Roteiro de Aula

Quais as práticas da atuação empresarial do Estado?

Subsidiariedade, transitoriedade e liberdade na conformação do setor empresarial público.

1. CONHECENDO O BÁSICO

Determina o caput do artigo 173 da Constituição Federal que a “exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. Para essa exploração, o parágrafo primeiro do mesmo artigo estipula três entidades da estrutura administrativa: a empresa pública, a sociedade de economia mista e suas subsidiárias.

Tais regras são complementadas pelos incisos XIX e XX do art. 37 da Constituição Federal, que tratam da questão da autorização legislativa para a criação e atuação das entidades acima mencionadas.

Essas previsões remetem os intérpretes a algumas ideias que influenciam e direcionam os debates no âmbito do direito administrativo e do direito público econômico. Assim, podemos mencionar alguns temas que se tornaram clássicos entre os publicistas brasileiros: (i) a prevalência e a utilidade na separação entre empresas estatais prestadoras de serviços públicos vs. exploradoras de atividades econômicas; (ii) o alcance da expressão “relevante interesse coletivo” como autorização para a criação de empresa estatal; (iii) a necessidade, ou não, de autorização legislativa específica para a constituição de cada subsidiária de empresa estatal (cf. STF, ADI n. 1.649-DF); e (iv) o regime jurídico aplicável à empresa pública e à sociedade de economia mista, o que inclui as regras de licitação e contratação de empregados públicos etc.

Sem excluir a relevância desses debates – que continuam a direcionar e influenciar posições na literatura jurídica, e decisões tomadas em tribunais judiciais e órgãos de controle –, nosso intuito, nesta aula, é apresentar aos alunos algumas novas considerações sobre o tema da atuação empresarial do Estado. Para isso, duas ideias são importantes para este tema.

Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que a utilização que o Estado faz da figura da empresa para a realização de parcela de suas atividades está muito longe de ser um dado irrelevante. Tampouco é mera obra do acaso. Trata-se de uma opção consciente do ordenamento jurídico por uma determinada forma de organização racional dos recursos e processos econômicos, dotada de características próprias e voltada a finalidades que se pressupõe serem obtidas com maior eficiência mediante a utilização do figurino empresarial.

Pode-se dizer inclusive que, além da tradicional classificação da Administração Pública em direta e indireta, que é possível fazer uma outra classificação: Administração Pública empresarial e Administração pública não empresarial. A Administração Pública empresarial opera segundo uma racionalidade econômica, típica do setor empresarial, ainda que adaptada à realidade da estrutura estatal.

Em segundo plano, para além das disposições gerais aplicáveis à matéria, sejam as constitucionais, sejam as legais (Lei n. 13.303/2016), a análise da prática empresarial do Estado tem demonstrado complexidades referentes a estratégias de atuação que fogem aos debates tradicionais. Assim, é possível notar atividades que se colocam fora da dicotomia serviço público vs. atividade econômica, como ocorre com o BNDES e a FINEP, que se destinam ao fomento de atividades privadas de interesse coletivo. Ademais, é possível perceber movimentações do Estado no setor empresarial que são diversificadas e plurais, tal qual se verifica: (i) na criação e alienação de subsidiárias, (ii) nas operações societárias para investimento minoritário em empresas privadas, constituindo as empresas público-privadas (empresas privadas não integrantes da estrutura administrativa estatal), (iii) na alienação do controle acionário de empresas estatais com a celebração de acordos de acionistas ou a manutenção de golden shares nas mãos do Estado, para direcionar os rumos da empresa privatizada, (iv) na desestatização da empresa com a atração de sócio de referência para investimentos em setores estratégicos, como ocorreu no caso da SABESP, em São Paulo; (v) na utilização de empresas estatais para o estímulo de atividades privadas etc.

É importante conhecer os mais recentes debates a respeito do setor empresarial do Estado. Para tanto, trabalharemos com as ideias de subsidiariedade, transitoriedade e liberdade gerencial.

A subsidiariedade pode ser retirada diretamente do caput do art. 173 da CF, segundo o qual “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Com isso, cria-se uma barreira de entrada para que a atuação estatal empresarial não seja utilizada de modo exagerado em setores nos quais a sua atuação seja irrelevante.

Ligada à subsidiariedade, há a ideia de transitoriedade. Por ela, o “relevante interesse público” ou o “imperativo de segurança nacional” utilizado como fundamento para a autorização legislativa de criação da empresa pública ou da sociedade de economia mista são cambiantes ao longo dos anos. Assim, faz-se necessária a constante análise relativa à permanência das razões de criação de tais entidades de atuação na economia, para legitimar a existência e atuação da empresa estatal.

Ao lado dessas regras, podemos perceber que parte do debate atual envolve o tema da liberdade gerencial das empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias. Por essa perspectiva, há que se verificar o nível de liberdade que o gestor possui para direcionar os rumos da entidade econômica, inclusive com a possibilidade de sua alienação, sem a necessidade de autorização legislativa específica.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

A respeito do princípio da subsidiariedade, leia o trecho abaixo retirado da aula 14 do Curso de Direito Administrativo em Ação sobre o caput do art. 173 da CF.

Aula 14 – O Estado pode dar uma de empresário?

Por José Vicente Santos de Mendonça
(Curso de Direito Administrativo em Ação, Ed. Juspodivm)

Parte da literatura dogmática de Direito Administrativo identifica, nesse trecho, o que chama de princípio da subsidiariedade da intervenção do Estado na economia. Segundo tal norma, a intervenção direta do Estado no mercado – por meio, justamente, de estatais – só poderia ocorrer em último caso, isto é, quando a iniciativa privada não tiver interesse ou capacidade de produzir o bem ou fornecer o serviço. Um possível exemplo bem peculiar: em 2008, o Acre criou empresa, hoje desativada, destinada à produção de preservativos com látex natural. À luz da subsidiariedade, a intervenção seria justificável?

