1. CONHECENDO O BÁSICO
Para responder à pergunta “Por que tanto se fala sobre a influência da LINDB (Lei nº 13.655/2018) na Administração Pública?”, é preciso enfrentar um questionamento prévio muito importante para que possamos avançar do mesmo ponto de partida: qual o contexto das alterações promovidas pela Lei nº 13.655/2018 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB?
Para quem quiser saber o histórico dessas alterações já se indica de pronto a leitura da obra “Direito Administrativo: um novo olhar da LINDB”, do Professor Carlos Ari Sundfeld, na qual conta relata a publicação da proposta de renovação da LINDB, em 2013, na obra “Uma nova lei para aumentar a qualidade jurídica das decisões públicas e seu controle”, em co-autoria com o Professor Floriano de Azevedo Marques Neto. Antes disso, diagnósticos e ideias nesse sentido, explica Sundfeld, também vinham sendo trabalhados pelos Professores Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Almiro do Couto e Silva, Paulo Modesto e Sérgio de Andréa Ferreira.
A Professora Juliana Palma, no artigo “Segurança Jurídica para a inovação pública: a nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 13.655/2018”, nos conta todos os movimentos não só legislativos, mas os bastidores políticos e, também, as críticas ao projeto da Lei nº 13.655/2018 por importantes órgãos de controle da Administração Pública: Tribunal de Contas da União e Ministério Público Federal, esse último, inclusive, defendeu o veto integral ao projeto de Lei. Generalizando as críticas, tais passam, por exemplo, pela opinião de que a lei introduziria ferramentas para descriminalizar o erro do gestor público.
E é deste movimento inicialmente reativo dos órgãos de controle que ingressamos no contexto das alterações da LINDB em 2018: como uma Lei que dispõe expressamente em sua ementa “sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público” pareceu tão grave aos olhos dos órgãos de controle?
Em linhas gerais, a Lei nº 13.655/18 consiste num marco legal voltado à promoção do que se poderia denominar de “controle sobre o controle” realizado na atividade de administração pública. Alguns autores entendem que não se trata de reduzir o controle suportado pela Administração Pública, mas aprimorá-lo. Não se trata, pois, de um controle menor, mas de um controle melhor e para isso o controle também deve sujeitar-se a determinados limites, sendo este o papel da LINDB, na parte introduzida pela Lei 13.655/18, no ordenamento jurídico brasileiro. Outros autores, diferentemente, são mais céticos em relação à LINDB.Conforme aprofundaremos a partir dos textos selecionados para esta aula, a combinação de efeitos colaterais – insegurança jurídica causada pelo uso irresponsável das normas jurídicas de índole principiológica, com uma aplicação desvirtuada (ou preguiçosa) da “juridicidade administrativa”, bem como os exageros realizados pelos órgãos de controle – culminou num fenômeno que vem sendo batizado de “apagão das canetas”, decorrente de um “Direito Administrativo do medo”[1] (ou “Direito Administrativo do terror”), fenômeno este que ocasionou uma reação, surgida no ambiente acadêmico[2], passando pelo devido processo legislativo[3], até determinar o surgimento, no Direito Brasileiro, da Lei 13.655/2018.
Dessa forma, veremos que a Lei 13.655/2018 é produto de “uma crescente” de alterações legislativas prévias em outras matérias, de reflexões acadêmicas e de pesquisas empíricas, iniciativas que se destinaram a examinar de que modo o Direito Público, e, em especial, o Direito Administrativo estava vivendo.
Como esse modo de vida, de escolha de rumos, de tomada de decisão administrativa, controladora e judicial, estava impactando a realidade de todos nós, muitas vezes sob a justificativa – dotada de relevante vagueza e abstração – de que se estava a tutelar o “interesse público”? E, ainda, como esse modo de vida, além de impactar o presente, estava desenhando o futuro?
Na linha do que Hannah Arendt alertou na obra “A Condição Humana”: enfim, o que estamos fazendo? Precisamos parar e pensar. E, depois de pensar, agir. Dessa forma, a LINDB reflete essa pausa para pensar e corrigir a rota, sendo considerada por alguns autores uma “lei bússola para o Direito Público”[4], que estimula a quebra do juízo meramente reprodutivo do Direito Administrativo, preocupando-se com um juízo prospectivo, crítico, conectado com a realidade.
Trata-se de inovação legislativa digna de muita atenção, sobretudo porque traz consigo a institucionalização de técnicas de controle – alguma das quais já empregadas há bastante tempo, ainda que de forma não sistemática – necessárias para “reforçar a segurança jurídica num quadro de incerteza e de mudança permanente”[5].
