espanha, a cidade de Barcelona possui regras de cumprimento da função social da propriedade extremamente rígidas.
Como exemplo, cita-se o caso de imóveis localizados em região economicamente valorizada e próxima a pontos turísticos da cidade de Barcelona (Casa Milá e Battló, projetadas pelo arquiteto espanhol Antoni Gaudí), de propriedade de fundos de investimento que mantinham os imóveis desocupados há mais de 6 anos, negligenciando o uso adequado de sua propriedade.
Em resposta, a prefeitura de Barcelona aplicou uma multa de 2,4 milhões de euros (aproximadamente 13 milhões de reais) à empresa como parte de uma política pública contra imóveis desocupados sem justificativa e que não cumprem sua função habitacional [5].
A medida integra uma política recente de Barcelona para combater a escassez habitacional e incentivar o uso eficiente dos imóveis na cidade.
Esta iniciativa de Barcelona está prevista em sua Lei de Arrendamentos Urbanos (LAU) e pelo plano municipal “Pla pel Dret a l’Habitatge”, ativo desde 2016 com término previsto para 2025. A legislação autoriza a prefeitura intervir em imóveis desocupados, aplicando multas e/ou realizando desapropriações para a construção de um estoque público de edifícios destinados à população de baixa renda por meio de locação social na região central da cidade [6].
Barcelona multa em quase três milhões de euros dois fundos por manterem imóveis vazios
As duas propriedades estão localizadas no Eixample, estão desocupadas há mais de seis anos e somam 24 moradias
Disponível em: EjePrime, 4 de março de 2019: http://www.ejeprime.com/mercado/barcelona-multa-con-casi-tres-millones-de-euros-a-dos-fondos-por-tener-pisos-vacios.
Acesso em 30 jan. 2025 (tradução livre)
A prefeita de Barcelona, Ada Colau, multou dois fundos de investimento em 2,8 milhões de euros por manterem duas propriedades vazias há mais de seis anos nas ruas Aragó e Pau Claris, no distrito do Eixample. O critério utilizado para aplicar a multa foi a Lei do Direito à Moradia de 2007, que prevê sanções pelo mau uso da habitação, considerada um bem de função social e que deve estar ocupada. De acordo com a legislação se um imóvel permanecer vazio por mais de dois anos, seu proprietário pode ser penalizado. No total, os edifícios somam 24 moradias.
“Não aplicamos essas multas para arrecadar, mas para que entendam a lógica da necessidade de colocar um bem essencial em uso”, explicou Colau durante uma entrevista no programa Aquí Cuní, da Ser Catalunya.
A prefeita defendeu sua política habitacional e lembrou medidas adotadas, como a construção de 70 empreendimentos, a obrigatoriedade imposta aos promotores privados de destinar 30% das unidades à habitação social e a vinculação de subsídios para reformas à manutenção dos preços dos aluguéis.
A multa pode ser reduzida se os proprietários cederem os imóveis ao município
As sanções aos dois proprietários das propriedades no Eixample foram viabilizadas após a criação da Unidade de Disciplina em Habitação da prefeitura, que busca corrigir práticas que violam a legislação habitacional. As multas por manter imóveis desocupados por mais de dois anos variam entre 90.000 e 900.000 euros, dependendo da gravidade da irregularidade e da permanência da desocupação.
As penalidades poderiam ser reduzidas caso os proprietários concordassem em ceder os imóveis à prefeitura para inclusão no programa de habitação social. De fato, segundo fontes municipais, no caso do edifício da rua Aragó, a prefeitura já havia solicitado à propriedade a cessão das 17 moradias, sem obter resposta. O proprietário havia solicitado, em 2015, uma licença para transformar o imóvel em hotel, mas o pedido foi negado, e atualmente está tramitando uma autorização para construir apartamentos. Ainda no caso da rua Aragó, a prefeitura afirmou ter oferecido alternativas para que as unidades habitacionais sejam destinadas ao uso social.