Outros leem a cabeça do art. 173 de forma diversa. Para eles, o art. 173 exigiria razões particularmente convincentes (isto é, razões “de relevante interesse coletivo”) para autorizar a intervenção na economia – mas elas não precisam equivaler a um completo desinteresse ou incapacidade privadas na produção do bem ou do serviço. Pelo raciocínio, seria possível a concorrência entre estatais e não estatais em relação a atividades de interesse comum a todas elas; desde que a atividade despertasse relevante interesse público (o que seria lido de modo menos limitante), e que as estatais não gozassem de benefícios não extensíveis às demais empresas, a situação cumpriria o comando constitucional.

Agora que já foi analisado o princípio da subsidiariedade na constituição das empresas estatais, vamos estudar um princípio que lhe é correlato, o princípio da transitoriedade, que demanda a constante análise da pertinência da permanência da atuação empresarial do Estado.

Para aprofundar esse princípio, vamos começar com um artigo publicado por Fernando Antônio Ribeiro Soares e Leonardo Raupp Bocorny na obra coletiva Empresas estatais: regime jurídico e experiência prática na vigência da Lei n. 13.303/2016.

Fundamentos jurídicos e econômicos para a legitimidade das empresas estatais: uma análise sobre o art. 173 da Constituição Federal de 1988 e o princípio da transitoriedade

Por Fernando Antônio Ribeiro Soares e Leonardo Raupp Bocorny
(Empresas estatais: regime jurídico e experiência prática na vigência da Lei n. 13.303/2016).

3. A necessidade de reavaliação das empresas estatais

3.1. A transitoriedade das empresas estatais e o art. 173 da Constituição Federal

Pelo demonstrado nas seções anteriores, o espaço para intervenção do Estado no domínio econômico por meio de empresas estatais é limitado pelo imperativo de segurança nacional e pelo relevante interesse da coletividade. Em razão da maior ocorrência de casos de intervenção sob o fundamento do relevante interesse da coletividade, bem como pelo fato de ele possuir elementos econômicos para análise, concentremo-nos nessa hipótese.

Como visto em linhas anteriores, o interesse (necessidade) da coletividade surge em decorrência da existência de falhas de mercado, determinando a elaboração de uma política pública por parte do Estado, segundo sua relevância. Mais especificamente, poder-se-ia falar de um bem ou serviço do qual, apesar de sua relevância e interesse de uma coletividade, não há oferta (total ou parcial) por parte do setor privado.

Assim, do ponto de vista econômico, a legislação brasileira indica que a produção estatal surge se, e somente se, não houver um adequado abastecimento à sociedade de determinado produto ou serviço pela oferta privada, doméstica ou estrangeira.40 A falha de mercado, como o próprio nome diz, surge da existência de fricções no mercado que impedem o seu melhor funcionamento. Nem toda falha de mercado demanda uma intervenção empresarial do Estado. Algumas delas podem ser suprimidas ou minoradas mediante regulamentações. Outras, no entanto, e conforme a relevância, podem exigir a citada intervenção empresarial do poder público.

Ocorre que, após alguns anos, sob a ótica econômica, a falha de mercado que motivou a criação da empresa estatal pode não estar mais presente em face das modificações nas condições do próprio mercado, da indústria e das firmas. Nesse cenário, sob a ótica jurídica, cada um dos elementos do trinômio pode, aos poucos, ir perdendo importância para despertar o interesse público estatal. Eis o raciocínio para promover a desestatização dessa empresa.

Esse pensamento induz à constatação de um dever de conduta pelo poder público atinente à verificação permanente dos requisitos que justificam a presença estatal na economia. Não por acaso, desde 2015, a OCDE tem orientado o Brasil com diretriz nesse sentido: “O Estado exerce a propriedade das EEs no interesse público em geral. Ele deve avaliar cuidadosamente e divulgar os objetivos que justificam a propriedade estatal e submetê-los a uma crítica permanente”.

Propomos, portanto, o reconhecimento do princípio da transitoriedade das empresas estatais, o qual significa que essas entidades somente poderão existir se demonstrados os pressupostos jurídicos e econômicos que as legitimam na ordem econômica, tanto no momento de criação como durante sua operação.

O princípio consiste em uma medida de autotutela da administração pública. Está implícito no caput do art. 173, desde 1988, e é decorrência direta do advérbio “só”, que qualifica a expressão “será permitida”. Em sua essência, é comando normativo que depende da existência de condicionantes do mundo real (econômico) para produzir efeitos e, por essa razão, há de ser objeto de checagem recorrente. Eventual omissão pelo Estado quanto ao exercício desse poder-dever de autotutela poderá acarretar, inclusive, a atuação estatal ilegítima na ordem econômica.

A aceitação da existência desse princípio parece mais fácil na atualidade. De fato, houve significativo amadurecimento do pensamento nacional na temática, especialmente a partir do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 234/DF, em 1995. No respectivo acórdão, é possível encontrar elementos indicadores da ideia de transitoriedade, conforme se verifica na seguinte passagem da sua ementa: “O juízo de conveniência, quanto a permanecer o Estado na exploração de certa atividade econômica, com a utilização da forma da empresa pública ou da sociedade de economia mista, há de concretizar-se em cada tempo e à vista do relevante interesse coletivo ou de imperativos da segurança nacional”. Mais recentemente, vale destacar a introdução do §16 ao art. 37 da Constituição Federal (Emenda Constitucional n. 109/2021), que determina que “órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei”. Assim, caso não seja possível encontrar o princípio de modo implícito no art. 173, basta sugerir a leitura dessa norma em conjugação com o novel dispositivo do art. 37. No plano infraconstitucional, cabe ainda citar a novel inclusão do § 6º ao art. 10 do Decreto n. 2.594/1998.

