Roteiro de Aula

Administração Pública Impessoal?

Passado, presente e um possível futuro desse princípio.

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1. CONHECENDO O BÁSICO

Ainda que seja possível criticar os excessos no uso de princípios no direito administrativo – por vezes, verdadeiramente preguiçosos, como diria o Professor Carlos Ari Sundfeld –, fato é que alguns deles foram expressamente previstos na Constituição. Por isso, eles devem ter um significado ao estudioso do direito administrativo. É preciso, ainda, que se entenda como (e quando) eles serão aplicáveis. Tornar um princípio operacional será sempre um desafio diante dos riscos de subjetivismo. Mas isso faz parte da nossa missão.

 Esse é o caso do princípio da impessoalidade administrativa. Um princípio do caput do art. 37, da Constituição, cujo significado e aplicação ainda são um desafio. Mas ele pode ter um sentido muito relevante para a tradição patrimonialista brasileira.

Realmente, o Brasil possui uma triste tradição patrimonialista, em que as esferas pública e privada se misturam. Isso é coisa muito antiga. Quando a Família Real Portuguesa chegou ao Brasil, em 1808, cerca de 10 mil casas de moradores do Rio de Janeiro foram marcadas com “PR”, de “Príncipe Regente”. O registro implicava que os moradores deveriam deixar o imóvel para ser ocupado pelos membros da família real ou para os amigos do Rei. Com o bom humor de costume, a população carioca logo interpretou como ‘Ponha-se na Rua”. Tudo em benefício do rei e de sua corte. Mais recentemente, também no Rio de Janeiro, a frase ‘Fala com a Márcia’ ganhou os noticiários. Um ex-prefeito da cidade recomendava aos aliados que a servidora fosse procurada para agilizar cirurgias. Por conta de situações como essas, pensadoras importantes como Heloísa Starling e Lilia Moritz Schwarcz sustentam que o Brasil é uma “república inconclusa”, sendo seus maiores inimigos o patrimonialismo e a corrupção. O que fazer diante disso? A impessoalidade tem um papel fundamental na busca de solução.

Os administrativistas são, por vezes, dissonantes quanto ao significado do princípio. No entanto, é possível dizer que o princípio da impessoalidade possui duas dimensões. Na primeira, ele incorpora uma norma de igualdade (art. 37, caput, c/c art. 5º, ambos da Constituição. Na segunda, ele indica uma proibição geral de promoção pessoal (art. 37, §1º, CRFB).

A primeira vertente está ligada ao dever constitucional de isonomia. Administrar não pode ser um meio de favorecer amigos ou prejudicar inimigos. Deve haver tratamento isonômico. Mais: na melhor tradição aristotélica, a Administração Pública deve tratar cada administrado desigualmente na medida de suas desigualdades. As regras relativas ao concurso público (art. 37, II, da Constituição) e à licitação (art. 37, XXI, da Constituição), e.g., envolvem esse dever. Dever que pode, até mesmo, desdobrar-se em mecanismos de ação afirmativa. As chamadas cotas para pessoas negras, pardas, indígenas, pessoas com deficiência e transgêneros em concurso público são exemplos disso. Historicamente, esses grupos são vulnerabilizados e estigmatizados, o que justifica o estabelecimento de condições diferentes para acessar cargos públicos ou vagas em universidades públicas. Nesses casos, desigualar significa agir afirmativamente. É claro que isso pode gerar debates. Quem serão os escolhidos? Como diferenciar? O que é justificável e por quanto tempo?

A segunda dimensão da impessoalidade relaciona-se a um dever antipatrimonialista. Um norte republicanista. Por força da Constituição, a administração pública (objetiva e subjetivamente) não deve estar voltada à satisfação dos interesses dos seus gestores, como aliás reforça o §1° do mesmo artigo 37, para a publicidade. O Estado brasileiro é uma res publica – coisa pública – não um reflexo da vontade do seu rei, presidente, governadores, prefeitos ou mesmo parlamentares e outros gestores. Nesse sentido, o dever de impessoalidade é um comando de diferenciação clara entre aquilo que é público e o que é privado. Essas coisas não podem se misturar.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

A REALIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA, O DESCONFORTO COM A FALTA DE IMPESSOALIDADE UMA REAÇÃO DO STF

A falta de impessoalidade é assunto presente no debate público. Ela causa desconforto e debate. Aqui vão alguns exemplos.