Voltando ao contexto nacional, a tabela a seguir resume o conteúdo dos dispositivos do Estatuto da Cidade que tratam dos instrumentos apresentados acima:
PEUC | IPTU Progressivo | Desapropriação-sanção |
Seção II Do Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios Art.5o Lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para implementação da referida obrigação. §1o Considera-se subutilizado o imóvel: I – cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente; II – (VETADO) § 2o O proprietário será notificado pelo Poder Executivo municipal para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser averbada no cartório de registro de imóveis. §3o A notificação far-se-á: I – por funcionário do órgão competente do Poder Público municipal, ao proprietário do imóvel ou, no caso de este ser pessoa jurídica, a quem tenha poderes de gerência geral ou administração; II – por edital quando frustrada, por três vezes, a tentativa de notificação na forma prevista pelo inciso I. §4o Os prazos a que se refere o caput não poderão ser inferiores a: I – um ano, a partir da notificação, para que seja protocolado o projeto no órgão municipal competente; II – dois anos, a partir da aprovação do projeto, para iniciar as obras do empreendimento. §5o Em empreendimentos de grande porte, em caráter excepcional, a lei municipal específica a que se refere o caput poderá prever a conclusão em etapas, assegurando-se que o projeto aprovado compreenda o empreendimento como um todo. Art.6o A transmissão do imóvel, por ato intervivos ou causa mortis, posterior à data da notificação, transfere as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização previstas no art. 5o desta Lei, sem interrupção de quaisquer prazos. | Seção III Do IPTU progressivo no tempo Art.7o Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5o desta Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no §5o do art.5o desta Lei, o Município procederá à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos. §1o O valor da alíquota a ser aplicado a cada ano será fixado na lei específica a que se refere o caput do art. 5o desta Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de quinze por cento. §2o Caso a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não esteja atendida em cinco anos, o Município manterá a cobrança pela alíquota máxima, até que se cumpra a referida obrigação, garantida a prerrogativa prevista no art. 8o. §3o É vedada a concessão de isenções ou de anistia relativas à tributação progressiva de que trata este artigo. | Seção IV Da desapropriação com pagamento em títulos Art.8o Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública. §1o Os títulos da dívida pública terão prévia aprovação pelo Senado Federal e serão resgatados no prazo de até dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais de seis por cento ao ano. § 2o O valor real da indenização: I – refletirá o valor da base de cálculo do IPTU, descontado o montante incorporado em função de obras realizadas pelo Poder Público na área onde o mesmo se localiza após a notificação de que trata o § 2o do art. 5o desta Lei; II – não computará expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios. § 3o Os títulos de que trata este artigo não terão poder liberatório para pagamento de tributos. § 4o O Município procederá ao adequado aproveitamento do imóvel no prazo máximo de cinco anos, contado a partir da sua incorporação ao patrimônio público. § 5o O aproveitamento do imóvel poderá ser efetivado diretamente pelo Poder Público ou por meio de alienação ou concessão a terceiros, observando-se, nesses casos, o devido procedimento licitatório. § 6o Ficam mantidas para o adquirente de imóvel nos termos do §5o as mesmas obrigações de parcelamento, edificação ou utilização previstas no art. 5o desta Lei. |
As dificuldades para a aplicação da desapropriação-sanção impulsionaram Municípios – como o Rio de Janeiro e São Paulo – a desenvolverem estratégias alternativas para desapropriar imóveis que não cumprem a sua função social, por meio da chamada “desapropriação por hasta pública”.
Em São Paulo, a novidade surgiu por meio da revisão intermediária do Plano Diretor Estratégico ocorrida em 2023 e com a posterior edição do Decreto Municipal nº 63.488, de 11 de junho de 2024. Meses depois o Rio de Janeiro viveu experiência semelhante, regulamentando a modalidade em seu Decreto Municipal nº 54.234, de 8 de abril de 2024, depois da inclusão do instituto na revisão de seu Plano Diretor, ocorrida no início de 2024.
A “desapropriação por hasta pública”, em síntese, é o procedimento no qual o Poder Público realiza a desapropriação de imóvel que não cumpre a sua função social por meio de leilão público, cujo adquirente deverá destinar o bem para determinada finalidade pré-estabelecida, como programas habitacionais e equipamentos públicos.
Na cidade de São Paulo, para que a desapropriação por hasta pública ocorra, o Executivo deverá publicar decreto de utilidade pública ou interesse social indicando o imóvel a ser leiloado, tendo como fundamento a intervenção necessária à utilização do bem desapropriado, que deverá ser realizada pelo adquirente do imóvel, conforme Decreto nº 63.488/2024.
Decreto do Município de São Paulo n.º 63.488/2024
Art. 2º O Poder Executivo Municipal, por intermédio da sua Administração Pública Direta e Indireta ou de seus delegatários, poderá promover a desapropriação por hasta pública na hipótese de imóveis descumpridores da função social da propriedade ou para fins de regularização fundiária de interesse social – REURB-S.