Identificado o princípio, o passo seguinte consiste em verificar se a fundamentação econômica que levou à criação da companhia, conforme o interesse da coletividade, ainda se encontra presente. Como se verá a seguir, deveria ser uma análise não discricionária para o governante. É dizer, uma vez que não estejam mais presentes os elementos que fundamentaram a constituição da empresa estatal, a sua desestatização deveria ser uma mera consequência, e não uma decisão discricionária.

3.2. A transitoriedade das empresas estatais e a não discricionariedade da desestatização

A decisão de constituição de uma empresa estatal pode ter sido tomada há décadas. Há de se perguntar se essas condições, existentes quando da constituição da empresa estatal, ainda se encontram presentes na atualidade. Como já dito, e orientado pela OCDE, isso deveria se tornar um procedimento de checagem recorrente.

É metodologicamente interessante analisar a presente argumentação a partir de uma exemplificação. O caráter temporário das empresas estatais pode ser avaliado a partir da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), criada em 1942 a partir de uma decisão estatal. No entanto, a citada decisão, ainda em um período de industrialização inicial do Brasil, não ocorreu em competição com o setor privado. Na verdade, naquele momento não houve mobilização de capitais privados para a instalação da siderúrgica, sendo isso derivado do longo prazo de maturação dos investimentos, bem como do montante de recursos financeiros envolvidos. Especificamente falando, os riscos envolvidos e os lucros esperados impossibilitaram à época os investimentos privados.

Como era considerada necessária à industrialização do país, que, no período em análise, estava sob a égide da Industrialização via Substituição de Importações (ISI),45 e dada a indisponibilidade do setor privado, o Estado brasileiro optou pelo desenvolvimento da estatal, que seria base para o desenvolvimento de outras indústrias.46 E, dessa forma, funcionou por décadas.

Nos anos 1990, optou-se pela privatização da estatal. É válido ressaltar que vários anos após sua criação, capitais privados já conseguiam ser mobilizados para estabelecer e operar indústrias siderúrgicas e assemelhados, o que não era factível nos anos 1940. Pode-se citar que operou para tanto o desenvolvimento do mercado financeiro e de capitais, e assim a obtenção de fontes de financiamento, bem como a redução de riscos operacionais e outros riscos associados à atividade. Análises análogas poderiam ser feitas acerca do restante do sistema siderúrgico estatal, do Sistema Telebrás e da então Vale do Rio Doce.

No entanto, a privatização da CSN ocorreu no ímpeto reformista do governo Collor. Em outros termos, deu-se por uma opção discricionária do governo ora no poder. A privatização da CSN não decorreu especificamente da efetiva verificação da maturidade do setor (indústria siderúrgica) e, dessa forma, pela desnecessidade da sua manutenção na esfera estatal – o elemento fundamental em análise no presente capítulo. Esses elementos ainda serão trazidos à discussão, mas este é o ponto central que já merece destaque: a privatização da CSN ou de várias outras empresas não deveria se dar pela vontade dos representantes que ocupam o Poder Executivo, chancelado ou não conforme o caso pelo Poder Legislativo, mas deveria ser uma decisão não discricionária obtida por uma avaliação recursiva de empresas e setores com critérios previamente estabelecidos.

A privatização da CSN se deu a partir de uma política, uma proposta de governo, o que sugestiona a ocorrência de uma decisão discricionária. Nesse ponto, apresenta-se a nossa divergência com os programas de desestatização atuais: o programa não deveria ser submisso aos desejos de governos privatistas ou intervencionistas. A ideia é minimizar o caráter discricionário dos programas de privatização e submetê-los ao escrutínio de critérios previamente estabelecidos. Uma vez que o relevante interesse coletivo possa vir a desaparecer em decorrência da evolução do próprio processo econômico, não deveria haver espaço para a tomada de decisão discricionária de desestatização, pois esta já seria automática em respeito ao disposto constitucional.

Outro exemplo seria o caso das telecomunicações no Brasil. Essa indústria representava um monopólio natural quando da instalação do sistema Telebrás nos anos 1970. Lembrando que o monopólio natural se insere nas falhas de competição, que representa mais uma falha de mercado. Os elevados custos fixos, bem como a necessidade de mobilizar um grande volume de recursos para uma demanda ainda incipiente, impediam os investimentos privados. Na atualidade, contudo, dificilmente poderíamos associar o setor de telefonia com um monopólio natural. Tal exemplo nos permite reafirmar a condição temporária de algumas falhas de mercado, fato esse que reafirma a possibilidade do caráter temporário da intervenção direta do Estado na provisão de bens e serviços. Nesse caso, houve a transformação do “Estado Empresário” em “Estado Regulador”, conforme o desenvolvimento do mercado de telecomunicações no Brasil. No último estágio de desenvolvimento de um mercado desapareceria inclusive o Estado Regulador, passando a prevalecer meramente as condições de autorregulação pela interação concorrencial.

