Roteiro de Aula

Como materializar o consensualismo nos Tribunais de Contas?

Deferência, segregação de funções e aderência ao desenho constitucional de auditoria do setor público brasileiro.

1. CONHECENDO O BÁSICO

Era uma vez, em um reino chamado Administração Pública, os moradores se reuniram e convencionaram que a eficiência e a qualidade na prestação dos serviços públicos deveriam integrar o fim buscado pelos agentes incumbidos da organização e funcionamento do reino. Convencionaram que o fim, portanto, não deveria ser guiado por interesses exclusivamente pessoais, corporativistas, daí por que as escolhas decisórias deveriam ser adequadamente motivadas, até para que os demais moradores do reino, não incumbidos da missão de organização e funcionamento dele, pudessem exercer o controle dos atos praticados em nome do reino. 

Surgiu, então, uma relação de especial sujeição, por via da qual se passou a ser conferido aos moradores o direito de pedir contas aos responsáveis pela gestão do reino, tendo sido invocado como parâmetro normativo o artigo 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de um lado, e o parágrafo único do art. 70 da CRFB/88, do outro. 

Os moradores, por serem adeptos da linha “montesquiana” – quem tem o poder tende a dele abusar – buscaram, então, uma saída para mitigar riscos de descumprimento do pacto firmado, tendo chegado ao consenso de que o efetivo cumprimento do pacto dependeria da ação de um grupo de moradores distinto daquele grupo a quem era incumbida a missão de execução de ações voltadas à organização e ao funcionamento do reino, sem houvesse, contudo, qualquer relação de subordinação hierárquica entre ambos.  

Fazia-se necessária a existência desse grupo incumbido da missão de controle, com vistas a concretizar a relação jurídica entre o direito de pedir contas e o dever de prestar contas. Percebeu-se, desde então, que os integrantes desse grupo, para além de não poderem participar da ação controlada, deveriam agir de forma imparcial, deferente e qualificada, sem enviesamentos, estando também sujeitos ao dever de motivar e fundamentar adequadamente as suas ações controladoras. 

Foi instituído, então, um sistema constitucional de Controle da Administração Pública, integrado por distintos órgãos de controle, dotados de competências institucionais igualmente distintas. Alguns mais vocacionados para a prevenção à ocorrência da má-gestão, outros, diferentemente, mais vocacionados para a responsabilização de agentes que tenham atuado em condições de excesso ou desvio de poder.

Daí surge um órgão que se convencionou denominá-lo de Tribunal de Contas. Uma instituição que passou a ser rotulada de guardiã das finanças públicas, responsável por garantir que os recursos do reino pudessem ser utilizados de maneira justa e eficaz. Para que ela pudesse atender a esses fins, os moradores do reino, que integravam um terceiro grupo, consignaram, na Constituição do reino, que essa instituição deveria ser integrada por um quadro próprio de pessoal, dotada, especialmente, de competências fiscalizatórias, sancionadoras e cientificadoras.  

No entanto, havia um desafio: como fazer com que um mesmo órgão pudesse exercer distintas funções de auditoria/investigação e julgamento?

A Constituição do reino, então, CRFB/88, previu que o exercício desse controle não prescindiria do dever de observância do devido processo legal, o que abrange o abandono de modelos inquisitoriais, fazendo-se necessária, então, a atuação segregada de distintos agentes na concretização das distintas atribuições de auditar/instruir processos e julgar, conclusão que se extrai do art. 5º, LIV e LV c/c arts. 73 da aludida Constituição.

Estatuiu, no art. 71, um elenco de competências de natureza controladora, textualizando, expressamente, que ao “Tribunal de Contas compete”, sinalizando que a legitimidade do exercício desse plexo de competências institucionais se daria a partir de uma colegialidade processual-decisória. 

Por qual razão a Constituição estabeleceu essa colegialidade judicante e processual? Em razão da deferência administrativa, reconhecendo que a expertise e a discricionariedade regrada dos agentes que atuam no exercício da função administrativa/executiva não poderiam ser apenas um adereço doutrinário, pautando-se pela presunção de legitimidade relativa dos atos praticados no exercício dessa função, daí por que o afastamento dessa presunção deve ocorrer após valoração feita por distintos agentes, numa dialética efetiva.

Se cada país convenciona adotar o seu modelo de auditoria do setor público, esse desenho institucional controlador foi o modelo adotado pela República Federativa do Brasil. 

Após longos anos, contudo, os agentes que atuavam no exercício da organização e funcionamento do reino passaram a reclamar de excesso do poder punitivo do grupo incumbido da missão de controlar os atos por ele praticados, o que, segundo eles, estaria pavimentando caminho para um ambiente institucional permeado pelo medo, e que isso, por via de consequência, estaria interditando o surgimento de soluções inovadoras e adequadas para os problemas identificados, especialmente em razão da multiplicidade e sobreposição de órgãos de controle. 

Isso reacendeu a discussão em torno da necessidade de instituição de um modelo que não mirasse no punitivismo como fim a ser alcançado, mas que também não se constituísse um instrumento legitimador da impunidade. A consensualidade, então, apresentou-se como uma promessa para o alcance da efetividade das ações controladoras, dando ensejo às mudanças no plano legislativo infraconstitucional, tendo sido adotados como fundamentos para as mudanças o conceito de justiça multiportas, o princípio da eficiência (art. 37 da CF), o princípio da consensualidade (Preâmbulo e art. 4º, inciso VII da CF), os arts. 3º, §3º, 174 e 175 do CPC, as Leis n.s 13.129 e 13.140, 2015, a relação entre custo e benefício do controle, o controle dialógico e colaborativo, dentre outros. 

A ausência de uma jurisdição administrativa, no Brasil, abriu espaço para que o Direito Administrativo dialogasse frequentemente com o Direito privado, o que possibilitou que os parâmetros normativos desse ramo do Direito viessem a ser invocados na materialização da consensualidade desenvolvida nos ambientes institucionais regidos predominantemente por institutos do Direito Público. 

Em 2018, então, ouvindo o clamor de agentes públicos e privados que manejam recursos públicos, legislação infraconstitucional produziu significativas mudanças na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por meio da Lei n. 13.655, de 2018, nela inserindo dez dispositivos que sinalizam para o alcance de um controle concertado, consequencialista e aderente aos fins buscados pelas potestades sancionatórias. 

No rol desses dispositivos, inclui-se o art. 26 da LINDB, indicado como sendo uma cláusula geral do consensualismo na Administração Pública, cuja materialização, para alguns doutrinadores, a exemplo da Professora Juliana Palma, prescinde de uma lei autorizativa e disciplinadora dos parâmetros da consensualidade, sendo, portanto, cláusula de aplicabilidade direta e imediata. 

A partir disso, a Lei n. 14.133, de 2021, o novo marco de licitações e contratos, passou a tratar da consensualidade, nos artigos 151 a 154, ao passo que a Lei n. 8.429, de 1992, com as profundas alterações produzidas pela Lei n. 14.230, de 2021, passou a contar com o Acordo de Não Persecução Cível (ANPC), previsto no art. 17-B. 

Esse novo cenário normativo passou a exercer influência na processualização das competências dos Tribunais de Contas, órgãos cuja razão de existência não se encontra direta e primordialmente voltada à responsabilização de agentes públicos ou privados, mas que são dotados de competência sancionatória, daí por que a régua da consensualidade utilizada por essas instituições não pode ser aquela mesma utilizada por outros sistemas de responsabilização, dada as distintas peculiaridades entre as esferas administrativa, controladora e judicial.  

Muito embora os Tribunais de Contas já dispusessem de instrumentos típicos de consensualização, a exemplo do Termo de Ajustamento de Gestão (TAG), o fato é que,  a partir das mudanças operadas pela LINDB, essas instituições controladoras passaram a ser influenciadas por essas mudanças, o que levou ao surgimento de outros instrumentos: “Mesas Técnicas” (TCMSP, TCEMT e TCESE) e os “Processos de Solicitação de Solução Consensual (SSC)”, processos que desenvolvem no âmbito da “SecexConsenso” (TCU).