Art. 3º A desapropriação por hasta pública será precedida de procedimento administrativo que reconheça a pertinência da utilização do instrumento, tendo em vista a política pública em fase de planejamento ou implementação por este Município.
§1º No procedimento administrativo previsto no “caput” deste artigo, além das informações pertinentes à respectiva política pública, será determinada a notificação dos proprietários dos imóveis a respeito da intenção de desapropriar.
§2º A notificação prevista no § 1º deste artigo deverá será instruída com informações atualizadas sobre dívida tributária incidente sobre o imóvel, bem como acerca do valor da avaliação.
§3º A notificação será realizada de forma pessoal ou, no caso de não ser encontrado o titular do bem em diligência registrada no respectivo processo da desapropriação por hasta pública, será realizada por edital publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo.
§4º O interessado poderá apresentar impugnação no prazo de 15 (quinze) dias, contados a partir do primeiro dia útil subsequente ao recebimento da notificação.
Art. 4º O decreto de utilidade pública ou interesse social para a desapropriação por hasta pública terá como fundamento a intervenção necessária à utilização do bem desapropriado, vinculando a atuação administrativa e a atuação do particular adquirente do imóvel.
Já no Rio de Janeiro, a hipótese de aplicação do instrumento se aplica a imóveis declarados de interesse público para “renovação urbana” ou regularização fundiária, de acordo com o Decreto Municipal nº 54.234/2024.
Decreto do Município do Rio de Janeiro n.º 54.234/2024
Art. 2º Considera-se desapropriação por hasta pública o procedimento que tem por objetivo a promoção da desapropriação de imóveis urbanos declarados de interesse público para fins de renovação urbana e/ou regularização fundiária, que serão alienados na modalidade leilão, nos termos da Lei nº 14.133/2021, a fim de que o adquirente execute as medidas necessárias à renovação urbana e/ou regularização fundiária estipuladas no Decreto expropriatório.
§ 1º Considera-se renovação urbana a operação de parcelamento, reparcelamento, construção, reforma ou ampliação de imóvel indispensável para a implementação do plano diretor ou de outro plano ou projeto urbanístico dele derivado.
§ 2º Considera-se regularização fundiária urbana o conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.
Recentemente, em julho de 2024, a Prefeitura do Rio de Janeiro publicou edital, na modalidade leilão, do tipo maior lance para “alienação, sob condição suspensiva, do domínio útil” do imóvel popularmente conhecido como “Terreno do Gasômetro” para a implantação de equipamento esportivo [8], indicado no mapa abaixo, em vermelho:
Prefeitura vai desapropriar e transformar em habitação social imóveis que não cumpriram a função social no centro de SP
Disponível em: Prefeitura Municipal de São Paulo. Prefeitura vai desapropriar e transformar em habitação social imóveis que não cumpriram a função social no centro de SP. Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, 2024. Disponível em: https://capital.sp.gov.br/web/licenciamento/w/noticias/367734.
Acesso em: 30 out. 2024.
“Cinco prédios ociosos e notificados por descumprimento da função social receberão moradias para famílias de baixa renda; Prefeitura também regulamenta desapropriação por meio de leilões.
Para melhorar a qualidade de vida de quem vive ou trabalha no entorno de edificações ou áreas ociosas, a Prefeitura de São Paulo anuncia nesta terça-feira (11) a desapropriação dos primeiros cinco imóveis na região central que serão transformados em Habitação de Interesse Social (HIS), ou seja, receberão moradias para famílias com renda mensal de até seis salários-mínimos. Esses imóveis, notificados por não cumprirem sua função social, serão desapropriados com recursos do Tesouro Municipal e repassados à Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB-SP). A Prefeitura também publica decreto que permite a desapropriação de outros imóveis ociosos por meio de leilões, ação conhecida como “hasta pública”.
Os cinco edifícios foram selecionados pela Prefeitura por estarem localizados no centro histórico e pela característica das edificações, favoráveis à implementação de unidades habitacionais. Esses edifícios também foram notificados por mais de cinco anos pela Secretaria de Urbanismo e Licenciamento para que o proprietário desse uso aos imóveis. Durante esse período, o valor do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) foi majorado conforme a aplicação do IPTU Progressivo. Em alguns casos, a dívida do IPTU chega a 58% do valor venal do imóvel. Ou seja, um imóvel com custo estimado de R$ 12 milhões tem dívida de IPTU de R$ 7 milhões.