Continuando o raciocínio, a Lei n. 9.491/1997, a Lei do Programa Nacional de Desestatização (PND), quando interpretada à luz do disposto no art. 173, caput, da Constituição Federal, não poderia ser entendida como um processo decisório em que o governante exerceria amplo juízo de oportunidade e conveniência. Ao contrário, deve ser pautada por critérios objetivos, levando em conta a evolução do próprio processo econômico do setor considerado e o atendimento do mercado. Em certas situações, é possível que a desestatização de eventual empresa estatal seja a única solução admitida, de modo que, sob certos fundamentos econômicos, não haveria margem para a manutenção da entidade tão somente por força de uma vontade do governante. Assim, não haveria espaço para a tomada de decisão discricionária de desestatização, pois esta já seria automática em respeito ao disposto constitucional. Logo, a retirada da atuação empresarial estatal é, a contrario sensu, raciocínio implícito ao argumento do relevante interesse da coletividade, que deveria ser definido a partir de critérios objetivos. A manutenção ou não de uma empresa estatal não deveria ser delimitada pela orientação de um governo, mas inteiramente submetida à análise da subsistência ou não do relevante interesse da coletividade que ensejou a criação dessa estatal.

Essa ideia da transitoriedade também pode estar ligada à sustentabilidade econômica das empresas estatais, como pode ser verificado no trecho de artigo de autoria de Rafael Wallbach Schwind, publicado na mesma obra coletiva acima mencionada.

Insolvência das empresas estatais: a inaplicabilidade do regime falimentar e a questão do pagamento de dívidas por precatórios

Por Rafael Wallbach Schwind
(Empresas estatais: regime jurídico e experiência prática na vigência da Lei n. 13.303/2016)

1.2. A questão das empresas estatais deficitárias

Outra questão que se coloca diz respeito a um possível caráter deficitário de certas empresas estatais.

Algumas empresas estatais exploram atividades econômicas potencialmente lucrativas, normalmente em regime de concorrência, e por isso a ideia é que não sejam empresas deficitárias. A geração de lucros aos seus acionistas é inclusive esperada nesse tipo de situação e é o que faz sentido para que o capital privado se alie ao capital estatal no empreendimento em questão.

No entanto, há certas atividades que não despertam o interesse da iniciativa privada. O Estado as assume normalmente por meio da criação de uma empresa estatal, que acaba sendo, muitas vezes, deficitária. Ou seja, não gera lucros aos seus acionistas e em alguns casos é dependente da transferência de recursos pelo sócio estatal controlador.

Por esses motivos, pode-se afirmar que o caráter deficitário de certas empresas estatais não é necessariamente um problema, mas apenas um dado da realidade. É lógico que se espera que as empresas estatais sejam eficientes na execução dos fins a que se destinam. Entretanto, em certas situações, que normalmente envolvem atividades que não despertam o interesse da iniciativa privada, será possível que a empresa estatal seja deficitária – e muitas vezes isso não tem como ser contornado.

1.3. Os riscos envolvidos na atuação das empresas estatais

A atuação das empresas estatais envolve necessariamente certos riscos.

Quando atuam em concorrência, por exemplo, as empresas estatais assumem os riscos inerentes a um mercado competitivo. Se sua política comercial não for bem-sucedida, a empresa estatal poderá inclusive sofrer elevados prejuízos.

Também há a assunção de riscos por empresas estatais que não atuam em concorrência. Ainda que a empresa estatal desempenhe suas atividades na condição de monopolista, haverá certo risco na gestão dos seus negócios. Isso porque atividades econômicas – aqui tomadas em sentido amplo de modo a abranger inclusive serviços públicos – são necessariamente atividades que envolvem riscos. O mesmo se observa, por exemplo, no desenvolvimento de oportunidades de negócio, que são uma criação da Lei n. 13.303/2016.5 É inerente às oportunidades de negócio que haja certos riscos envolvidos. A constatação de que as atividades desempenhadas pelas empresas estatais envolvem riscos é relevante para o estudo da sua possível insolvência.

1.4. O dever de avaliação periódica de sua sustentabilidade econômica

Apesar de haver riscos inerentes às suas atividades e de muitas vezes ser aceitável que certas empresas estatais sejam deficitárias, há o dever geral de se avaliar periodicamente a sua sustentabilidade econômica.

Se essa avaliação de sustentabilidade econômica já era um dever implícito, uma vez que as empresas estatais devem buscar os melhores padrões de eficiência e deve haver responsabilidade no emprego de recursos pelo acionista controlador, ela há pouco tempo passou a ser um dever positivado no ordenamento jurídico brasileiro – inclusive com vistas a se avaliar a sua possível privatização.

De fato, o Decreto n. 10.263, de 5 de março de 2020, alterou a redação do art. 10 do Decreto n. 2.594, de 15 de maio de 1998, que regulamenta a Lei n. 9.491/1997. Com as alterações em questão, passou-se a prever que o Conselho Nacional de Desestatização, para fins de recomendação de inclusão de empresas estatais no Programa Nacional de Desestatização (PND), deverá avaliar a sustentabilidade econômico- -financeira das empresas estatais com controle direto da União (a cada quatro anos) e de todas as empresas estatais dependentes (a cada dois anos). Essas avaliações ainda deverão verificar se permanecem as razões de imperativo de segurança nacional ou de relevante interesse público que justificaram a sua criação.

Portanto, nessas avaliações periódicas de sustentabilidade econômico- -financeira, deverão ser levados em conta os aspectos relacionados à possível insolvência das empresas estatais. Mesmo que se reconheça a existência de riscos e incertezas, ainda mais em mercados que não despertam o interesse da iniciativa privada, a ideia é que as empresas estatais desempenhem suas atividades com a maior eficiência possível, o que significa que elas não podem ser instrumentos de desperdício de recursos públicos.