Quem são as mulheres de governadores que ganharam cargos nos TCEs

Postos nos tribunais que fiscalizam as contas dos Estados precisam ser aprovados pelas Assembleias Legislativas e são vitalícios, garantindo remuneração que pode superar R$ 35 mil

Por Natália Santos, Estadão, 23 de maio de 2023

            Mulheres de governadores e ministros têm conquistado vagas nos Tribunais de Contas dos Estados (TCEs) em movimento intensificado após as eleições de 2022, ainda que não inédito. As indicações precisam de aprovação nas respectivas Assembleias Legislativas e garantem um cargo vitalício, com salário que pode superar R$ 35 mil, além de auxílios e indenizações. Esse é o caso de Simone Denarium, mulher do atual governador de Roraima Antonio Denarium (PP), que pode ter um salário de até R$ 62,5 mil por mês com tais adicionais.
 
Nos últimos meses, dentre seis nomeadas, uma acabou vetada por decisão judicial. A primeira-dama do Pará, Daniela Barbalho, teve seu nome como conselheira no Tribunal de Contas do Estado aprovado em março. Nesta segunda-feira, 22, o juiz Raimundo Rodrigues Santana, da 5ª Vara da Fazenda Pública de Belém, vetou a posse de Daniela por considerar a indicação uma grave violação aos princípios da impessoalidade, da publicidade e da moralidade e apontou que houve “nepotismo cruzado”. No cargo, Daniela teria um holerite de R$ 35 mil mais um extenso rol de benefícios e privilégios inerentes à função, a começar pela vitaliciedade do posto. (…)

‘Fala com a Márcia’: servidora da Comlurb diz que assessorava Crivella Gracas a ‘horário flexível’

Márcia Nunes ficou conhecida após divulgação de áudio do prefeito a líderes religiosos. Na gravação, ele recomendava que a funcionária fosse procurada para agilizar cirurgias

Gabriel Barreira, G1 Rio, 19 de março de 2019

A servidora Márcia Nunes foi ouvida nesta terça-feira (19) em Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Vereadores do Rio que investiga irregularidades no Sisreg – o sistema que regula o atendimento em hospitais do município.

Funcionária da companhia de lixo do Rio, a Comlurb, Márcia ganhou notoriedade no episódio que ficou conhecido como “Fala com a Márcia, em que o prefeito Marcelo Crivella (PRB) indicou o nome dela a líderes religiosos como uma forma de agilizar o atendimento na rede municipal de saúde. (…)

Há também esse debate na sociologia. Roberto Da Matta, em artigo de jornal ilustra bem o assunto, e a dificuldade que há, no Brasil, de se negar um pedido de um amigo.

Opinião | História de Pedro Honorato, o político honesto‘horário flexível’

A lenda fala de um homem diferente. Uma pessoa que não mentia, um sujeito ofensivamente honesto que tinha por nome Pedro Honorato

Roberto da Matta, Estadão, 07 de outubro de 2020

Vovô Raul, cujo único luxo era fumar um charuto aos domingos, contava a propósito da falta de limites dos políticos que, na verdade, é ocultamente um limite; a história de Pedro Honorato – ou a lenda do político honesto.  “A lenda fala de um homem diferente. Uma pessoa que não mentia, um sujeito ofensivamente honesto que tinha por nome Pedro Honorato.

Criado por mãe rezadeira e pai lavrador, o menino fez jejum e, ajoelhado em caroços de milho, prometeu a Deus ser honesto.”  Sério, jamais mentiu. Jamais “tirou” algum doce da dispensa ou alguma moeda esquecida no bolso do casaco do seu pai. Nunca disse um “mais ou menos” e, eis o extraordinário no caso, era bastante capaz de dizer “não!” sem problema. Na sua vida, compromissos e jeitinhos não existiam. Estudioso, Pedro seguiu para a capital de onde voltou com um diploma e mais honesto ainda. A cidade grande, com seus encantos e anonimatos, não foi capaz de corrompê-lo.             