Trata-se de uma alternativa encontrada pela Prefeitura de São Paulo para das uso a imóveis ociosos (não utilizados, não edificados ou subutilizados) notificados pelo Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsória (PEUC) e que ingressaram na 5ª alíquota do IPTU Progressivo. Atualmente, há 184 imóveis nesta situação na cidade, sendo 164 somente na região central.
Além dessa iniciativa, a Prefeitura também publicará decreto que regulamenta a desapropriação por hasta pública. Isso significa a possibilidade dos imóveis que não cumprem a função social serem leiloados pelo poder público. Nestes casos, o valor obtido é integralmente revertido para o pagamento ao proprietário do imóvel desapropriado e para o próprio Munícipio referente aos débitos do imóvel com o poder público. A Prefeitura lançará, em breve, chamamento público para o leilão dos imóveis.
A hasta pública é um instrumento do planejamento urbano cuja possibilidade de desapropriação passou a ser prevista na Revisão Intermediária do Plano Diretor Estratégico (Lei 17.975/2023). A ação permite que imóveis notificados por não cumprirem a sua função social sejam leiloados pela gestão municipal e recebam políticas públicas, como programas habitacionais e equipamentos públicos.
Até a aprovação da nova redação do Plano Diretor, a única forma de desapropriação de imóveis na 5° alíquota era com pagamento mediante a emissão de títulos da dívida pública, que depende da autorização do Senado Federal. No entanto, até o presente momento não existe autorização do Senado para a emissão desses títulos. Dessa forma, a Prefeitura encontrou uma alternativa para desapropriação de imóveis na 5 ° alíquota do IPTU Progressivo. (…).”
Diante da manifestação da municipalidade, fica clara a finalidade por detrás do desenvolvimento da estratégia de desapropriação por hasta pública: a efetivação dos objetivos e finalidades do instrumento da desapropriação-sanção, impossibilitados diante da ausência de autorização do Senado Federal para a emissão de títulos da dívida pública pelo Município.
Não por acaso, a Prefeitura sinaliza que a aplicação da estratégia será prioritária na região central da cidade, alinhando-se a demais políticas e programas com enfoque na revitalização e ocupação da região por meio do fomento ao retrofit, e incentivo a atividades econômicas de lazer, cultural e artística – como o Programa Requalifica Centro (Lei Municipal nº 17.577, de 20 de julho de 2021), a criação do Triângulo SP (Lei Municipal nº 17. 332, de 24 de março de 2020) e a reformulação do Programa de Intervenção Urbana (PIU) do Setor Central (Lei Municipal nº17.844, de 14 de setembro de 2022 alterada pela Lei Municipal nº 18.156, de 17 de julho de 2024).
Assim, a desapropriação por hasta pública revela uma tendência com potencial para ser replicada por outras cidades brasileiras. Contudo, há a possibilidade de a medida desencadear debates quanto a sua legalidade e competência municipal para regular sobre desapropriação.
Considera-se que a inovação será mais rapidamente recepcionada por Municípios em que há políticas públicas de revitalização de áreas específicas da cidade, por meio da destinação de imóveis existentes que não cumprem com a sua a função social da propriedade, visando a sua destinação para finalidades de interesse público, incluindo a “reativação” dos espaços em que estas propriedades se localizam.De qualquer forma, é inegável o valor da inovação pública dos entes municipais para a criação de alternativas indutoras da função social da propriedade, com o objetivo de impulsionar transformações urgentes em áreas específicas das cidades, conforme as demandas locais (provisão de moradia para a população de baixa renda, construção de equipamentos públicos de educação, cultura, lazer, desportivos, saúde e assistência social) e diversificação do uso do solo urbano (criação de parques e jardins urbanos, hortas urbanas, viabilização de espaços abertos de convivência pública, coworkings públicos, dentre outros). Certamente, a estratégia merece atenção e reconhecimento de seu potencial.
[1] ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. “Dos Instrumentos da Política Urbana”, in Estatuto da Cidade comentado: Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Coord. Odete Medauar e Fernando Dias Menezes de Almeida. São Paulo, E. Revista dos Tribunais. 2004.
[2] Prefeitura da Cidade de São Paulo. Gestão Urbana SP. Plano Diretor Estratégico Ilustrado. Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/marco-regulatorio/plano-diretor/estrategias-ilustradas/. Acesso em 01 novembro 2024.