Os comandos da LINDB visam à promoção de coerência, estabilidade e equilíbrio, a partir de uma noção mais pragmática e alinhada com o que envolve o “administrar”. E não espere que seja simples, banal, fácil, fazer valer seus direcionamentos, por exemplo, quando dispõe que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão” (art. 20) ou que “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados” (art. 22).
Nesta aula, apresentaremos um quadro geral, navegando pelo que chamaremos de cinco direcionamentos empíricos básicos da Lei nº 13.655/2018, são eles: 1º motivação; 2º consequencialismo/realismo (artigos 20, 21 e 22); 3º participação/consensualidade (artigos 26, 27 e 29); 4º responsabilização dos agentes públicos (artigos 22 e 28), e, por fim, 5º segurança jurídica e proteção da confiança (artigos 23, 24 e 30).
Destacamos que não há pretensão de esgotamento da matéria. A finalidade da aula é a de apresentar as dimensões relevantes de impacto da Lei 13.655/2018 sobre a Administração Pública especialmente para quem esteja se aproximando do Direito Administrativo. Afinal, serão, vocês, os juristas criadores do futuro. Por isso, as leituras da aula servem para se familiarizar com o tema, mas queremos que vocês possam pensar conjuntamente nos reflexos da LINDB, a partir, também, de visões que se contrapõem.
E, com isso, partiremos a algumas perguntas para debate.
[1] Sobre o tema, indicamos um ótimo livro de SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito Administrativo do Medo – risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
[2] Tal reação surge sobretudo pelas mãos de Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto (SUNDFELD, Carlos Ari; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Uma nova lei para aumentar a qualidade jurídica das decisões públicas e de seu controle. In: SUNDFELD, Carlos Ari (organizador). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 277-285).
[3] Ainda sobre os antecedentes históricos ao surgimento da Lei 13.655/18, vide ANDRADE, Fábio Martins de. Comentários à Lei 13.655/2018 – proposta de sistematização e interpretação conforme. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 9-106.
[4] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo: o novo olhar da LINDB. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2022.
[5] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à lei nº 13.655/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 17.
2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
Previamente à aula, propõe-se a leitura do Decreto-Lei nº 4.567/42, em especial, dos artigos de 20 a 30 incluídos pela Lei nº 13.655/18. Estimulamos que seja feito este contato preliminar com a lei.
Na parte introdutória, indicamos que as alterações da LINDB foram produto, dentre outros, de constatações empíricas. No seguinte trecho de artigo escrito pela Professora Juliana Palma, ela elenca três grandes impasses que a Lei nº 13.655/2018 visa a endereçar. Vamos a eles:
Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 13.655/2018)
Por Juliana Bonacorsi de Palma
(Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 209-249, maio/ago. 2020)
(…)
Há, portanto, uma linha de pesquisa sedimentada de análise crítica do controle da administração pública. Analisando o panorama da produção discente nessa temática mais recente, os três grandes impasses que a Lei nº 13.655/2018 visa a endereçar são empiricamente constatados:
1. Principiologia na estrutura do controle: as pesquisas apontam que, não raro, controladores reputam a decisão administrativa válida ou inválida com base em princípios ou conceitos jurídicos indeterminados. Trata-se de um modo decisório potencializado pela larga presença de princípios nos textos legais, bastando mencionar o exemplo da Lei de Improbidade Administrativa, cujo art. 11 tipifica os atos de improbidade que atentam contra os “princípios da Administração Pública”.
2. A motivação tende a não considerar as consequências concretas da decisão controladora: no geral, os controladores adotam uma visão deliberativa limitada ao caso concreto — a casuística —, que não considera os impactos da decisão específica, ou do conjunto decisório, sobre a gestão pública em termos de custos, tempo, legitimidade, eficácia da política pública e isonomia perante os demais cidadãos. Nessa linha, o sistema de controle é insensível aos obstáculos e às reais dificuldades do gestor.
3. As decisões administrativas são meramente provisionais: na medida em que atos, contratos, processos administrativos e grandes decisões de políticas públicas sujeitam-se a amplíssimo controle — sem claras balizas sobre o cabimento e a intensidade do controle —, as decisões administrativas assemelham-se a uma “primeira tentativa”, cuja deliberação final depende do aval do controlador.