A par dos instrumentos típicos, há, ainda, os instrumentos atípicos de materialização do consensualismo no âmbito dos Tribunais de Contas. É o que ocorre, por exemplo, com o juízo de admissibilidade em denúncias e representações, os critérios de seletividade em auditorias ordinárias, as oitivas prévias em fiscalizações, também denominadas de “comentários de gestores em relatórios preliminares de auditorias”, impulsionadas pelo art. 171, inciso I da Lei n. 14.133, de 2021, e art. 14 da Resolução TCU n. 315, de 2020, editadas a partir das mudanças operadas pela LINDB. 

 Isso significa que, ao invés de apenas impor decisões, os Tribunais de Contas passaram a ouvir e a considerar as justificativas e os planos de ações apresentados pelos agentes sujeitos ao dever de prestar contas. Essa abordagem, em certa medida, passou a considerar a capacidade dos administradores de encontrar soluções adequadas para os problemas identificados, promovendo um ambiente de cooperação.

Ou seja, a definição de consensualismo passou a ganhar contornos diferenciados, quando, então, os sábios do reino perceberam que a colaboração e o diálogo poderiam ser mais eficazes diante daquelas situações em que o rigor sancionador não se revelasse instrumento adequado ao alcance da efetividade da ação controladora. A ideia, então, passou a ser movida pela resolução de conflitos por meio do consenso, incentivando a participação de todos os envolvidos no processo de controle externo, mantendo-se aderência, sempre, à colegialidade processual-decisória (art. 71 e 75 da CRFB/88 c/c art. 1º, §3º, inciso I da LOTCU). 

Pois bem. Conhecidos os fundamentos do consensualismo adotados pelo ordenamento jurídico brasileiro e ciente de que a Constituição Federal de 1988 adotou o modelo colegiado de auditoria do setor público, o que você precisa saber sobre os parâmetros e os limites à materialização da consensualidade no âmbito dos 33 Tribunais de Contas do Brasil?

Em primeiro lugar, você deverá conhecer o desenho institucional dos Tribunais de Contas, estampado nos artigos 71 a 75 da CRFB/88, na Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, desenho reproduzido pelas leis orgânicas dos Tribunais de Contas dos entes nacionais, por força até do art. 75 da CRFB/88, que versa sobre a simetria constitucional. Deverá conhecer, igualmente, o Regimento Interno do TCU, parâmetro normativo a partir do qual você conhecerá a forma como essa instituição de matriz constitucional adota os pressupostos de validade e regularidade processual.

Em segundo lugar, esta aula deve contribuir para que você possa transformar o texto normativo em norma jurídica, à luz de uma linguagem jurídica competente. Como ponto de partida, não pode perder de vista que a materialização das competências constitucionais outorgadas aos Tribunais de Contas do Brasil impacta na esfera de direitos subjetivos de agentes sujeitos ao dever de prestar contas, seja diretamente, atingindo honra e patrimônio, seja reflexamente, atingindo liberdade, isso a partir do exercício da competência cientificadora (art. 71, inciso XI da CRFB).

Disso resulta necessário concluir que os princípios e garantias inerentes ao Direito Administrativo Sancionador devem ser aplicados à processualística no âmbito dessas instituições. Isso pressupõe a observância da segregação entre as distintas funções de auditoria/investigação/instrução processual e julgamento, em desvelo ao devido processo legal na esfera de controle externo. 

Em terceiro lugar, a aula se propõe a construir conhecimento em torno do manejo dos instrumentos típicos de consensualidade no âmbito dos Tribunais de Contas, notadamente o processo de solução de controvérsias, que se se desenvolve no TCU, e os termos de ajustamento de gestão e as mesas técnicas, que se desenvolvem nos TCEs e TCMSP, especialmente. 

Compreendidos os pressupostos de validade e regularidade na processualização das competências dos Tribunais de Contas, você será provocado a debater sobre como materializar o consensualismo respeitando a deferência administrativa, a segregação de funções e o modelo constitucional de auditoria do setor público adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

A primeira leitura é direcionada ao artigo intitulado A CONSENSUALIDADE ABUSIVA NO DIREITO ADMINISTRATIVO: NOTAS INICIAIS DE TEORIZAÇÃO, de autoria de André Cyrino e Felipe Salathé, publicado em Revista Estudos Institucionais, v. 10, n. 2, p. 634 – 660, maio/ago. 2024. 

A leitura do artigo se propõe a evidenciar que o uso desvirtuado dos instrumentos de consensualização pode servir apenas de meio para conferir aparência de legitimidade ao processo de solução consensual, o que pode colocar em risco a efetividade da ação controladora como pode colocar o agente sujeito ao dever de prestar contas na condição de objeto de investigação, e não de sujeito de direitos. 

A leitura, portanto, presta-se a corroborar com o entendimento de que a materialização da consensualidade não pode prescindir do dever de respeito ao devido processo legal, com vistas a mitigar riscos de abuso de poder, seja por excesso, seja por desvio.  

A CONSENSUALIDADE ABUSIVA NO DIREITO ADMINISTRATIVO: NOTAS INICIAIS DE TEORIZAÇÃO

Por André Cyrino e Felipe Salathé

RESUMO: O Direito Administrativo tem apostado na adoção de formas consensuais de atuação administrativa. Não obstante, há casos em que a Administração Pública celebra acordos administrativos com particulares com suposto lastro na consensualidade, mas que, na essência, escondem imposições unilaterais de vontade do Estado. Isso ocorre em situações nas quais o particular se vê circunstancialmente premido a celebrar o acordo e a aceitar determinadas cláusulas que sejam desproporcionais. O objetivo deste artigo é, sem esgotar o tema, explorar esse fenômeno, o qual denominaremos consensualidade abusiva. No intuito de sugerir caminhos iniciais para a sistematização teórica da questão, traçaremos contornos para uma noção de consensualidade abusiva, apontaremos casos concretos nos quais ele teria ocorrido na prática do Direito Administrativo brasileiro, e sugeriremos possíveis formas de controle.

[…]