[3] O refinanciamento das dívidas dos estados pela União ocorreu por meio do Programa de Apoio à Reestruturação e Ajuste Fiscal dos Estados – PAF, previsto na Lei nº 9.496/97, e veio associado a um conjunto de programas de ajuste fiscal e privatização do patrimônio dos estados (PED – Programa Estadual de Desestatização), além do saneamento das instituições financeiras (Proes – Programa de Incentivo à Redução da Presença do Setor Público Estadual na Atividade Financeira Bancária).
[4] Art. 5º É vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) II – assunção direta de compromisso, confissão de dívida ou operação assemelhada, com fornecedor de bens, mercadorias ou serviços, mediante emissão, aceite ou aval de títulos de crédito, não se aplicando esta vedação a empresas estatais dependentes; (…)
[5] Art. 11. É vedada aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a emissão de títulos da dívida pública mobiliária.
[6] EJEPRIME. Barcelona multa com casi três millones de euros a dos fondos por tener pisos vacíos. Eje Prime, 4 mar. 2019. Disponível em: https://www.ejeprime.com/mercado/barcelona-multa-con-casi-tres-millones-de-euros-a-dos-fondos-por-tener-pisos-vacios. Acesso em 30 jan. 2025.
[7] BARCELONA HABITATGE. Crece el parque de vivienda pública de alquiler social y asequible en el barrio de Gràcia con la compra de un nuevo edificio. Habitatge Barcelona, 26 set. 2023. Disponível em: https://www.habitatge.barcelona/es/noticia/crece-el-parque-de-vivienda-publica-de-alquiler-social-y-asequible-en-el-barrio-de-gracia-con-la-compra-de-un-nuevo-edificio_1161530. Acesso em: 30 out. 2024.
[8] Prefeitura do Município do Rio de Janeiro. Processo Administrativo nº SMG-PRO-2024/00057.1. Disponível em: https://licitaimoveis.rio/imoveis/leilao_alienacao-do-dominio-util-do-imovel-_-avenida-sao-cristovao-no-1-200/ Acesso em 30 outubro 2024.
[9] Prefeitura do Município do Rio de Janeiro. Edital de Licitação SMG-PRO-2024/00057.01. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1cvJP_DPht5oQMnFVzozk_JfSK9B-SU-x. Acesso em 30 outubro 2024.
3. DEBATENDO
- Quais são os atores envolvidos no processo de desapropriação por utilidade e necessidade pública? E por interesse social?
- Somente o Poder Público pode desapropriar? O que diz o art. 3º do Decreto-Lei nº 3.365/1941? No que as duas se diferenciam?
- Na sua opinião, quais os motivos destes instrumentos serem tão semelhantes?
- Considerando que há desigualdades e déficit de acesso a propriedade tanto no contexto urbano quanto rural, porque a desapropriação para a efetivação de políticas de “reforma agrária” se aplica somente no contexto rural?
- Para além dos critérios constitucionais do art. 186 poderiam ser adicionados outros para a verificação do descumprimento da função social da propriedade rural?
- “Todo o proprietário rural possui a obrigação de cumprir a função social de sua propriedade, ficando autorizado o Estado a desapropriá-lo, mediante indenização, como medida sancionatória”. Você concorda com esta afirmação?
- A partir do conhecimento obtido até o momento sobre o instrumento da desapropriação, ele poderia ser aplicado para o cumprimento da função social da propriedade no contexto urbano? Faz sentido adotar os mesmos critérios para a propriedade urbana?
- A função social da propriedade só existe no contexto rural? Como ela pode ser identificada no contexto urbano?
- O que você entende por “funções sociais da cidade”? Dê exemplos.
- No contexto urbano, um imóvel não edificado pode estar cumprindo a “função social da propriedade”? Por quê?
- Considerando especificamente os instrumentos da desapropriação para fins de reforma agrária e a desapropriação de que trata o art. 182 da CF/88, a legislação específica de cada uma (Lei Federal nº 8.629/1993 e Estatuto da Cidade) são suficientes para a sua aplicação imediata pelo Poder Público? Se sim, justifique. Se não, o que parece estar faltando?
- Tendo em vista o conteúdo do art. 22 da CF/88 sobre a competência da União para legislar sobre desapropriação, na sua opinião, o comando do art. 182 é contraditório? Se sim, por quê? Se não, qual o limite da legislação municipal para dispor sobre a desapropriação? Pode o Município inovar no tema da desapropriação? E no caso da desapropriação para o cumprimento da função social da propriedade?
- Compare os diferentes tipos de desapropriação apresentados até o momento, em relação, ao menos, aos seguintes aspectos: (i) Competência, (ii) Objetivo, (ii) Requisitos ou Premissas e (iv) Interlocutores do processo de desapropriação. Pesquise um caso de desapropriação e explique a qual modalidade do instrumento se refere, identificando os aspectos acima.