1.5. A subsidiariedade e a transitoriedade da intervenção estatal

Por fim, deve-se ter em consideração que a intervenção do Estado no domínio econômico por meio de empresas estatais será sempre subsidiária e transitória.

A subsidiariedade decorre da previsão constitucional que valoriza a iniciativa privada. A rigor, se esta dá conta das atividades e se não há nenhum interesse coletivo ou outro fator relevante que torne imperiosa a intervenção estatal, o Estado deve se abster de criar uma empresa estatal.

O caráter transitório da intervenção estatal é o outro lado dessa conclusão. Ainda que tenha sido justificável a criação de uma empresa estatal, a presença do requisito que deu ensejo à sua instituição deverá ser constantemente reavaliada. Caso tenham se alterado as condições e não seja mais necessária a atuação da empresa estatal, ela deverá ser privatizada ou extinta. É por isso que se pode afirmar que, em regra, as empresas estatais são transitórias. Sua existência só se justifica se continuar presente ao menos um dos requisitos constitucionais: imperativo da segurança nacional ou relevante interesse coletivo.

Obviamente, a questão da solvabilidade da empresa estatal torna-se relevante nesse contexto. Isso porque pode se chegar à conclusão de que outros instrumentos, diversos dos da criação de uma empresa estatal, são mais eficientes para a consecução dos objetivos buscados pela Constituição Federal.

Como se vê, a questão da solvência (ou insolvência) das empresas estatais é muito mais complexa do que poderia parecer à primeira vista. É necessário compreender que há situações bastante diversas, que requerem soluções igualmente diferentes. Em regra, haverá uma espécie de tradeoff: o Estado pode constituir e manter uma empresa estatal e ela pode até mesmo ser deficitária, mas deve haver um interesse legítimo na manutenção de uma situação como essa.

Estabelecidas essas premissas, pode-se passar à questão da aplicabilidade do instituto da falência às empresas estatais, bem como do regime de precatórios.

Ainda nessa ideia de transitoriedade, importante conhecer as recentes alterações pelas quais passou o Decreto n. 2.594/1998, que trata do Programa Nacional de Desestatização, com relação à avaliação periódica das empresas estatais realizada pelo Conselho Nacional de Desestatização – CND. Para tanto, veja trecho do art. 10 de tal norma:

Art. 10 do Decreto n.º 2.594/1998

Art. 10. Compete ao CND:

I – recomendar, para aprovação do Presidente da República, meios de pagamento e inclusão ou exclusão de empresas, inclusive instituições financeiras, serviços públicos e participações minoritárias no PND;

[…]

§ 6º  O CND, para fins da recomendação de inclusão de empresas no PND, ressalvada a prerrogativa de exercício a qualquer tempo da competência de que trata o inciso I do caput, deverá:    (Incluído pelo Decreto nº 10.263, de 2020)      (Revogado pelo Decreto nº 11.580, de 2023)

I – avaliar, quadrienalmente, a sustentabilidade econômico-financeira de todas as empresas estatais com controle direto da União, além de verificar se permanecem as razões de imperativo à segurança nacional ou de relevante interesse público que justificaram a sua criação; e           (Incluído pelo Decreto nº 10.263, de 2020)       (Revogado pelo Decreto nº 11.580, de 2023)

II – avaliar, bienalmente, a sustentabilidade econômico-financeira de todas as empresas estatais dependentes, observado o disposto no inciso III do caput do art. 2º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, além de verificar se permanecem as razões de imperativo à segurança nacional ou relevante interesse público que justificaram a sua criação.           (Incluído pelo Decreto nº 10.263, de 2020)      (Revogado pelo Decreto nº 11.580, de 2023)

O outro aspecto a ser analisado em relação às empresas estatais, diz respeito à liberdade gerencial, aspecto que tem sido enfatizado pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito de julgamentos que trataram da desnecessidade de lei específica para a constituição ou alienação de subsidiárias de empresas estatais.  Leia o trecho do voto do Ministro Alexandre de Moraes na ADI-MC n. 5.624:

ADI-MC n.º 5.624
Supremo Tribunal Federal

Trata-se de Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas por entidades diversas em face de dispositivos da Lei Federal 13.303/2016, norma que “dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

A ADI 5.624, proposta pela Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal, FENAEE, e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro, CONTRAF/CUT, questiona integralmente a constitucionalidade da Lei 13.303/2016, mas de modo especial os artigos 7º, 16, 17, 22 e 25, por fundamentos que seriam essencialmente os seguintes: (a) a norma estabeleceria restrições e limitações ao exercício da prerrogativa do Chefe do Poder Executivo e dos Ministros de Estado para o exercício da direção superior da Administração Pública; (b) o estatuto editado ofenderia o art. 173, § 1º, da CF, ao pretender alcançar a totalidade das empresas estatais, mesmo aquelas que prestam serviços públicos ou estão sujeitas a regime de monopólio da União; (c) haveria desrespeito à autonomia dos entes subnacionais (pacto federativo); (d) certas vedações à investidura em cargos do Conselho de Administração (art. 17, § 2º, I e III) seriam irrazoáveis e discriminatórias; (e) a Lei 13.303/2016 teria imposto regras mais restritivas às empresas estatais em comparação às normas vigentes para as empresas privadas.

A ADI 5.846, proposta pelo Partido Comunista do Brasil, impugna especificamente o art. 29, XVIII, da Lei 13.303/2016, e, por arrastamento, dispositivos do Decreto 9.188/2017, que o regulamenta. Argumenta que a alienação do controle acionário de empresas estatais, subsidiárias e controladas dependeria de prévia autorização legislativa, além de não prescindir de procedimento licitatório (art. 37, XIX, XX e XI, da CF).