Parte importante da academia jurídica brasileira, portanto, é movida pelo desejo último de compreender o real funcionamento do controle da administração pública. Estamos interessados em estudar as mais variadas manifestações jurídicas pelo concreto: queremos saber, por exemplo, como as instituições jurídicas exercem suas competências, como as leis controladoras são criadas, ou como ferramentas jurídicas podem favorecer um controle mais eficiente. Isso porque acreditamos que pesquisas acadêmicas possam transformar o modo como compreendemos e trabalhamos o direito. Trata-se de uma incansável tarefa de mapear os reais problemas e endereçar soluções jurídicas com base empírica — e não com base em impressões pessoais, pré-conceitos, estereótipos ou a apreciação subjetiva de autoridades.
(…)Para as referências indicadas pela Professora Juliana Palma, acesse o artigo: https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/82012/78227.
Para fazer frente a essas constatações empíricas, vamos a uma síntese dos eixos e ou parâmetros principais da Lei 13.655/2018. Destacamos que diferentes autores apresentam, também, enfoques distintos. Nosso objetivo aqui, apresentando duas visões, é apenas ter de onde partir para as discussões, a fim de refletir sobre as cinco dimensões empíricas da Lei 13.655/2018:
Análise acerca da aplicação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (na redação dada pela Lei nº 13.655/2018) no que concerne à interpretação de normas de direito público: operações interpretativas e princípios gerais de direito administrativo.
Por Rafael Maffini e Juliano Heinen
(Revista De Direito Administrativo, 277(3), 247–278)
(…) Ainda que se percebam outros objetivos específicos, consegue-se notar pelo menos quatro parâmetros de onde parte a lei, e o que ela pretende:
(a) Alcance de três esferas de destinatários de suas normas: administrativa, controladora e judicial;
(b) Determinação de que as decisões proferidas nesses três âmbitos não somente levem em conta, mas que sejam determinantes:
(b1) as consequências reais da decisão;
(b2) os fatores reais que envolvem a mencionada decisão, bem como sua operacionalização no mundo real;
(c) Fixação de parâmetros objetivos de segurança jurídica, eficiência e participação do cidadão nas decisões exaradas especialmente na esfera administrativa;
(d) Ampliação da relevância da motivação das condutas administrativas, em razão da elevação do ônus argumentativo que impôs às decisões relacionadas com a interpretação e revisão de condutas administrativas, suas consequências, as regras de transição e responsabilização de agentes públicos.(…)
Com menção aos dispositivos, também entendemos interessante indicar os eixos da Lei 13.655/2018 apresentados pelo Professor Alexandre Santos de Aragão:
Aspectos Gerais Introdutórios da Nova LINDB
Por Alexandre Santos de Aragão
(In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da; ISSA, Rafael Hamze; SCHWID, Rafael Wallbach. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – anotada. Vol. II. São Paulo, Quartier Latin, 2019, pp. 29-30).
(…)
1) a segurança jurídica de cidadãos e empresas diante de opiniões flutuantes do Estado, evitando que a cada momento interprete as normas de uma maneira e impondo inclusive regimes de transição diante de variações hermenêuticas (ex.: art. 24);
2) permitir que os administradores públicos atuem com maior segurança e eficiência, sem temer serem punidos por adotarem uma interpretação plausível, mas que não era a única plausível (ex.: art. 28);
3) democratizar e aumentar a transparência da Administração Pública ao prever, por exemplo, consultas públicas antes de editar atos normativos, obrigatoriedade de motivação em relação às consequências dos seus atos e busca de consensualidade (ex.: arts. 21, 26 e 29); е
4) Valorizar no Direito Administrativo as consequências de cada decisão a ser tomada e a realidade prática em que a atividade administrativa e as suas escolhas se desenvolvem, incorporando o chamado “Direito Administrativo de resultados”, intrinsecamente ligado ao princípio constitucional da eficiência (ex.: arts. 20 a 22).
O diploma em grande parte incorpora os parâmetros do Direito Administrativo que desde a década de 1990 já vêm se consolidando na doutrina e na jurisprudência, inclusive dos órgãos de controle, que não devem ver o direito público como um mecanismo apenas formal de aplicação de regras, se reocupando também com as suas consequências e com a sua economicidade.(…)
Percebemos, assim, que as novidades trazidas pela Lei nº 13.655/2018 mostram-se caracterizadas por um relevante fio condutor, qual seja, uma preocupação de ampliar o ônus argumentativo das decisões administrativas. Diante disso, parece ser evidente que a Lei 13.655/2018 enseja um inegável prestígio do princípio da motivação, que passa a ser reforçado, com desdobramento também empírico.