INTRODUÇÃO A consensualidade é assunto que possui locus definitivo no cardápio dos temas importantes do Direito Administrativo brasileiro. Numa via de mão dupla, o direito positivo 3 e a academia 4 têm apostado no uso de instrumentos mais dialógicos e menos impositivos de atuação administrativa, com a tônica de que esse caminho seria mais eficiente e legítimo. Essa virada pró-consenso trouxe desafios, mas se consolidou. É difícil imaginar uma regressão da consensualidade nas administrações públicas atuais. Sem embargo, na contramão dessa transformação, há situações nas quais os instrumentos consensuais são desvirtuados. Em casos tais, alcançam-se resultados não tão legítimos e concertados, mas definições impositivas, unilaterais e até arbitrárias pelo Poder Público. Esse possível desvio é o que chamamos de consensualidade abusiva. Refere-se a fenômeno em que, apesar da aparente composição, há um excesso de autoridade por parte do Poder Público a implicar desequilíbrio, circunstâncias que fazem com que o particular contraia obrigações ilegítimas5. No âmbito do STF, por exemplo, uma situação nesse sentido, que ainda pende de julgamento, é a da ADPF nº 1.0516, a qual discute a constitucionalidade de acordos de leniência após a celebração de acordo de cooperação entre o MPF, a AGU, a CGU, o TCU e o Ministério da Justiça, em 2020. Sem opinar sobre o acerto do que se sustenta, discute-se se tais acordos não teriam sido objeto de consenso, mas de pressão ilegítima; de estratégias abusivas de condução da acusação. Outro caso que ganhou notoriedade foi o acordo celebrado pela CGU com professores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), por intermédio do qual se lhes obrigava a não fazer críticas ao então presidente da república por um prazo de 2 anos. O caso chegou ao conhecimento do STF via ADI nº 6.7447, argumentando se pela abusividade na atuação do controlador no sentido de frustrar a liberdade de expressão dos docentes.8 Citem-se, ainda, a ADPF nº 508 e a Reclamação nº 33.667, que se dirigem a questionar acordos celebrados entre a Petrobras, o MPF e o Department of Justice dos EUA. Esses acordos previram, em essência: (i) o ressarcimento de valores decorrentes dos desvios de verbas em episódios de corrupção descobertos pela chamada Operação Lava-Jato; e (ii) que parte dos pagamentos que seriam feitos, a título de indenização, sejam vertidos para a constituição de entidade voltada ao financiamento de políticas e programas de combate à corrupção. Para esse segundo item, seria instituído um comitê de administração da entidade composto por membros do MPF. 9-10 O que se discutia nesse caso era se, entre outros pontos, tais acordos poderiam conferir poder ao controlador de administrar bens de entidades privadas para fins de financiamento de políticas públicas. Ou seja, a abusividade das cláusulas, segundo a argumentação apresentada na inicial, decorreria do ganho de poder do MPF, para além de suas competências constitucionalmente definidas. Nessa linha, a discussão sobre a ocorrência de consensualidade abusiva tem sido levada a conhecimento do Poder Judiciário. Isso foi notado pelo legislador, e a preocupação com o desequilíbrio da consensualidade administrativa aparece no art. 26 da LINDB, que prevê o dever de proporcionalidade nos acordos celebrados de uma maneira geral. Nada obstante, ainda que presente na jurisprudência e inerente ao art. 26 da LINDB, a literatura especializada ainda não se debruçou especificamente sobre o assunto no País. Muito embora haja comentários ao referido dispositivo11, bem como menções gerais à preocupação com excessos administrativos em seus acordos12, parece-nos que carece-se de atenção direta e sistemática ao abuso da consensualidade no Brasil. Grosso modo, a academia advoga pela proporcionalidade dos acordos, mas há pouca teorização sobre como identificar o desequilíbrio ou sobre como controlá-lo. Igualmente, inexistem estudos que enfrentem diretamente o tema da abusividade, que será uma das formas de vislumbrar a desproporcionalidade a que se refere o art. 26 da LINDB. Daí a demanda para que se aprofunde o tema, sugerindo-se caminhos de sistematização e desenvolvimento de uma dogmática. A consensualidade não deve ser abandonada, e entender quando ela é disfarce para excessos é fundamental para preservá-la. O objeto deste artigo é tentar iniciar o exame específico dos contornos de caracterização dessa modalidade. Não se tem a pretensão de esgotar o tema, mas provocar reflexões sobre possíveis desvios de finalidade nas posturas dialógicas, por vezes, celebradas sem maiores críticas, sugerindo alguns encaminhamentos. O desenvolvimento de uma noção de consensualidade abusiva tem relevância teórica e prática. No mundo das ideias, será possível enriquecer os debates sobre a consensualidade na Administração Pública, propondo análises críticas sobre seus eventuais descaminhos por parte do administrador. No plano prático, pretende-se indicar estratégias voltadas a mitigar os problemas da consensualidade abusiva, bem como ser base para a constituição de ferramentas para solucionar casos concretos, como os listados acima. Para tanto, o texto está organizado em cinco capítulos, sendo o primeiro esta introdução. No segundo capítulo, abordaremos a aposta que o direito administrativo brasileiro fez na consensualidade. A ideia é mostrar que o tema se tornou inafastável, mas ainda traz desafios, como o risco de abusividade. No terceiro capítulo, ofereceremos ao leitor uma noção inicial de consensualidade abusiva e demonstraremos a relevância de que essa ideia seja aprofundada. Além disso, apresentaremos de que forma, sob determinadas circunstâncias, as ferramentas dialógicas podem encobrir estratégias autoritárias do Poder Público. No quarto capítulo, indicaremos possíveis maneiras para se lidar com o problema, tanto por meio da aproximação da figura da consensualidade abusiva a algumas categorias tradicionais do direito brasileiro, quanto por meio de algumas sugestões de mudanças normativas. Ao final, há um breve encerramento conclusivo.

[…]5. CONCLUSÃO A consensualidade administrativa, conquanto consagrada como instrumento relevante de atuação pública, traz desafios. A consensualidade abusiva é um deles. Trata-se dos casos em que, ao ensejo de buscar solução dialógica, o Poder Público esconde imposições arbitrárias. Cuida-se de um desvio de finalidade no processo negocial, em que, no lugar de um diálogo entre as partes, os agentes públicos se valem de estratégias para impor sua vontade ao particular. A jurisprudência começa a apresentar casos nos quais essa discussão ganha espaço no Brasil, mas ainda faltam aprofundamentos acadêmicos específicos sobre ela. O estudo de uma noção de consensualidade abusiva tem relevância teórica e prática. No mundo das ideias, ela enriquece os debates sobre a consensualidade na Administração Pública, propondo análises críticas sobre seus eventuais descaminhos por parte do administrador. No plano prático, sugere estratégias voltadas a mitigar os problemas da consensualidade abusiva em casos concretos, bem como ser base para a constituição de ferramentas para solucionar casos concretos, como os listados acima. O objetivo neste trabalho não foi o de exaurir a discussão ou propor soluções definitivas e absolutas para contornar o problema, mas provocar discussões sobre o tema, sugerindo caminhos para sua sistematização. Caminhos que partem, primeiro, da constatação de que há assimetria de poder de negociação entre o Poder Público e o particular, o que, por vezes, é usado com ainda mais intensidade. Essa assimetria, num segundo momento, desdobra-se na adoção cláusulas abusivas, que seriam aquelas nas quais o Estado estabelece obrigações para o particular desproporcionais aos fins que buscam. Não necessariamente todo acordo imposto terá cláusulas abusivas, mas é possível que a consensualidade abusiva ganhe espaço tanto na proposição e aceitação do acordo quanto na redação de suas disposições. Como possíveis soluções para enfrentar o problema, o direito público brasileiro possui normas, ainda que não sistematizadas, que podem ser úteis para reprimir o desvio de finalidade na celebração de acordos administrativos, a exemplo: (i) dos arts. 26 e 27 da LINDB, que versam sobre o dever de proporcionalidade nos acordos e nos processos administrativos; (ii) do art. 2º alínea “e” e parágrafo único alínea “e” da Lei de Ação Popular, que torna causa de nulidade o desvio de finalidade na ação administrativa em geral; (iii) dos arts. 2º caput da Lei nº 9.784/1999 e 37 caput da Constituição, que consagram os deveres de motivação e publicidade na administração pública; e (iv) de alguns dispositivos da Lei de Abuso de Autoridade (notadamente os arts. 27, 30 e 32), os quais reprimem certas condutas das autoridades públicas em processos administrativos. Isso sem mencionar normas de direito civil que vedam o abuso de direito, a coação, a lesão e a simulação (arts. 187, 151, 157, 421 e 422), as quais são nortes para identificação de situações ilícitas. Tudo isso fornece um aporte jurídico relevante para subsidiar o combate à consensualidade abusiva. Amparado por elas, é possível adotar estratégias que vão desde a sugestão de mudanças legislativas voltadas a enfrentar o problema, notadamente com normas processuais, até o destaque para que o Poder Judiciário possua caminhos para inibir essas práticas.

A segunda leitura é o artigo disponível em Constitucionalidade da Secex-Consenso do TCU , por via do qual os autores lançam importantes reflexões sobre a ADPF n. 1.183.  

ADPF nº 1.183 e constitucionalidade da Secex-Consenso TCU: prospecções possíveis no STF

Por Gustavo Justino de Oliveira e Bruno Vasconcelos Teles
Conjur, 27 de outubro de 2024

A Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (Secex Consenso) foi criada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por meio da Instrução Normativa nº 91/2022 [1] como parte da estratégia de modernização do tribunal e com o objetivo de resolver consensualmente disputas administrativas, especialmente aquelas envolvendo entes públicos e privados. A iniciativa, liderada pelo presidente do TCU, ministro Bruno Dantas, teve o propósito de contribuir para a efetividade das políticas públicas e da segurança jurídica de soluções tempestivas construídas de modo colaborativo e célere com a sociedade e os entes públicos.

A estrutura da Secex está vinculada à Secretaria-Geral de Controle Externo, com atribuições de mediação e prevenção de litígios, prevenindo que questões administrativas se transformem em contenciosos judiciais prolongados e onerosos. Sua natureza jurídica é, então, predominantemente administrativa, com enfoque na consensualidade e na mediação.