- Na sua opinião, considerando o cenário da cidade de São Paulo, quais os motivos para um proprietário preferir a aplicação do IPTU progressivo a promover o uso adequado de seu imóvel conforme a função social da propriedade?
- A criação da “desapropriação por hasta pública” por municípios brasileiros é possível diante o conteúdo do art. 22 da CF/88? Por quê?
- A “desapropriação por hasta pública” pode ser criada por meio de decreto do Poder Executivo? Por quê?
- Na sua opinião, a “desapropriação por hasta pública” confronta outra disposição constitucional ou legal referente ao direito à propriedade? Qual?
- Na sua opinião, a “desapropriação por hasta pública” é mais semelhante à (i) desapropriação-sanção ou à (ii) desapropriação por utilidade e necessidade pública ou interesse social? Por quê?
- Você concorda com a seguinte afirmação: “a obrigatoriedade da indenização do privado para a efetivação da desapropriação-sanção esvazia o seu caráter sancionatório”? Por quê?
- Analise o Termo de Referência anexo ao Edital de Licitação SMCG nº 001/2024 da Prefeitura do Rio de Janeiro (https://drive.google.com/drive/folders/1cvJP_DPht5oQMnFVzozk_JfSK9B-SU-x) cujo objeto é o leilão do imóvel popularmente conhecido como “Terreno do Gasômetro” declarado de utilidade e interesse público por meio do Decreto Municipal nº 54.691/24 e responda as seguintes perguntas:
- Considerando que a regulamentação da “desapropriação por hasta pública” exige a publicação de decreto de declaração de utilidade e interesse público como condição obrigatória para a ocorrência do leilão, aplica-se a esta modalidade as disposições do Decreto-Lei nº 3.365/1941? Justifique sua resposta.
- A destinação definida pela Prefeitura do Rio de Janeiro ao imóvel leiloado enquadra-se nas hipóteses de “utilidade e interesse público” de que trata a Decreto-Lei nº 3.365/1941? Este enquadramento é obrigatório para garantir a legalidade da licitação em comento? Por quê?
- Quais são as demais especificações e obrigações do Termo de Referência anexo ao Edital impostas ao privado vencedor do leilão, para além da construção do equipamento público esportivo? Elas são necessárias para o cumprimento da função social da propriedade do terreno leiloado? Por quê?
4. APROFUNDANDO
Para o aprofundamento dos temas apresentados nesta aula, poderão ser consultadas as seguintes bibliografias:
ALFONSIN, Betânia de Moraes. “Dos Instrumentos da Política Urbana”, in Estatuto da Cidade comentado: Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Org. Liana Portilho Mattos, Belo Horizonte, Mandamentos, 2002. LOUREIRO, Francisco Eduardo. A Propriedade Como Relação Jurídica Complexa. Renovar, 2002.
ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. “Dos Instrumentos da Política Urbana”, in Estatuto da Cidade comentado: Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Coord. Odete Medauar e Fernando Dias Menezes de Almeida. São Paulo, E. Revista dos Tribunais. 2004.
CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da; NERY, Ana Rita de Figueiredo; ARAÚJO, Alexandre Fuchs de (coord.). Direito urbanístico: ensaios por uma cidade sustentável, da formação de políticas à sua aplicação. São Paulo: Quartier Latin, 2016.
DALLARI, Adilson Abreu. Desapropriação para Fins Urbanísticos. Rio de Janeiro, Forense, 1981.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.
LEVIN, Alexandre; HUMBERT, Georges Louis Hage. Curso de direito urbanístico e das cidades sustentáveis: incluindo novo marco do saneamento, estatuto das metrópoles, regularização fundiária, estatuto da cidade. 2. ed. atual., rev. e ampl. Rio de Janeiro: GZ, 2021.
LORA-TAMAYO VALLVÉ, Marta; VAQUER CABALLERÍA, Marcos. El Derecho Territorial y Urbano en Latinoamérica: Una aproximación. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2024.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. Editora Fórum,
21ª Edição, 2018.
MEDAUAR, Odete (coord.) et al. Direito urbanístico: estudos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. 275 p. (Fórum Conhecimento Jurídico).
MEDAUAR, Odete. “Diretrizes Gerais”, in Estatuto da Cidade comentado: Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Coord. Odete Medauar e Fernando Dias Menezes de Almeida. São Paulo, E. Revista dos Tribunais. 2004.