A ADI 5.924 foi ajuizada pelo Governador do Estado de Minas Gerais para impugnar os arts. 5º ao 26 (disposições sobre governança corporativa) e os arts. 28 ao 84 (regras sobre licitações e contratos), todos da Lei 13.303/2016. Alega essencialmente que: (a) haveria violação à autonomia dos entes federativos; (b) ocorreria violação da reserva de iniciativa do chefe do Poder Executivo para propositura de leis sobre organização e funcionamento desse Poder; (c) as regras sobre investidura em cargos do Conselho de Administração e Diretorias (além da criação dos órgãos de auditoria interna) seriam irrazoáveis e estariam em conflito com o Código Civil e a Lei das Sociedades Anônimas; (d) o alcance da Lei 13.303/2016 às empresas prestadoras de serviços públicos violaria o art. 173, § 1º, da CF, pois a União não teria competência para legislar sobre o estatuto das empresas estatais pertencentes aos demais entes federativos; (e) não haveria isonomia com as normas vigentes para as empresas privadas, em ofensa ao art. 173, § 1º, II, da CF.

Por fim, a ADI 6.029, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro, veicula impugnação a dispositivos do Decreto 8.945/2016, que regulamenta certos aspectos da Lei 13.303/2016, entre os quais a possibilidade de alteração dos estatutos sociais das empresas estatais por ato da Assembleia-Geral. A entidade alega que o estatuto social da Caixa Econômica Federal somente poderia ser alterado por decreto do Presidente da República, conforme preconiza o Decreto-lei 759/1969, recepcionado pela CF/88 como lei complementar. Argumenta também que a Lei 13.303/2016 seria formalmente inconstitucional no que diz respeito à CEF, pois, sendo esta integrante do sistema financeiro nacional, sua regulamentação dependeria de lei complementar (art. 192 da CF).

Em todas essas ações diretas, há pedido de medida cautelar para determinar a suspensão dos mencionados dispositivos da Lei 13.303/2016 e atos regulamentares correlatos.

O eminente Relator, Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, determinou a tramitação conjunta dessas ações e proferiu decisão monocrática nos autos da ADI 5.624 para conceder medida cautelar para restringir a eficácia do art. 29, caput e inciso XVIII, da Lei 13.303/2016, delimitando: (a) que a venda de ações de empresas públicas, sociedades de economia mista (e empresas subsidiárias ou controladas) depende de prévia autorização legislativa, sempre que se cuide de alienar controle acionário; e (b) que a venda de ações em bolsa, com dispensa de licitação, não pode ocorrer quando implicar perda do controle acionário.

Essa é decisão ora submetida a referendo por este Plenário. […]

II) ANÁLISE DA NECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA.

A REGRA CONSTITUCIONAL, portanto, é a não exploração diretamente de atividade econômica pelo Estado. A EXCEÇÃO somente será possível quando necessário aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, cuja análise depende da somatória de vontades dos Poderes Executivo e Legislativo.

Explico.

A EC 19/1998, alterando a redação original do inciso XIX do art. 37, estabeleceu que somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação.

A EC 19/98, apesar de manter a necessidade de prévia edição de lei, para constituição de empresas públicas, sociedades de economia mista, autarquias e fundações, inovou em sua regulamentação.

Dessa forma, em relação às autarquias, a Constituição Federal permanece exigindo a edição de lei ordinária específica para sua criação.

No entanto, em relação às empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações, a EC 19/98 não mais exige a edição de lei específica que as criasse. Essa exigência foi substituída por dois requisitos:

i) Edição de lei ordinária específica autorizando a instituição de empresa pública, sociedade de economia mista e fundação;

ii) Edição de lei complementar que defina a área de atuação da empresa pública, sociedade de economia mista e fundação. Esse requisito, porém, deve ser interpretado em consonância com o art. 173 da Constituição Federal, cuja previsão traz que, ressalvados os casos previstos na Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO aponta que

“a EC nº 19 corrigiu uma falha do artigo 37, XIX, da Constituição, que exigia lei específica para a criação de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia e fundação. O dispositivo era criticado porque, em se tratando de entidades de direito privado, como a sociedade de economia mista, a empresa pública e a fundação, a lei não cria a entidade, tal como o faz com a autarquia, mas apenas autoriza a criação, que se processa por atos constitutivos do Poder Executivo e transcrição no Registro Público. Com a nova redação, a distinção foi feita” (Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 332).

A Constituição Federal, portanto, adotou o princípio da especialidade no tocante às entidades integrantes da Administração Pública indireta e dotadas de personalidade jurídica de direito público ou privado, criadas com o objetivo de prestação de serviços públicos ou exploração de atividade econômica.

A Constituição Federal, em seu art. 37, inciso XIX, determina que somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação.

Dessa forma, no caso das autarquias, a incidência do princípio da especialidade impedirá o afastamento, no exercício de suas atividades, das finalidades e dos objetivos determinados na lei de sua criação, enquanto na hipótese das empresas públicas, das sociedades de economia mista e das fundações, a especialidade refere-se à obrigatoriedade de obediência às áreas de atuação fixadas pela lei complementar a que se refere o inciso XIX do art. 37, e a suas finalidades previstas na lei que autorizará sua instituição (STF – Pleno – ADIN 1.840/DF – Medida cautelar – Rel. Min. CARLOS VELLOSO. Decisão: 25/6/1998. Informativo STF n.116).