O TCU fundamenta sua criação na tentativa de modernizar e tornar mais ágil a resolução de disputas dentro da administração pública, alinhando-se com os princípios da governança pública moderna e da segurança jurídica, em consonância com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) e a Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021)[2].

Eixos principais e observância ao princípio da legalidade

Estruturalmente, a Secex Consenso é dividida em quatro eixos principais que priorizam, transversalmente, a construção colaborativa de soluções consensuais na administração pública; o diálogo com as instituições na prevenção dos conflitos; o compartilhamento de informações entre entidades públicas durante a fase de negociação dos acordos de leniência, com a inclusão dos processos do TCU no escopo desses acordos; a elaboração e execução de estratégias para a participação cidadã no dia a dia do TCU, com o intercâmbio nacional e internacional de boas práticas; e a articulação de ações do controle externo com os Tribunais de Contas do Brasil, além do compartilhamento de boas práticas de políticas públicas descentralizadas.

Sob tal ótica, o funcionamento da Secex Consenso não exclui a atuação do tribunal em nenhum outro procedimento ou instrumento de fiscalização. A unidade institucionaliza um processo que já era feito informalmente, por meio de reuniões no curso de auditorias e acompanhamentos, visando a consecução do princípio da eficiência [3] no âmbito dos procedimentos submetidos ao exame da Corte de Contas.

A busca pela solução consensual de conflitos não pode se sobrepor ao princípio da legalidade, pois se assim o fizesse poderia pôr em risco o próprio Estado de Direto. Importante observar que toda proposta de solução consensual buscará, dentro do princípio da legalidade, a alternativa mais eficiente para a sociedade. E dentro dos mecanismos de freios e contrapesos do próprio TCU, a minuta de solução consensual passará pelo crivo tanto do Ministério Público do TCU, quanto do próprio Plenário.

Arguição de descumprimento de preceito fundamental

Diante do impacto causado pela criação e pela atividade desempenhada pela Secex Consenso, o Partido Novo ajuizou, em julho de 2024, a ADPF nº 1.183, no Supremo Tribunal Federal, contestando a constitucionalidade da Instrução Normativa nº 91/2022, que criou a secretaria sob o argumento de que o TCU estaria extrapolando suas atribuições constitucionais ao criar uma estrutura que influencia diretamente na formulação de políticas públicas.

Em suma, os pedidos do Partido Novo incluem a declaração de inconstitucionalidade da Instrução Normativa nº 91/2022, a extinção da Secex Consenso, a anulação dos acordos celebrados sob esta normativa e a proibição de iniciativas semelhantes no futuro [4].

Acerca da fundamentação da ADPF, percebe-se que fora utilizado o argumento de que o ato impugnado:

“[…] inova claramente o ordenamento jurídico e, pior, distorce e distancia o Tribunal de Contas da União da sua atividade constitucional precípua de órgão de controle externo de fiscalização concomitante e posterior ao exercício da atividade administrativa. Por essa razão, a Instrução Normativa TCU nº 91, de 2022, se insere dentro da perspectiva de ato do Poder Público, sobretudo por extrapolar os limites normativos e viola diversos preceitos fundamentais” [5].

Ao manifestar-se, o Ministério Público Federal (MPF) analisou a questão sob dois cenários: formal e material. Formalmente, o MPF considerou que o TCU agiu dentro de sua competência normativa ao editar a Instrução Normativa nº 91/2022, respeitando os limites constitucionais e legais. Entretanto, no que tange ao aspecto material, o MPF destacou preocupações com relação à concentração de poderes nas mãos de um órgão de controle e à ausência de maior participação de outros atores no processo de resolução de conflitos, como o Ministério Público de Contas e a Advocacia-Geral da União (AGU).

Nos termos do parecer emitido pelo MPF [6], embora se reconheça os benefícios em termos de eficiência e celeridade no processo administrativo, recomendou-se ajustes na regulamentação para garantir maior transparência e envolvimento de outros entes públicos relevantes.

Perspectivas para o julgamento da ADPF

Ao examinar a ADPF, o STF pode adotar diferentes caminhos: a primeira possibilidade seria o tribunal não conhecer da ação, entendendo que a matéria pode ser resolvida por outras instâncias, administrativas ou judiciais, sem a necessidade de intervenção constitucional.

Caso decida entrar no mérito, o STF pode declarar a inconstitucionalidade total ou parcial da instrução normativa, acolhendo os argumentos de extrapolação de funções do TCU ou validar a constitucionalidade da norma, sugerindo ajustes em sua regulamentação ou, ainda, reconhecer a constitucionalidade integral da iniciativa, mantendo a Secex Consenso e os acordos firmados sob sua égide [7].

Atualmente, a ADPF nº 1.183, após as devidas manifestações da AGU e da PGR, está com autos conclusos ao celator, ministro Edson Facchin, com as discussões nos bastidores girando em torno do equilíbrio entre eficiência administrativa e garantias legais de controle externo.

São várias as possibilidades colocadas ao crivo do STF.

Ao examinar a ADPF, parece razoável que o tribunal considere que a criação da Secex Consenso reflete uma tendência de modernização da administração pública, alinhando-se a práticas internacionais e a legislações recentes que incentivam a resolução consensual de conflitos, a exemplo da Lindb e da Nova Lei de Licitações, cujas disposições preveem o uso de soluções consensuais como forma de aumentar a eficiência e a segurança jurídica na administração pública [8].

Importância da iniciativa

Neste cenário, a Secex Consenso parece representar ferramenta valiosa, desde que acompanhada de medidas adicionais para garantir sua transparência e a participação de outros entes e órgãos no procedimento. A criação de mecanismos que envolvam diretamente a AGU, o MPF e o Ministério Público de Contas podem aumentar a legitimidade do processo, assim como também podem servir como aliados em defesa da legitimidade da Secretaria a maior publicidade dos acordos celebrados e o monitoramento contínuo de suas atividades.

O uso de soluções consensuais tem sido adotado por outros órgãos públicos, incluindo o próprio STF, o que reforça a legitimidade dessa abordagem na resolução de conflitos dentro da administração pública brasileira [9]. Assim, verifica-se a importância que a Secex Consenso possui em âmbito nacional, visto que se trata de espécie de câmara especializada na solução consensual de conflitos, em âmbito de órgão de controle, fomentando a celeridade e a eficiência nas lides da administração pública.

Sem prejuízo disso, diante do caráter pioneiro da inovação, entende-se bem-vinda a adoção de medidas que propiciem maior transparência nos acordos e nas decisões correlatas, mediante a participação dos demais entes públicos e privados, bem como aperfeiçoamentos no procedimento administrativo seguido pelo órgão, como aliás já vem sendo buscando pela própria Secex-Consenso, a exemplo do 2º Workshop realizado presencialmente no Instituto Sezerdello Corrêa no último dia 18/10/24.

A terceira leitura é de um artigo escrito por procuradores do Ministério Público de Contas que atua junto ao Tribunal de Contas da União, disponível em Consensualidade no TCU: fundamentos, características, natureza e efeitos. A sugestão se deve à vivência institucional dos autores e o manejo direto do instrumento de propostas de solução consensual, o que permite uma leitura crítica e sistematizada da IN TCU n. 91/2022, incluindo o seu rito e a atuação dos distintos atores nos processos de solução consensual que se desenvolvem no âmbito da SecexConsenso. 

Consensualidade no TCU: fundamentos, características, natureza e efeitos

Por Rodrigo Medeiros de Lima e Cristina Machado Costa e Silva
Conjur, 13 de agosto de 2024

É consabido que o Tribunal de Contas da União instituiu, por meio de sua Instrução Normativa nº 91/2022 (IN/TCU nº 91/2022), procedimento de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidade da administração pública federal, em matérias sujeita a sua competência, e criou, na sua estrutura, unidade especializada na condução dos respectivos processos: a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso).