PINTO JÚNIOR, Joaquim, M.; FARIAS, Valdez A. Função Social da
Propriedade: Dimensões Ambiental e Trabalhista. NEAD Debate.
PINTO, Victor Carvalho. “Da desapropriação com pagamento em títulos”, in Estatuto da Cidade comentado: Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Org. Liana Portilho Mattos, Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
PINTO, Victor Carvalho. “Do IPTU progressivo no tempo”, in Estatuto da Cidade comentado: Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Org. Liana Portilho Mattos, Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
SAULE JÚNIOR, Nelson. “Do Plano Diretor”, in Estatuto da Cidade comentado: Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Org. Liana Portilho Mattos, Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006.
SOUZA, Luciana Correia Gaspar. Município e poder normativo na criação de novos instrumentos urbanísticos: o Estatuto da cidade como normativa do direito público por uma política urbana. Curitiba: Juruá, 2014.
TAVOLARI, Bianca. Direito à Cidade: Uma Trajetória Conceitual. Novos Estudos CEBRAP. Vol. 35, N.1., 2016.
ANEXO – ATIVIDADE PRÁTICA
Caso Município de Campinas
Em 2023, após fortes chuvas, a Prefeitura de Campinas publicou o Decreto Municipal nº 22.618, de 21 de janeiro de 2023, declarando emergência no Município e declarando, como de utilidade pública “propriedades particulares” a serem desapropriadas:
Art. 1º Fica declarada a Situação de Emergência nas áreas do Município registradas no Formulário de Informações do Desastre – FIDE e demais documentos, em virtude do desastre classificado e codificado como Chuvas Intensas, conforme o art. 3º da Portaria MDR nº 260, de 2022.
Art. 2º Autoriza-se a mobilização de todos os órgãos municipais para atuarem sob a coordenação do Gabinete do Prefeito, nas ações de resposta ao desastre e reconstrução das áreas afetadas.
Art. 3º De acordo com o estabelecido nos incisos XI e XXV do art. 5º da Constituição Federal, autoriza-se as autoridades administrativas e os agentes do sistema municipal de proteção e defesa civil, diretamente responsáveis pelas ações de resposta aos desastres, em caso de risco iminente, a:
I – adentrar em residências para prestar socorro ou para determinar a pronta evacuação; II – usar de p.ropriedade particular, no caso de iminente perigo público, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.
Parágrafo único. Será responsabilizado o agente do sistema municipal de proteção e defesa civil ou autoridade administrativa que se omitir de suas obrigações, relacionadas com a segurança global da população.
Art. 4º De acordo com o estabelecido no art. 5º do Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, autoriza-se o início de processos de desapropriação, por utilidade pública, de propriedades particulares comprovadamente localizadas em áreas de risco de desastre.
§1º No processo de desapropriação, deverão ser consideradas a depreciação e a desvalorização que ocorrem em propriedades localizadas em áreas inseguras.
§ 2º Sempre que possível, essas propriedades serão trocadas por outras situadas em áreas seguras, e o processo de desmontagem e de reconstrução das edificações, em locais seguros, será apoiado pela comunidade.
(…)
Perguntas para Debate:
- Considerando as regras do Decreto-Lei 3.365/1941, o decreto de Campinas está em conformidade com os procedimentos previstos na legislação?
- Na sua opinião, a utilização do termo “propriedades particulares comprovadamente localizadas em áreas de risco de desastre” é adequado/suficiente para que o Município realize a desapropriação? Poderia ser objeto de questionamento (administrativo ou judicial)? Sob qual fundamento?
- Considerando o caso de situação emergencial da cidade e o contexto de deslizamentos e fortes chuvas, eventuais falhas formais do decreto poderiam ser convalidadas à luz das regras aplicáveis aos atos administrativos?
- Para a definição da indenização “justa” devida ao particular, é possível a aplicação de critérios de “desvalorização” e “depreciação” para o seu cálculo?
Caso Edifício Martinelli
Considerando o conteúdo apresentado, com enfoque e destaque no caráter sancionatório do instrumento da desapropriação-sanção, ao final do conteúdo programado poderá ser apresentado o caso de estudo Município de São Paulo (Edifício Martinelli, localizado na região central da cidade), iniciando com as seguintes perguntas:
- Conhecem o Edifício Martinelli localizado no centro de São Paulo?