Porém, enquanto compete ao Congresso Nacional autorizar ao Poder Executivo, por meio de lei específica, a criação de empresa pública e sociedade de economia mista, a Constituição prevê a possibilidade de autorização legislativa genérica para a criação de subsidiárias, nos exatos termos dos incisos XIX e XX do artigo 37 da Constituição Federal:

“XIX – somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação;

XX – depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias das entidades mencionadas no inciso anterior, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada”.

A redação dada pela EC 19/98 é essencial para a análise da ADI, pois não é a lei que criará diretamente as entidades, mas há, sim, exigência constitucional expressa de lei autorizativa específica para a criação de sociedade de economia mista, e autorização legislativa genérica para a criação de suas subsidiárias.

Ao Executivo compete concretizar sua criação, por meio de atos constitutivos e transcrição no Registro Público, administrá-la e geri-la financeira e empresarialmente.

Ressalte-se, inclusive, que se, no hiato compreendido entre a iniciativa de lei do Chefe do Poder Executivo solicitando autorização congressual para criação de uma sociedade de economia mista e sua efetiva concretização, houver modificação de posicionamento do Presidente da República quanto à necessidade de intervenção estatal naquela área econômica, não estará obrigado a instituí-la, mesmo tendo o Congresso Nacional aprovado a lei autorizativa.

Em outras palavras, o Executivo não pode criar sociedade de economia mista, nem suas subsidiárias, sem lei autorizativa do Congresso Nacional; mas é ele quem, uma vez concedida a autorização congressual, decide se irá efetivar ou não a criação da sociedade de economia mista, bem como decide, durante a gestão da empresa criada, se haverá ou não necessidade de maior ou menor número de subsidiárias.

Esse entendimento foi consagrado pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, inclusive no tocante à Petrobras e suas subsidiárias, ao definir que:

“Lei no 9.478/97. Artigos 64 e 65: Autorização à Petrobrás para constituir subsidiárias, que poderão associar-se. Majoritária ou minoritariamente, a outras empresas. Ofensa aos arts. 2º, 37, XIX e XX da Constituição Federal. Alegação improcedente. Cautelar indeferida. Dispensa-se de autorização legislativa a criação de empresas públicas subsidiárias, desde que haja previsão para esse fim na própria lei que instituiu a empresa de economia mista matriz. A lei criadora é a própria medida autorizadora. Os artigos 64 e 65 da Lei no 9.478, de 6 de agosto de 1977, não são inconstitucionais. Instituída a sociedade de economia mista (CF, art. 37, XIX) e delegada à lei que a criou permissão para a constituição de subsidiárias, as quais poderão majoritária ou minoritariamente associar-se a outras empresas, o requisito da autorização legislativa (CF, art. 37, XX) acha-se cumprido, não sendo necessária a edição de lei especial para cada caso. A Constituição Federal ao referir-se à expressão autorização legislativa, em cada caso, o faz relativamente a um conjunto de temas, dentro de um mesmo setor. A autorização legislativa, na espécie, abrange o setor energético resultante da política nacional do petróleo definida pela Lei 9.478/97. Inexistência de violação aos incisos XIX e XX do art. 37 e ao art. 2º da Carta Federal” (STF – Pleno – Adin 1.649-1/DF – Medida liminar – Rel. Min. Maurício Corrêa, Diário da Justiça, Seção I, 9 set. 2000, p. 4).

A generalidade da autorização legislativa exigida pelo inciso XX do artigo 37 da CF para criação de subsidiárias, que, inclusive, pode ser concedida na própria lei específica que autorizou a criação da sociedade de economia mista, tem por finalidade garantir a discricionariedade dos atos de gestão empresarial para o melhor alcance das finalidades precípuas da “Empresa-mãe”.

O Poder Executivo sempre deverá observar eventuais limitações expressas constantes na autorização legislativa genérica concedida pelo Congresso Nacional, nos termos do inciso XX do artigo 37 da CF, para criação de subsidiárias, mas não pode ser privado da competência para dispor sobre a organização e o funcionamento da administração, como apontei no julgamento da ADI 1.703, de minha relatoria (Pleno, julgamento em 8/11/2017).

Na hipótese da Lei 9.478/1997, foi exatamente o que ocorreu, pois, nos termos do artigo 64, houve autorização legislativa genérica para constituição de subsidiárias e a previsão de uma única limitação condicionante:

Art. 64. Para o estrito cumprimento de atividades de seu objeto social que integrem a indústria do petróleo, fica a PETROBRAS autorizada a constituir subsidiárias, as quais poderão associar-se, majoritariamente ou minoritariamente a outras empresas”.

O Congresso Nacional, nos exatos termos do inciso XX do artigo 37 do texto constitucional, concedeu a necessária autorização legislativa para que o Poder Executivo organizasse empresarialmente a PETROBRAS, para que pudesse cumprir suas atividades estipuladas em seu objeto social.

A autorização legislativa não criou ou autorizou especificamente a criação da subsidiária “A” ou “B”; não obrigou qualquer criação; mas, sim, permitiu que o Executivo, em atos de gestão empresarial, analisasse essa possibilidade, que, se concretizada, deveria vincular-se a uma única exigência congressual: respeitar a finalidade de cumprir as atividades de seu objeto social.

Inexiste lei específica para a criação das subsidiárias X ou Y. Elas foram criadas pelo Poder Executivo com base na autorização legislativa, em regra, genérica do artigo 64, para garantir a melhor execução das atividades da PETROBRAS.

O Poder Executivo, mesmo com base na autorização legislativa prevista no artigo 64 da Lei 9.478/1997, poderia ter optado por não criar nenhuma outra empresa; ou criá-las todas com associação majoritária em relação a outras empresas (subsidiárias); ou, ainda, com associação minoritária (empresas privadas), pois o Congresso Nacional concedeu essa possibilidade, repita-se, desde que a efetiva criação estivesse direcionada ao “estrito cumprimento de atividades do objeto social da PETROBRAS”.