A iniciativa guarda semelhança, por exemplo, com o Centro de Mediação e Conciliação criado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, ao qual compete “buscar, mediante mediação ou conciliação, a solução de questões jurídicas sujeitas à competência do STF que, por sua natureza, a lei permita a solução pacífica”, nos termos do artigo 2º, parágrafo único, da Resolução/STF nº 697/2020.

A possibilidade inaugurada pela IN/TCU nº 91/2022 foi festejada por muitos, que nela enxergam a oportunidade de uma mediação qualificada, apta a agregar maior segurança jurídica aos eventuais ajustes e às partes envolvidas, com o potencial de destravamento de situações contenciosas que se arrastam no âmbito da administração pública federal. Porém, persiste alguma hesitação por parte de setores da opinião pública. Alguns questionam se haveria pertinência com o papel institucional do TCU. Para outros, entretanto, a hesitação se refere à própria ideia de consensualismo na administração pública, em virtude de desconfiança em relação a qualquer diálogo conciliatório entre agentes públicos e privados e de concepção que reputamos, com todas as vênias, vetusta e reducionista do princípio da indisponibilidade do interesse público.

A identificação do interesse público não é em todo caso simples, perpassando, por vezes, complexos juízos de ponderação entre interesses juridicamente relevantes, públicos e privados, constitucional e legalmente tutelados, conforme leciona Binenbojm (Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 111).

Daí porque, em situações de maior complexidade — como são aquelas levadas à intermediação do TCU —, há que se oportunizar ao gestor o exercício da discricionariedade necessária para incorporar esses juízos de ponderação em seu processo decisório, tendo sempre a norma jurídica como parâmetro e baliza.

A despeito do risco de corrupção inerente ao inevitável relacionamento público-privado, o engessamento excessivo do administrador, além de não impedir desvios, conduz à inação e à perpetuação de impasses nas relações público-privadas. São situações que, tal qual a corrupção, drenam recursos escassos e obstaculizam o alcance de objetivos de interesse público.

A alternativa que o TCU propõe envolve a procedimentalização e supervisão — mediante espécie de controle concomitante — do processo negocial e decisório necessário à construção de soluções consensuais, orientadas à redução do risco de ilegalidades e desvios de finalidade, mas também de questionamentos futuros, procurando agregar-lhes credibilidade e estabilidade.

Papel do Ministério Público junto ao TCU

A intenção do presente artigo é explicar como isso é feito, por meio da análise do procedimento instituído pela IN/TCU nº 91/2022, diferenciando os papeis que são desempenhados pelos distintos agentes do controle externo, entre eles o Ministério Público junto ao TCU, incumbido de velar pela boa aplicação do direito no âmbito do controle externo (custos iuris), para o que dispõe de garantias constitucionais que lhe resguardam o exercício independente de suas funções.

Em seus considerandos, a IN/TCU nº 91/2022 aponta alguns de seus fundamentos normativos, a exemplo da Lei nº 13.140/2015, que dispõe sobre a possibilidade de utilização da autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, e do artigo 13, § 1º, do Decreto nº 9.830/2019, que prescreve que a atuação de órgãos de controle deve privilegiar ações de prevenção antes de processos sancionadores.

Além desses, vale mencionar o artigo 30 do Decreto-Lei nº 4.657/1942, que impõe às autoridades públicas atuação proativa em prol da promoção da segurança jurídica, e o artigo 3º, § 2º, da Lei nº 13.105/2015, que estabelece, de forma inequívoca, que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”.

A norma tem em conta, ainda, o fato de o TCU já manter interlocução com gestores e particulares no exercício de suas funções pedagógica e orientadora, “de forma a auxiliá-los no estabelecimento de alternativas para a solução de problemas de interesse da administração pública”.

Estão habilitadas a formular solicitações de solução consensual perante o TCU as mesmas autoridades habilitadas a submeter-lhe consulta [1] — instrumento esse instituído em lei (artigo 1º, inciso XVII, da Lei n° 8.443/1992) e concretizador do papel de orientação, mas também de pacificação de entendimentos e estabilização de controvérsias no âmbito da administração pública federal.

Além desses, são igualmente habilitados na IN/TCU nº 91/2022 os dirigentes máximos das agências reguladoras federais e os ministros do próprio TCU, na condição de relatores de processos em que controvérsia relevante esteja posta (artigo 2º da norma). Neste último caso, a iniciativa depende de manifestação de interesse na solução consensual dos órgãos e entidades da administração pública federal envolvidos na controvérsia (artigo 3º, inciso V, da IN/TCU nº 91/2022).

Entre os requisitos formais estabelecidos na norma para a submissão do pedido, está “a discriminação da materialidade, do risco e da relevância da situação apresentada” e “a especificação das dificuldades encontradas para a construção da solução”, em parecer técnico-jurídico sobre a controvérsia (artigo 3º, incisos I e II, da IN/TCU nº 91/2022).

Autuado o procedimento de Solicitação de Solução Consensual, passa-se à análise da admissibilidade, primeiramente, a título opinativo, pela SecexConsenso, e, em seguida, a título decisório, pelo presidente do TCU. Os critérios de admissibilidade são especificados na norma, ainda que se reserve alguma margem de discricionariedade ao presidente do tribunal, com fins à racionalização da atividade do controle externo e à maximização do valor público por ele gerado, observada, ainda, a sua capacidade operacional. Caso o objeto da controvérsia já esteja sendo tratado em processo em tramitação no TCU, a admissão da solicitação depende, ainda, da concordância do respectivo ministro relator (artigos 4º, 5º e 6º da IN/TCU nº 91/2022).

Uma vez admitido, o processo é encaminhado à Secretaria-Geral de Controle Externo do TCU para, ouvida a SecexConsenso, designar, por meio de portaria, os membros da Comissão de Solução Consensual. A Comissão é composta, no mínimo, por (i) um auditor da SecexConsenso, que atuará como coordenador; (ii) um auditor da unidade de auditoria especializada na matéria tratada; e (iii) um representante de cada órgão ou entidade da administração pública federal envolvido, admitida, ainda, a participação de representantes de particulares igualmente envolvidos na controvérsia (artigo 7º da IN/TCU nº 91/2022).

O papel dos técnicos do TCU na Comissão não é o de integrar o ajuste de vontades, mas o de terceiros equidistantes, no papel de mediação, orientação e supervisão, com fins a afastar as negociações de fórmulas possivelmente vulneradoras do interesse público ou incompatíveis com o ordenamento jurídico.

A manifestação das unidades técnicas do TCU envolvidas no processo, quanto à proposta de solução consensual construída na Comissão, contempla a opinião do seu auditor designado para compô-la e dos respectivos diretor e titular, as quais são individualmente registradas nos autos (artigo 7º, § 6º, da IN/TCU nº 91/2022), independentemente de eventuais divergências — como é de praxe nos processos do TCU —, como forma de ampliar a transparência, os subsídios aos julgadores e até mesmo o ônus argumentativo, já que eventual decisão final do plenário que venha discordar de alguma das opiniões técnicas terá que enfrentar as premissas e conclusões destas.

Havendo concordância de todos os membros da Comissão externos ao TCU e de ao menos uma das unidades do TCU integrantes da Comissão com a proposta de solução construída, o processo tem prosseguimento (artigo 8º da IN/TCU nº 91/2022). Observe-se que a concordância dos membros da comissão externos ao TCU é condição sine qua non do consenso pretendido, como representantes que são dos órgãos ou entidades da administração pública federal e, eventualmente, dos particulares efetivamente envolvidos na controvérsia.

Já a exigência da concordância de ao menos uma das unidades do TCU envolvidas — concordância essa que não deve se referir ao mérito administrativo, ao juízo de conveniência e oportunidade a ele inerente, mas sim à juridicidade do ajuste —, constitui espécie de filtro das soluções consensuais que serão levadas à definitiva apreciação do plenário do tribunal. Eleva-se, assim, o peso das opiniões técnicas dos auditores, que, de regra, apesar de constituírem importante e indispensável elemento de informação e convencimento, não se revestem de conteúdo decisório nos demais procedimentos finalísticos do TCU, mesmo que sob a forma de espécie de poder de veto.