O Edifício Martinelli foi construído a partir de 1924 e inaugurado em 1920, idealizado pelo imigrante italiano e empresário influente Giuseppe Martinelli e projetado pelo arquiteto Vilmos Fillinger. Até 1946 era conhecido por ser o prédio mais alto de São Paulo, com 72,5 metros de altura. O empreendimento foi projetado para múltiplos usos: escritórios, comerciais, residenciais, hotelaria, restaurante, bares e cinema. A cobertura era a residência da família Martinelli, que pretendia demonstrar a segurança do edifício. Anos após a sua inauguração, Giuseppe Martinelli contraiu altas dívidas e teve que vender o prédio ao governo da Itália.
Em 1942, no contexto da 2º Guerra Mundial, o Presidente Getúlio Vargas publica o Decreto-Lei 4.166/1942 em retaliação ao Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e em resposta ao naufrágio, causado por submarinos alemães a um navio mercantil brasileiro.
Decreto Lei 4.166/1942:
Art. 1º Os bens e direitos dos súditos alemães, japoneses e italianos, pessoas físicas ou jurídicas, respondem pelo prejuízo que, para os bens e direitos do Estado Brasileiro, e para a vida, os bens e os direitos das pessoas físicas ou jurídicas brasileiras, domiciliadas ou residentes no Brasil, resultaram, ou resultarem, de atos de agressão praticados pela Alemanha, pelo Japão ou pela Itália.
Art. 11. Passam à administração do Governo Federal os bens das pessoas jurídicas de direito público que praticarem atos de agressão a que se refere o artigo 1º desta lei, bem como dos seus súditos, pessoas físicas ou jurídicas, domiciliadas no estrangeiro e que, não estejam na posse de brasileiros.
Diante do Decreto-Lei, o Edifício Martinelli é expropriado pelo Governo Federal em 1942. Mais tarde, em 1944, diversas unidades do Edifício são leiloadas pela União a privados. A partir de 1950, o Edifício entra em processo de degradação, causado pelo abandono de muitas unidades e ausência de manutenção predial.
Na década de 1970, a Prefeitura de São Paulo (comandada por Olavo Setúbal) demonstra interesse em revitalizar o Edifício Martinelli, publicando o Decreto Municipal nº 12.467/1975, que declara de utilidade pública, para fins de desapropriação, unidades do prédio, para a destinação a programa de revitalização.
Após a desapropriação, o Edifício foi restaurado internamente e externamente e reinaugurado em 1979. Em 1980 a sua fachada e volumetria passaram por processo de tombamento.
Atualmente, é a sede de Secretarias da Prefeitura de São Paulo. Contudo, diante de várias unidades e espaços do prédio sem uso e destinação, a gestão municipal lançou chamamento público para a concessão de uso do terraço, andares da cobertura e loja no térreo à iniciativa privada. A empresa vencedora foi o Grupo Tokyo SP, que passará a pagar mensalmente o valor de R$ 135.000,00 a título de outorga fixa para a Prefeitura de São Paulo.
A partir do caso, discutam coletivamente:
- Quais as diferenças entre a desapropriação realizada pelo Governo Vargas e em 1975 pela Prefeitura de São Paulo em 1970?
- A celebração de contrato de concessão de uso, para que um privado explore comercialmente as unidades do Edifício Martinelli, na sua opinião, cumpre a função social da propriedade? Por quê?
- No caso de o Edifício Martinelli ser de propriedade do Poder Público Municipal e, considerando que, por anos, o prédio ficou com andares desocupados e áreas desativadas, pode-se dizer que a Prefeitura de São Paulo estava descumprindo a função social de sua propriedade? Se sim, existem medidas que poderiam ser todas para coibir o Município? Quais? Quem poderia realizá-la?
Exercício prático:
Considerando o conteúdo apresentado, bem como o conceito e objetivo da desapropriação-sanção, em atenção ao caso da cidade de Barcelona, na Espanha e as experiências de São Paulo e Rio de Janeiro com a publicação dos decretos que regulamentam a “desapropriação por hasta pública”, elabore uma resposta completa e fundamentada para a seguinte questão:
“Imagine que você é um consultor(a) contratado(a) pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP) para o desenvolvimento de uma política pública que permita, cumulativamente, a aplicação de multa e incidência do instrumento da desapropriação-sanção sem a indenização do proprietário de imóvel que esteja descumprindo a função social da propriedade há mais de 10 anos a contar do início da aplicação da alíquota máxima do IPTU progressivo. O seu cliente questiona sobre a possibilidade e viabilidade da proposta apresentada. Qual a sua orientação?”