O Poder Executivo, com base nessa mesma autorização legislativa, pode entender que a dinâmica empresarial de mercado foi alterada e que novas subsidiárias precisam ser criadas, assim como pode entender que, em antigas subsidiárias, há a necessidade de alienações societárias, com ou sem perda de controle acionário, pois não estariam mais cumprindo sua finalidade legal, qual seja, auxiliar o efetivo cumprimento de atividades do objeto social da PETROBRAS que integrem a indústria do Petróleo.

Ao autorizar legislativamente a criação da “Empresa-mãe” (Sociedade de economia mista), com base no inciso XIX do artigo 37 da CF, e, genericamente, criações de subsidiárias, com base no inciso XX do referido artigo, o Congresso Nacional pautou-se por conceder importantes instrumentos gerenciais para garantir o sucesso da principal empresa.

A inexistência de expressa proibição ou limitação de alienação societária em relação à autorização legislativa genérica para a criação de subsidiárias corresponde à concessão, pelo Congresso Nacional ao Poder Executivo, de um importante instrumento de gestão empresarial, para garantir a eficiência e eficácia da Sociedade de Economia Mista (“Empresa-mãe”) no cumprimento de suas finalidades societárias.

Há uma limitação que se refere tão somente à autorização legislativa específica prevista no inciso XIX do artigo 37 da Constituição Federal, para criação da Sociedade de Economia Mista (“Empresa-mãe”), a saber: a mesma previsão de “lei formal específica” para autorizar a criação é exigida para a alienação de seu controle acionário, conforme, inclusive, salientei no já citado julgamento da ADI 1703, de minha relatoria (Pleno, julgamento em 8/11/2017).

Dessa maneira, entendo que não há necessidade de prévia e específica autorização legislativa para a alienação do controle acionário das sociedades de economia mista e suas subsidiárias ou controladas, salvo na hipótese de alienação do controle acionário de Sociedade de Economia Mista (“Empresa-mãe”) criada por “lei formal específica”, nos termos do inciso XIX do artigo 37 da CF.

3. DEBATENDO

  1. Considerando as leituras propostas para a aula, como você relaciona a subsidiariedade, a transitoriedade e a liberdade gerencial das empresas estatais e suas subsidiárias?
  2. Você concorda com as visões apresentadas pelos textos que tratam do princípio da transitoriedade?
  3. Diante da revogação do §6º do art. 10 do Decreto n. 2.594/1998 pelo Decreto n. 11.580/2023, permanece válida a análise periódica das empresas estatais federais?
  4. Como você avalia o voto do Ministro Alexandre de Moraes na ADI-MC n. 5.624, considerando as previsões dos incisos XIX e XX do art. 37 da CF?
  5. Compare a decisão do STF na ADI 5.624 com a tomada na ADI 1.649-1, mencionada no voto do Ministro Alexandre de Moraes. Estabeleça pontos de aproximação e distância entre elas.

4. APROFUNDANDO

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas Estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2018.

CUNHA, Cláudia Polto da; MATROBUONO, Cristina M. Wagner. Privatizações, participações minoritárias e subsidiárias. In PINTO JUNIOR, Mario Engler; MATROBUONO, Cristina M. Wagner; MEGNA, Bruno Lopes (coords.) Empresas estatais: regime jurídico e experiência prática na vigência da Lei n. 13.303/2016. São Paulo: Almedina, 2022, p. 363-389.

ISSA, Rafael Hamze. Implementação de políticas de fomento por empresas estatais: entre missão econômica e objetivos subsidiários. Tese de Doutoramento. São Paulo: FDUSP, 2020, 277f.

MEGNA, Bruno Lopes; GABRIELLI, Bruna Tapié. Reorganização societária na administração pública: extinções e M&A em empresas estatais. In PINTO JUNIOR, Mario Engler; MATROBUONO, Cristina M. Wagner; MEGNA, Bruno Lopes (coords.) Empresas estatais: regime jurídico e experiência prática na vigência da Lei n. 13.303/2016. São Paulo: Almedina, 2022, p. 391-421.

MENDONÇA, José Vicente Santos de. O Estado pode dar uma de empresário? Razões e limites da exploração estatal da economia. In SUNDFELD, Carlos Ari et al. Curso de direito administrativo em ação: casos e leituras para debate. São Paulo: Juspodium, 2024, p. 325-348.

SCHWIND, Rafael Wallbach. Insolvência das empresas estatais: a inaplicabilidade do regime falimentar e a questão do pagamento de dívidas por precatórios. In PINTO JUNIOR, Mario Engler; MATROBUONO, Cristina M. Wagner; MEGNA, Bruno Lopes (coords.) Empresas estatais: regime jurídico e experiência prática na vigência da Lei n. 13.303/2016. São Paulo: Almedina, 2022, p. 423-4478.

__________. O Estado acionista: empresas estatais e empresas privadas com participação estatal. São Paulo: Almedina, 2017.

SOARES, Fernando Antônio Ribeiro; BOCORNY, Leonardo Raupp. Fundamentos jurídicos e econômicos para a legitimidade das empresas estatais: uma análise sobre o art. 173 da Constituição Federal de 1988 e o princípio da transitoriedade. In PINTO JUNIOR, Mario Engler; MATROBUONO, Cristina M. Wagner; MEGNA, Bruno Lopes (coords.) Empresas estatais: regime jurídico e experiência prática na vigência da Lei n. 13.303/2016. São Paulo: Almedina, 2022, p. 57-91.