O processo é, então, encaminhado, primeiro, a representante do Ministério Público junto ao TCU, para manifestação, e, em seguida, para o respectivo ministro relator, ambos definidos mediante sorteio.

A intervenção do Ministério Público justifica-se pelo seu perfil de órgão funcionalmente independente (artigo 127, § 1º c/c artigo 130, ambos da CF, e artigo 80 da Lei nº 8.443/1992) e eminentemente jurídico, com exigências de investidura que espelham as exigências das demais magistraturas constitucionais — aprovação em concurso público de provas e títulos, com participação da OAB, bacharelado em direito e prática jurídica mínima (artigo 129, § 3º c/c artigo 130, ambos da CF). Sua manifestação soma-se aos subsídios técnicos fornecidos pelos auditores, para contribuir para um julgamento adequado, amplamente informado e suficientemente fundamentado.

Ao ministro relator incumbe levar os autos a julgamento, com seu voto, perante o plenário do TCU, que poderá acatar a proposta de acordo, recusá-la ou sugerir-lhe alterações, que, se acolhidas pelos interessados, permitirão ao plenário o acatamento da proposta (artigos 8º, 9º, 10 e 11 da IN/TCU nº 91/2022).

Ressalte-se que tanto os ministros do TCU quanto os membros do Ministério Público junto ao TCU têm em seu favor garantias constitucionais próprias de magistratura — e.g. vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios —, voltadas a resguardá-los de pressões indevidas e lhes assegurar uma atuação independente e isenta.

Plenário homologador

O plenário do TCU, por sua vez, desempenha papel tipicamente homologatório, como magistralmente registrou o ministro Benjamin Zymler no voto condutor do Acórdão 1.797/2023-Plenário:

(…) é, na realidade, um ato homologatório. Levado o negócio jurídico ao exame da Corte de Contas – subscrito por jurisdicionados que têm sobre si o dever de prestar contas, nos termos do art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal -, delibera-se em um juízo de juridicidade amplo. Tanto se ratifica a legalidade do objeto da negociação, quanto da sua motivação, em termos de conveniência e oportunidade, direcionada ao atendimento do interesse público primário.

O julgador destaca haver, em tal atuação do TCU, espécie de “controle concomitante excepcionalíssimo, pari passu, com o ato controlado, necessário para conferir a estabilidade da emanação de vontades”, pelo fortalecimento da segurança jurídica do negócio, que serviria, inclusive, de catalizador para o apaziguamento da relação entre as partes.

Esse controle concomitante se amolda, sem maiores dificuldades, à ampla competência constitucional do TCU de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade e economicidade, nos termos dos artigos 70 e 71 da CF. Vale mencionar que o controle externo desempenhado pelo TCU não raro se reveste de caráter orientador.

Para além do instrumento da consulta — aqui já mencionado e de clara vocação orientadora —, a possibilidade atribuída ao TCU de realizar fiscalizações também operacionais, (artigo 71, inciso IV, da CF), voltadas à apuração do desempenho da gestão pública (sua eficácia, eficiência e efetividade), de suas estruturas e políticas públicas, tem por resultado esperado a expedição de medidas recomendatórias e, portanto, orientadoras e contributivas, voltadas ao aperfeiçoamento da atividade administrativa.

O efeito de fortalecimento da segurança jurídica mencionado decorre, primeiro e diretamente, do fato de se afastar, a princípio, o risco de futuros questionamentos quanto à legalidade, legitimidade ou economicidade do ajuste e mesmo de responsabilização dos gestores no âmbito da Corte de Contas, até por dever de coerência e boa-fé da instituição, o que lhe veda a adoção de comportamentos contraditórios. Trata-se, contudo, de efeito circunscrito à esfera do controle externo, não havendo obstáculo algum a questionamentos judiciais, por parte do Ministério Público Federal, de outras entidades legitimadas a pleitear tutelas judiciais coletivas, e mesmo do cidadão comum, por meio do instrumento da ação popular.

De todo modo, nada impede que o TCU venha a atuar, se constatado adiante, por exemplo, que teria havido conluio; que informações relevantes foram dolosa ou culposamente (culpa grave) ocultadas do TCU; ou que, na implementação do acordo, as partes teriam se desviado dos parâmetros de legalidade previamente estabelecidos.

Pode-se cogitar, ainda, de potenciais efeitos indiretos em prol da segurança jurídica do ajuste, dependentes, porém, da credibilidade do TCU e da condução por ele dada aos processos de solicitação de solução consensual, a suscitar a deferência de outras instâncias de controle e responsabilização. Não à toa, a Corte de Contas, ao disciplinar o procedimento, incluiu a participação de ao menos duas de suas unidades técnicas e a intervenção obrigatória do Ministério Público, dando tratamento transparente a possíveis divergências que possam surgir.

Tais divergências são naturais, até pela complexidade das matérias e independência com que auditores e o Ministério Público desempenham suas funções. E se prestam a evidenciar quaisquer possíveis aspectos de juridicidade controversa, cuja eventual superação, pelos julgadores, exigirá esforço argumentativo adicional e embasamento sólido.

É do interesse de todos os envolvidos — gestores públicos e demais interessados, mas também do TCU, seus auditores e Ministério Público de Contas — que as soluções construídas inspirem confiança, tanto para que subsistam a eventuais questionamentos, preservando seus efeitos, quanto para a consolidação do TCU como locus possível e à disposição do administração para que essas negociações se estabeleçam e, sempre que possível, conduzam à construções de soluções céleres, credíveis e aderentes ao interesse público.

A quarta leitura é de um artigo de opinião da Professora Juliana Palma, disponível em O TCU e sua consensualidade controladora, no qual a exímia pesquisadora busca evidenciar o papel do TCU diante das propostas de solução consensual. 

O TCU e sua consensualidade controladora

Método adequado de solução de conflitos ou expansão de competências controladoras?

Por Juliana Bonacorsi de Palma
JOTA, 28 de junho de 2023

O Tribunal de Contas da União dá indicativos de que a consensualidade não apenas é juridicamente viável na esfera administrativa, mas técnica de gestão fundamental para a melhor consecução das finalidades públicas (cf. Acórdão 2121/2017 e Acórdão 2139/2022). Um novo capítulo se abre com a auto atribuição, pelo TCU, de competência consensual para promover a autocomposição de conflitos envolvendo jurisdicionados (IN 91/2022). O Acórdão 1130/2023 veicula a primeira experiência com a solicitação de solução consensual (SSC).

Diante do iminente desabastecimento energético em 2020 e 2021 por estiagem, o governo federal contratou dezessete usinas de térmicas a gás para produção de energia de reserva, com prazo até 2025. Ocorre que a situação hidrológica praticamente se normalizou, abrindo espaço para a crítica de que tais contratos teriam onerado indevidamente a tarifa de energia.

Por meio do Acórdão 2699/2022, com origem em uma representação, o TCU fixou prazo para que o Ministério de Minas de Energia (MME) avaliasse cada contrato e motivasse sobre a manutenção, rescisão ou solução negociada. É nesse contexto que a pasta solicitou, no âmbito do TCU, a autocomposição com Aneel e uma empresa em específico, que, inclusive, já tinha obtido liminar para manutenção do seu contrato.

Com o termo de autocomposição, convencionou-se diminuir o volume de produção energética contratado, preservando o contrato. As razões indicadas para celebrá-lo foram pragmáticas: estímulo à segurança jurídica e redução de custos dos consumidores, com benefícios na ordem de R$ 579 milhões. Portanto, houve alteração do contrato entre partes em consenso com o controlador. A competência do TCU para promover o acordo não foi justificada, nem houve a comparação com alternativas (teria sido a solução administrativa mais eficiente e econômica?).

Nessa primeira SSC, o TCU não foi simples mediador ou interveniente. O processo foi precedido de manifestação do próprio tribunal em que sugeriu haver ilegalidade por inércia governamental e suscitou a responsabilização do ministro do MME e da Secretaria Executiva deste ministério, bem como da diretoria da Empresa de Pesquisa Energética e do Operador Nacional do Sistema Elétrico (Acórdão 2699/2022). Ademais, o TCU, no caso, foi avaliador do interesse público e homologador do acordo. É signatário da autocomposição. O Acórdão 1130/2023 refere-se a esta homologação como medida excepcionalíssima de controle concomitante ao ato controlado.