Impressionado com o descalabro de sua cidade, Pedro candidatou-se a prefeito. Sua campanha foi bem-vinda – enfim, um político que não mente, diziam – e coincidiu com um vil e habitual roubo de dinheiro destinado à saúde. Pedro teve uma vitória eleitoral tranquila e, conforme prometeu, começou sua administração despedindo duas funcionárias que tinham emprego, mas não trabalhavam. Uma era sobrinha de um senador; a outra era amante do prefeito derrotado. Ato contínuo, “limpou” o setor financeiro, pondo no olho da rua nada menos do que 25 funcionários que estavam implicados em todo tipo de delitos.  Seus pais, aparentados e padrinhos dos exonerados, pediram que ele reconsiderasse. Honorato negou. O padre Pio arguiu que até a honestidade poderia ser orgulho, um pecado capital; e o professor Treado Silva, que não dava aulas, sugeriu filosoficamente que tanto o limite quanto sua ausência são limites.  Seu pai ponderou falando em exagero e o que havia começado como um apelo virou admoestação moral e terminou em ingratidão filial. Aturdido, Pedro rompeu com sua família.  Chegou tarde em casa e buscou conforto no amor conjugal. Mas, no deleite dos corpos entrelaçados, sua esposa sussurrou o nome do seu irmão caçula – Lelinho, um vagabundo notório – para o cargo de secretário. Pedro gritou “de modo algum!” e, de imediato, viu o amor acabar e ouviu a ameaça da mulher: “Agora, seu merdinha, pense duas vezes antes de me pedir novamente ‘aquilo’”, explodiu uma antiga doce Amelinha batendo a porta.

Frustrado, solitário e com fome, Pedro foi ao bar local. Lá, os homens bons da comunidade o receberam como um bandido. Um “leproso”, como disse Beto Chupeta, um palhaço do circo local que recebia generosos “subsídios culturais” do antigo prefeito.  Ao descobrir-se exilado por sua honestidade, Pedro Honorato tentou uma piada. Ouviu um horrível silêncio. Então, um ex-companheiro de campanha disse-lhe com voz embargada: “Quem não retribui o que recebe não é Homem!”.

Pedro saiu do bar para dormir na pracinha do grupo escolar.  Conta a lenda que, nos meses seguintes, Pedro Honorato governou só. Sua honestidade fez com que perdesse amigos, parentes e esposa. Na casa dos pais para onde se mudou com os filhos, a mulher de Pedro comentava a vergonha de ter um marido que trocava suas amizades pelas normas da política.  “Pedro fez o pior e o mais melancólico governo de Pé na Cova”, terminava Vovô Raul. Até hoje, ele medita sobre o que fez de errado.           

Meu velho avô concluía com um sorriso e uma baforada do seu charuto baiano de boa qualidade. Ele soprava a fumaça e encarava cada um dos seus filhos, enteados e netos.  Meu tio Marcelino, autoproclamado comunista, dizia que o caso era uma lenda fascista; meu tio Silvio replicava que, pelo contrário, era um mito antirrepublicano. Tio Mário, o caçula, dizia que era a mais pura verdade – para tanto, bastava ler os jornais. Eu, com minha memória de literato de meia-tigela, guardei o caso e o reproduzo pensando na eleição próxima. Acho que, na campanha, teremos uma multidão de Pedros Honoratos que, uma vez instalados nas suas prerrogativas de poder praticar com total apoio legal a ignorância, o radicalismo e a mentira como valores absolutos, veremos surgir de dentro da cada um deles um outro Pedro – o Malasartes. Aquele que incomoda porque jamais foi discutido, exceto por um tolo…  Seria essa uma questão de raiz de um país enraizado na malandragem e na hipocrisia cordial? 

E o tema ganhou muita relevância no Supremo Tribunal Federal (STF), que conferiu concretude ao princípio da impessoalidade no caso do nepotismo, hoje regulado pela Súmula Vinculante nº 13. Confira-se:

STF, Súmula Vinculante nº 13

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.  