O grande incentivo para sentar à mesa de negociação com o TCU talvez não tenha sido obter solução ótima para o caso concreto. Mesmo que não tenha sido intencional, o contexto sugere um “jogo” de ganha-ganha de curto prazo entre jurisdicionado e controlador.

O termo de autocomposição afasta a responsabilização por decisões tomadas no SSC, salvo comprovada fraude ou dolo. Evitar a responsabilização pessoal é um grande ganho ao jurisdicionado, assim como para a empresa e seus sócios diretores, considerando a tendência de o TCU também sancionar particulares. Por sua vez, ganha o TCU espaço decisório sobre atividades-fim regulatórias, agora com consentimento das partes. Nasce nova estratégia de expansão das competências controladoras.

A quinta leitura é de um artigo de opinião disponível em “Ismar Viana: O problema não é a proatividade dos tribunais de contas”, em que busco lançar reflexões sobre a necessária distinção entre ativismo e proatividade nos Tribunais de Contas. 

O problema não está na proatividade dos tribunais de contas

Por Ismar Viana
CONJUR, 16 de fevereiro de 2018

Algumas notícias e artigos publicados em sites jurídicos especializados têm trazido, nos últimos dias, conteúdo questionador da atuação dos tribunais de contas, em formato de crítica ao desempenho das atividades constitucionalmente outorgadas aos órgãos de controle, suscitando dúvida acerca da legitimidade de atuação desses órgãos, especificamente em relação ao controle preventivo, com ênfase na expedição de medidas cautelares que buscam proteger o erário, e rechaçando, por vezes, o reconhecimento da sua condição de indutores de políticas públicas, partícipes necessários do processo que abrange as fases de formulação, execução e controle dessas políticas, fases que são, por ilação lógica e dentro da rotina de conhecimento sobre gestão pública, interdependentes entre si.

Em recente texto publicado em O Globo, intitulado “O risco de ‘infantilizar’ a gestão pública”, Bruno Dantas[1], ministro do TCU, abordou, em linhas gerais, que órgãos de controle não são detentores de legitimidade democrática para formular políticas públicas. Arrazoou que é preciso resistir à tentação de substituir o gestor público nas escolhas que cabem ao Poder Executivo e que tem sido recorrente a prolatação de decisões bem-intencionadas causarem resultados desastrosos.

Em artigo publicado neste espaço[2], sob o título “Dilema entre controle de eficiência e de legalidade é falso”, Fabrício Motta, professor e procurador, defende que cabe ao Tribunal de Contas avaliar a eficiência da gestão pública e assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade, “mas não lhe cabe capturar o campo de atuação administrativa que o ordenamento atribuiu ao gestor público”.

João Doria, prefeito de São Paulo, afirmou, no jornal Folha de S.Paulo[3], que “Tribunal de Contas exagera em suas funções e prejudica SP”. Referindo-se especificamente ao TCM-SP, o gestor da maior capital do Brasil declarou que “o TCM deveria atuar na fiscalização das contas e da execução fiscal da prefeitura de São Paulo, e não em manifestações prévias”.

A funcionalidade do TCM-BA também foi alvo de questionamentos. O governador daquele estado, Rui Costa[4], sob a alegação de que recursos públicos despendidos com o controle das contas públicas poderiam ser transformados em investimento em educação, saúde e infraestrutura, mostrou-se favorável à extinção do TCM baiano. Foi também alicerçado em argumentos dessa natureza que o Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará foi extinto, dando azo às discussões sobre a viabilidade de manutenção dos demais tribunais de contas dos municípios em funcionamento no Brasil.

Como se vê, a crítica à proatividade dos tribunais de contas tem como objeto, via de regra, o regular desempenho da missão preventiva de ocorrência de dano ao erário, materializada por meio da expedição de medidas cautelares, de indiscutível sedimentação no Supremo Tribunal Federal. Supostas interferências na função executiva, se e quando configuradas, constituem iniludível ofensa ao princípio da segregação das funções, carecendo, portanto, de força cogente, por não se revestirem de legitimidade, situação de fácil percepção pelas procuradorias dos órgãos e entes, além de passíveis de combate, seja no âmbito do próprio Tribunal de Contas, seja no âmbito do Poder Judiciário.

Não se pode confundir, contudo, insurgência aos instrumentos de controle com o exercício regular do controle, que constitui condição indispensável à manutenção da democracia. Da mesma forma, não se pode confundir controlador com controlado, assim como não se pode deixar de reconhecer, também, a inexistência de vínculo de subordinação hierárquica entre ambos.

Quanto às críticas ao controle de eficiência, faz-se oportuno esclarecer que a Constituição de 1988 avançou nesse sentido, não se limitando ao controle de legalidade, o que demanda dos órgãos de controle, por óbvio, a implementação de ações e o uso de instrumentos que possibilitem o irrestrito cumprimento do mandamento constitucional. É preciso deixar claro, sempre, que foi o legislador constituinte originário que assim quis, e não os agentes controladores, que são, tão somente, agentes controlados, cumpridores do pacto constitucional, assim como são os gestores da coisa pública.

No que tange à subjetividade do controle de eficiência, há, de fato, margem para tanto. Isso, entrementes, não oportuniza ao agente controlador margem de confusão entre discricionariedade e arbitrariedade, até porque isso pode vir a constituir abuso de autoridade, passível, portanto, de controle judicial, importando responsabilização do agente transgressor. Hodiernamente, não há espaço para intuições ou julgamentos lastreados no querer pessoal, na vontade do controlador, sob pena de se julgar mal.

Não se pode olvidar que, diferente do Poder Judiciário, cuja atuação se encontra condicionada à provocação, os tribunais de contas podem e devem agir de ofício. Ao não submeter os tribunais de contas ao princípio da inércia da jurisdição, o legislador constituinte originário quis que a proatividade das casas fiscalizadoras dos gastos públicos fosse a regra e, para cumprir tal mister, dotou os tribunais de contas de autonomia, não os subordinando hierarquicamente a nenhum dos Poderes da República, tudo para que a falta da independência técnico-funcional não constituísse óbice à regular e eficaz atuação desse importante órgão guardião dos bens e valores públicos.

Não por outra razão, esse delineamento constitucional da estrutura e do funcionamento dos tribunais de contas objetivou, em última análise, afastar quaisquer interferências no mérito de atuação das casas controladoras, garantindo ao controlado, consequente e reflexamente, o direito a uma atuação imparcial, livre da benevolência e da maleficência.

De forma diametralmente oposta à linha dos que alegam a antieconomicidade do controle exercido pelos tribunais de contas, o controle concomitante dos gastos públicos, feito por esses órgãos de estatura constitucional, materializado por meio das inspeções e auditorias realizadas pelos auditores de controle externo, para além do atingimento dos fins a que ordinariamente se propõe, tem possibilitado aos órgãos com legitimidade para propor ações de improbidade, às polícias investigativas e ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal, agirem efetivamente, buscando elementos de informação e de prova necessários ao ajuizamento das ações cabíveis e garantindo, por via de consequência, o resguardo do dinheiro público e a responsabilização daqueles que gerirem mal a coisa pública.

Essa proatividade dos tribunais de contas colocou para trás aquele velho modus operandi de fiscalizar os gastos públicos anos depois de exaurida a produção dos efeitos dos atos, num verdadeiro e ineficiente exercício de autópsia. A escassez de recursos, associada à má aplicação deles, motivou o controlador a se adequar à conjuntura atual, priorizando o controle concomitante, que constitui um eficiente exercício de biópsia. É justamente esse agir tempestivo que tem a força de evitar que o dano ocorra, além, é claro, de instrumentalizar os organismos policiais e o Ministério Público na missão de punir, exemplarmente e sob o manto do devido processo legal, todo aquele que comete crimes contra a administração pública.

Mas não é só. Há de observar, ainda, que, com o advento da Lei 12.846/2013, comumente intitulada Lei Anticorrupção, a atuação dos tribunais de contas ganhou ainda mais relevo. É que a predita lei define os atos lesivos à administração, trazendo, especialmente, ilicitudes na seara de licitações e contratos, matérias inequivocamente sujeitas à apreciação dos auditores de controle externo, no regular exercício das inspeções e auditorias, levando o Ministério Público junto aos tribunais de contas ao imprescindível exercício da função ministerial, de conformação legal, e aos conselheiros e ministros, titulares e substitutos, ao exercício da função de julgar. Esse é o caminho que deve ser inevitavelmente trilhado.

É bem verdade que, nos últimos anos, houve um alargamento dos reflexos da atuação dos tribunais de contas, que, ao fim e ao cabo, pode atingir direitos subjetivos de gestores públicos, na seara eleitoral, administrativa, cível e criminal, razão por que se afirmar que a atuação imparcial, no âmbito do controle externo, além de constituir um dever dos agentes de controle, a quem interessa proteção jurídica à sua situação funcional, é um direito daqueles que mantêm algum vínculo legal ou contratual com a administração pública, que devem ser tratados como sujeitos de direitos, e não como meros objetos processuais. Em última análise, a imparcialidade é, ainda, um direito da sociedade, a quem interessa o bom combate à corrupção.

Nesse sentido, parece-nos que o problema não reside na proatividade dos tribunais de contas, que têm por razão de existência a missão de controlar a administração pública, inclusive preventivamente, mas na necessidade de reconhecimento, por parte de quem se coloca à disposição para gerir a coisa pública, da indissociabilidade entre controle e Estado Democrático de Direito. Reside, também, na necessidade de reconhecimento, por parte dos agentes controladores, de que a Constituição Federal, sob a égide da qual os mandamentos infraconstitucionais são praticados e sob o manto da qual são editados, constitui limitador de atuação e legitimador das ações de controle. Pensar diferente desse balizamento é subverter a ordem que ampara a atuação dos órgãos de controle, é contribuir para a ampliação da margem de desacreditação social nesses órgãos.

3. DEBATENDO

Após realizadas as leituras dos textos e tendo sido adequadamente compreendidos os fundamentos da consensualidade no âmbito da Administração Pública brasileira, compreendidos, igualmente, os fundamentos e limites da consensualidade no âmbito dos Tribunais de Contas, os alunos estarão aptos a debater, em sala de aula, sobre os caminhos processuais a serem percorridos para o alcance do bom e regular uso dos instrumentos típicos e atípicos de consensualização no âmbito dos 33 Tribunais de Contas do Brasil. 

Com vistas a aferir se houve o adequado domínio do conteúdo, sugere-se que o professor possa formular as perguntas adiante relacionadas: 

  1. A ausência de uma lei autorizando a materialização da consensualidade no âmbito do Controle Externo exercido pelos Tribunais de Contas constitui óbice a que seja levada a cabo uma proposta de solução consensual?
  2. Como atuar para que um diálogo entre os princípios da indisponibilidade do interesse público e o da eficiência seja o caminho a ser percorrido para colmatar a lacuna normativa de ausência de instrumento típico de solução de conflitos no âmbito dos Tribunais de Contas?
  3. Quais os riscos de a concretização da consensualidade sem autorização legal expressa vir a ser compreendida como mitigação injustificada do exercício ordinário das competências constitucionais outorgadas aos Tribunais de Contas, notadamente diante do princípio da legalidade administrativa?
  4. Atos infralegais são meios aptos a instituir instrumentos de solução consensual no âmbito dos Tribunais de Contas? Essa instituição pode ser vista como procedimentalização do exercício de competências institucionais ou mitigação do exercício ordinário dessas competências?
  5. A cláusula geral contida no art. 26 da LINDB é suficiente para compreender ter havido aderência legal à instituição de um processo de solução consensual?
  6. Qual o sentido e o alcance do papel pedagógico no âmbito dos Tribunais Contas?
  7. A partir do que foi lido, quais são os limites ao exercício do consensualismo à luz do modelo de auditoria do setor público adotado pela Constituição Pública brasileira?
  8. A ausência de um disciplinamento legal (em sentido estrito) para materialização da consensualidade não pode apresentar riscos de que os órgãos aos quais é incumbida a condução dos processos de solicitação de solução consensual pavimentem caminho para a relativização da deferência administrativa?
  9. Ciente de que a processualização ordinária das competências constitucionais outorgadas aos Tribunais de Contas se desenvolve a partir da necessária atuação de atores distintos (auditores de controle externo, procuradores do Ministério Público de Contas e julgadores), a instituição de um instrumento de consensualidade afastando a atuação de um desses atores se mantém aderente ao devido processo legal na esfera de controle externo?
  10. O texto normativo do art. 36, §4º da Lei n. 13.140, de 2015, pode ser lido como uma mitigação à deferência administrativa?
  11. Os processos de solicitação de solução consensual instituídos pela IN TCU n. 91/2022 é autocompositivo ou heterocompositivo? Há risco de cogestão?
  12. A Constituição Federal dotou os Tribunais de Contas de competências para determinar as correções de ilegalidades, sem que se faça necessária a atuação do Poder Judiciário. Com esse desenho institucional, faz-se necessária a existência de “termos de ajustamento de gestão”, “mesas técnicas” e “processos de solicitação solução consensual”?
  13. As “mesas técnicas”, instituídas pela Resolução n. 02/2020, alterada pela Resolução n. 13/2022, do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, não têm efeito conciliatório, não têm natureza decisória, podendo se materializar antes mesmo de o ato controlado produzir efeitos concretos. É possível afirmar que a “mesa técnica” é um instrumento de solução consensual?

4. APROFUNDANDO

A discussão sobre a consensualidade no âmbito do Sistema constitucional de controle da Administração Pública integra pautas de debates, por meio de artigos científicos, artigos de opinião, livros, reverberando em congressos acadêmicos de Direito, daí por que se reputa adequado sugerir leituras. 

A NOVA ERA DO CONTROLE EXTERNO DIALÓGICO – TERMO DE AJUSTAMENTO DE GESTÃO – REFLEXÕES SOBRE OS LIMITES À CONSENSUALIZAÇÃO NA ESFFERA DE CONTROLE EXTERNO À LUZ DA LEI N. 13.655/2018, QUE INCLUIU DISPOSITIVOS NA LINDB. Capítulo disponível em VIANA, ISMAR. Fundamentos do Processo de Controle Externo: uma interpretação sistematizada do Texto Constitucional aplicada à processualização das competências dos Tribunais de Contas. Lumen Juris. 2019. p. 130-142. 

FERRAZ, Luciano. Controle e consensualidade: fundamentos para o controle consensual da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

JOTA. AGU diz que SecexConsenso é constitucional e defende funcionamento da secretaria. Disponível em: https://www.jota.info/executivo/agu-diz-que-secexconsenso-e-constitucional-e-defende-funcionamento-da-secretaria .  Acesso em: 31 out. 2024. 

JORDÃO, Eduardo. Por modelos distintos de controle da administração pública. Jota, 15 jun. 2021. Acesso em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/por-modelos-distintos-de-controle-da-administracao-15062021

JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa. São Paulo, Malheiros, 2016.

PALMA, Juliana. Consensualidade em improbidade administrativa e o papel do Tribunal de Contas. Acesso em: Consensualidade em improbidade e o papel do Tribunal de Contas

PALMA, Juliana. Jurisprudência do controle de contas e identidade institucional do TCU. Acesso em: TCU: jurisprudência do controle de contas e identidade institucional

PALMA, Juliana. Regulação responsiva: a visão do TCU. Acesso em: Regulação responsiva: a visão do TCU

PALMA, Juliana. PL da Nova Lei de Licitações prestigia Tribunais de Contas na aplicação de sanções? Acesso em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/pl-da-nova-lei-de-licitacoes-prestigia-tribunais-de-contas-na-aplicacao-de-sancoes

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Instrução Normativa nº 91, de 22 de dezembro de 2022. Institui procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos no âmbito da Administração Pública Federal. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 22 dez. 2022.