Alguns trechos da Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 12 merecem leitura:

STF, Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 12

“AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE, AJUIZADA EM PROL DA RESOLUÇÃO 7, DE 18-10-2005, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. ATO NORMATIVO QUE “DISCIPLINA O EXERCÍCIO DE CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES POR PARENTES, CÔNJUGES E COMPANHEIROS DE MAGISTRADOS E DE SERVIDORES INVESTIDOS EM CARGOS DE DIREÇÃO E ASSESSORAMENTO, NO ÂMBITO DOS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Os condicionamentos impostos pela Resolução 7/2005 do CNJ não atentam contra a liberdade de prover e desprover cargos em comissão e funções de confiança. As restrições constantes do ato resolutivo são, no rigor dos termos, as mesmas já impostas pela CF/1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade. (…) 3. Ação julgada procedente para: a) emprestar interpretação conforme à Constituição para deduzir a função de chefia do substantivo “direção” nos incisos II, III, IV, V do art. 2º do ato normativo em foco; b) declarar a constitucionalidade da Resolução 7/2005 do Conselho Nacional de Justiça. [ADC 12, rel. min. Ayres Britto, P, j. 20-8-2008, DJE 237 de 18-12-2008.]”

Trecho do voto do Ministro Celso de Mello: “(…) Esses princípios [igualdade, impessoalidade e moralidade administrativa], erigidos à condição de valores fundamentais pela Carta Política – e os quais o Conselho Nacional de Justiça se mostrou extremamente fiel na Resolução ora um exame -, representam pauta de observância necessária por parte dos órgãos estatais, especialmente por parte dos órgãos do Poder Judiciário. Mais do que isso, Senhor Presidente, tais postulados qualificam-se como diretrizes essenciais que dão substância e significado à repulsa que busca fazer prevalecer, no âmbito do aparelho de Estado, o sentido real da ideia republicana, que não tolera práticas e costumes administrativas tendentes a confundir o espaço público com a dimensão pessoal do governante, em claro desvio de caráter ético-jurídico.”

Trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa: “(…) à Corte Constitucional cabe o papel de estreitar, de eliminar o fosso que às vezes existe entre a sociedade e o microcosmo jurídico, o qual, como todos sabemos, às vezes forja as suas próprias realidades, fomenta as hipocrisias e, por que não dizê-lo, uma certa moralidade manca, como cotidianamente temos oportunidade de verificar.

O Direito não pode dissociar-se da Moral, isto é, de uma moral coletiva, pois ele reflete um conjunto de crenças e valores profundamente arraigados, que emanam da autoridade soberana, ou seja, do povo. Quando, em determinada sociedade, há sinais de dissociação entre esses valores comunitários e certos padrões de conduta de alguns segmentos do aparelho estatal, tem-se grave sintoma de anomalia, a requerer a intervenção da justiça constitucional como força intermediadora e corretiva. (…)”

O nepotismo é forma perversa de patrimonialismo. Ele possui significados diferentes, os quais deixam claro o quão sofisticado é o esforço de favorecimento pessoal no âmbito da Administração Pública.

Nepotismo direto (ou próprio)É a forma mais comum de nepotismo, também conhecida como nepotismo direto ou explícito. Ela ocorre quando uma autoridade nomeia seus próprios parentes, como cônjuges, companheiros ou familiares até o terceiro grau (filhos, netos, bisnetos, irmãos, tios, sobrinhos, sogros, genros, noras e cunhados). É caracterizada pela proximidade do grau de parentesco.
Nepotismo indireto (ou impróprio)

Ocorre quando uma autoridade nomeia ou favorece pessoas que têm laços familiares com seus subordinados, mesmo que esses parentes não sejam diretamente vinculados à autoridade nomeante.
Nepotismo cruzadoHipótese em que duas ou mais pessoas em posições de autoridade nomeiam ou favorecem os parentes umas das outras. É a conhecida “troca de favores”.
Nepotismo trocadoOcorre quando as nomeações cruzadas são realizadas no âmbito de pessoas jurídicas distintas.

Chama-se atenção para o fato de que inicialmente o STF, com a edição da Súmula Vinculante nº 13, restringiu a vedação à prática de nepotismo aos agentes administrativos que não exerçam funções políticas (aqui entendidas como aquelas próxima dos agentes eleitos, como Ministros e Secretários). No entanto, mais recentemente a 1ª Turma do STF decidiu que o prefeito da cidade do Rio de Janeiro não poderia nomear seu filho como Secretário da Casa Civil, um cargo eminentemente político. A decisão pode gerar perplexidade e reflexão sobre os limites da impessoalidade em face da necessidade de que a alta direção da Administração Pública seja também um reflexo da vontade eleitoral democrática. Veja-se:

Crivella nomeia filho como secretário da Casa Civil

‘Estou à disposição’, diz filho do prefeito sobre assumir o cargo

Caio Barretto Briso, com colaboração de Luiz Ernesto Magalhães e Natália Boere
O Globo, 02 de fevereiro de 2017

RIO – Ao assumir a prefeitura, no dia 1º de janeiro, Marcelo Crivella anunciou um desejo: “Gostaria que hoje estivesse tomando posse nessa equipe meu próprio filho, que esteve comigo nos tantos anos que passei na África e no sertão. E ele me acompanhou nas campanhas políticas, sobretudo nessa última”. O herdeiro ainda não estaria pronto para assumir um cargo no executivo municipal porque, segundo o pai declarou na ocasião, “um compromisso de trabalho no exterior o impediu de vir. Mas espero poder contar com seu apoio para breve”. (…)

Atualmente, a 1ª Turma do STF tem decisões no sentido de que também viola o princípio da impessoalidade a nomeação de parentes para cargos públicos de natureza política quando ficar comprovada a irrazoabilidade da nomeação em razão da incapacidade técnica ou idoneidade moral do nomeado. A 2ª Turma da Corte, por outro lado, não aplica a súmula para funções políticas.

A questão está em vias de ser pacificada quando do julgamento do Tema 1000 de Repercussão Geral do STF. Almeja-se, nesse caso, discutir, nas palavras da Corte, a “constitucionalidade de norma que prevê a possibilidade de nomeação de cônjuge, companheiro ou parente, em linha reta colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante, para o exercício de cargo político”. Em sua opinião, qual posição deve prevalecer?

UM POSSÍVEL FUTURO PARA UMA ADMINISTRAÇÃO MAIS IMPESSOAL: O USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Um caminho de reflexão interessante é como o avanço tecnológico pode contribuir para que a tradição patrimonialista e o excesso de pessoalidade na Administração Pública possam ser mitigadas. A Inteligência Artificial (IA) parece ser um caminho possível.

Antes de tudo: do que estamos falando, afinal, quando mencionamos a IA? De forma simplificada, me refiro a um sistema capaz de analisar uma grande quantidade de dados para resolver problemas de maneira autônoma. Um sistema que pressupõe o uso de algoritmos para decisões administrativas que, afinal, seriam tomadas sem a participação humana.

A IA pode ser uma importante aliada na concretização do princípio da impessoalidade. Ela é capaz de conferir tratamento isonômico ao identificar padrões e dar a eles a mesma solução. Além disso, ela também é apta a guiar a atuação administrativa segundo critérios racionais e objetivos, diminuindo a interferência de subjetivismo humanos.

Para ilustrar, podemos citar três exemplos de como a inteligência artificial pode aperfeiçoar a concretização do princípio da impessoalidade na prática.

Imagine, por exemplo, a IA sendo aplicada ao exercício de polícia edilícia da Administração Pública. Com a grande concentração populacional nos grandes centros, o Poder Público possui dificuldade para identificar a construção de obras irregulares. Nesse caso, o sistema de IA, que poderia analisar vídeos de drones sobre a cidade, e auxiliar na identificação da construção irregular e proposição da sanção a ser aplicada. O órgão responsável seria imediatamente acionado e analisaria se é de fato cabível a sanção. A apuração despersonalizada evitaria fiscalizações mal-intencionadas.

Como um segundo exemplo, podemos pensar em IA sendo utilizada para o atendimento geral ao público. Já há, inclusive, diversas iniciativas bem-sucedidas nesse sentido. Um atendimento prévio realizado pela IA é capaz de identificar a demanda, direcioná-la para o responsável e ainda propor uma solução. Isso não só otimiza o tempo de trabalho do agente público, como também diminui o tempo de resposta ao cidadão. Uma iniciativa que merece destaque é o Meu SUS Digital, antigo Conecte SUS, do Ministério da Saúde, que, com a utilização de inteligência artificial, possibilita aos usuários o acesso às suas informações e a de seus familiares. Além disso, ele permite o acesso à posição na fila de transplante, conferindo transparência ao processo.

Meu SUS Digital

“Antigo Conecte SUS”

Serviços e Informações do Brasil, 12 de janeiro de 2024

(…) O Meu SUS Digital é o aplicativo oficial do Ministério da Saúde e a porta de acesso aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) de forma digital. Ele permite que o cidadão acompanhe, na palma da mão, o seu histórico clínico e acessar soluções digital para ser o protagonista da sua saúde. 

Para garantir um ambiente colaborativo e diminuir o consumo de armazenamento de dados dos dispositivos móveis, o Meu SUS Digital disponibiliza a área Aplicações. Uma área com diversos aplicativos de saúde que fazem parte do dia a dia do cidadão, como o Peso saudável, Hemovida, Equidade SUS, Transplantes, Saúde População Negra, entre outros.

 A área Rede de Saúde permite ao cidadão identificar estabelecimentos de saúde próximos à sua localização, de acordo com o tipo de serviço desejado, além de permitir adicionar aos favoritos os mais relevantes.   

Na área de Vacinas é possível acessar o histórico de vacinação, a Carteira Nacional de Vacinação e o Certificado de Vacinação de Covid-19. O histórico conta com informações sobre as vacinas administradas pelo SUS com especificações sobre a data de aplicação, lote, estabelecimento de saúde e código do vacinador

A página Exames apresenta os resultados de exames laboratoriais para a detecção da Covid-19 realizados por qualquer laboratório no território nacional integrado à Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). (…).

 Podemos citar, ainda, a aplicação de IA na área de contratações do setor público. As contratações públicas correspondem a 12% do PIB do país. Trata-se de um montante relevante. Ao mesmo tempo, é uma das atividades mais suscetíveis a desvios. Logo, conferir impessoalidade a esse processo é fundamental. Imagine um sistema de IA que otimize a fase preparatória. O gestor público pergunta ao sistema o produto ou serviço que pretende comprar ou contratar e o sistema seria capaz de identificar o objeto e as especificações, evitando-se direcionamentos. Além disso, ela seria capaz de identificar distorções de preços ou outras irregularidades durante todo o processo. Aliás, o TCU tem usado sistema de IA para identificar possíveis fraudes em licitações.

 São vários os benefícios da inteligência artificial ao ser aplicada ao setor público. No entanto, não se pode fechar os olhos aos riscos e desafios que sua utilização pode trazer. Há chances de erros. Há quem defenda uma “reserva de humanidade” (um agente público praticando o ato) para a tomada de decisões discricionárias e mais complexas. Além disso, algoritmos de IA também podem processar dados de maneira discriminatória, notadamente se seus sistemas forem alimentados com dados enviesados. Tudo isso não pode e não deve ser ignorado. A criação do algoritmo será crucial para que ele seja efetivamente impessoal.

3. DEBATENDO

  1. Há limite para a impessoalidade? A Administração Pública deve ser totalmente impessoal?
  2. Como compatibilizar o princípio democrático com a impessoalidade com as nomeações políticas no primeiro escalão?
  3. Em que medida os sistemas de cotas para acesso aos serviços públicos são legítimos? Em sua opinião, quais discriminação positivas são possíveis?
  4. Quais são os entraves éticos para a aplicação da inteligência artificial aos processos decisórias da Administração Pública? Uma gestão pública por algoritmos resolveria problemas ou criaria muitos outros?

4. APROFUNDANDO

ARAÚJO, Valter Shuenquener de; ZULLO, Bruno Almeida; TORRES, Maurílio. Big Data, algoritmos e inteligência artificial na Administração Pública: reflexões para a sua utilização em um ambiente democrático. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional. Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 241-261, abr./jun. 2020. DOI: 10.21056/aec.v20i80.1219. p. 246-247.

ÁVILA, Ana Paula Oliveira. O princípio da impessoalidade da administração pública para uma administração parcial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

BARROSO, Luís Roberto. “Os Donos do Poder: a perturbadora atualidade de Raymundo Faoro”. In Revista Brasileira de Políticas Públicas, 2022, v. 12, n. 3.

CYRINO, André; SANTOS, Júlio Domingues. “Três riscos no uso de algoritmos na Administração Pública”. In As inovações tecnológicas no direito: o impacto nos diferentes ramos. Coord. Luiz Fux, Marco Aurélio Bezerra de Melo, Humberto Dalla Bernardina de Pinho, Londrina: Thoth, 2024, (pp. 181-196).

CYRINO, André. BARBOSA, Marcus Vinicius. O princípio da impessoalidade Administrativa e inteligência artificial. [mimeo], 2024.

SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.