Nessa linha, no artigo intitulado “Acabou o romance: reforço do pragmatismo no direito público brasileiro” no qual tratou sobre a Lei nº 13.655/2018, em específico sobre o Art. 22, o Professor Eduardo Jordão destaca a “motivação reforçada” ou “qualificada” da atuação pública administrativa, controladora e judicial, como um aspecto procedimental.
Deste mesmo artigo, salientamos quando o Autor indica que o objetivo da LINDB é mais amplo: também se destina a contribuir para aprimorar a gestão pública nacional. Em relação, especificamente, ao Art. 22, sugerimos que os alunos façam a leitura do artigo na íntegra, com o enfoque à posição do Autor de que há uma exigência de contextualização pela LINDB que produz uma espécie de “pedido de empatia” com o gestor público e com as suas dificuldades. Selecionamos alguns recortes para discussão:
Art. 22 da LINDB – Acabou o romance: reforço do pragmatismo no direito público brasileiro
Por Eduardo Jordão
(Revista de Direito Administrativo, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei no 13.655/2018), p. 63-92, nov. 2018).
Apesar de comumente associado à promoção da segurança jurídica, o objetivo do projeto de lei que inseriu dez artigos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) é mais amplo: contribuir para aprimorar a gestão pública nacional. Este objetivo não é exatamente novo. Quando comparado com outros projetos de lei que tiveram finalidades semelhantes, no entanto, o seu aspecto curioso (e distintivo) está em que ele não enfoca aspectos orçamentários, físicos ou de pessoal – entraves conhecidos da nossa gestão pública. O seu cerne consiste em enfrentar um obstáculo diferente e menos discutido: o gargalo jurídico.
Os autores do projeto parecem entender que a forma como o direito brasileiro vem sendo interpretado e aplicado – principalmente, mas não exclusivamente, pelos controladores – tem gerado ineficiências gerenciais importantes. Em grande medida, o projeto é uma tentativa de contribuir para reduzir estes entraves jurídico-culturais.
Mas qual é esta percepção dos autores do projeto sobre como funciona o direito no Brasil e como eles pretendem contribuir para aprimorá-lo? Parece-me que uma boa forma de sintetizar é dizer que o projeto é antirromântico ou anti-idealista, e que o seu grande objetivo é introduzir uma boa dose de pragmatismo e contextualização na interpretação e operação das normas de direito público.
Duas são as principais teorias românticas (ou idealistas) que o projeto pretende combater: (i) a suposta completude e determinação do direito; (ii) a presunção de existência de um cenário fático ideal para a concretização dos ambiciosos objetivos do direito público nacional. Enquanto uma destas teorias idealiza o direito, a outra idealiza os fatos. As duas produzem consequências gerenciais negativas relevantes, mas ainda são largamente dominantes no direito brasileiro.
(…)
3.3. O aspecto procedimental: a motivação reforçada
Sob uma perspectiva procedimental, a inserção dos dispositivos vai na linha de outros dispositivos do projeto que exigem uma “motivação reforçada” ou “qualificada” da atuação pública (das esferas administrativa, controladora e judicial), ao especificarem aspectos que devem ser objeto de menção específica. Enquanto o artigo 21 exige indicação “expressa” das consequências jurídicas e administrativas esperadas para uma dada decisão, o art. 22 requer consideração das circunstâncias mencionadas no tópico acima, no momento da fixação da sanção administrativa. Assim, para que se dê efetividade a este dispositivo e se respeite o seu propósito, não será suficiente que estas circunstâncias sejam consideradas “implicitamente”; devem vir expressas na motivação do ato sancionador.
(…)
Se a Lei nº 13.655/2018 relaciona-se com a promoção de uma racionalidade em temas que envolvem, no final das contas, políticas públicas, e, considerando, muitas vezes, o papel das contratações públicas na execução dessas políticas públicas, entendemos importante abordar, especificamente, o Art. 21 da LINDB combinado com o capítulo “Nulidade dos Contratos” da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021), até para que se perceba a coerência de ambos os diplomas quando interpretados conjuntamente:
Art. 21 da LINDB e o novo regime consequencial das invalidades
Por Rafael Maffini
(In: RAMOS, Rafael (Coord.). Comentários à nova LINDB: Lei nº 13.655/2018)
(…)
A ratio das normas jurídicas contempladas na LINDB, em especial no seu art. 21 acaba por receber o reforço do elogiável arcabouço de normas contidas nos artigos 147 a 150 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLLC (Lei 14.133/21) a propósito da nulidade dos contratos, reforço esse que fica ainda mais evidente se considerado o modo lacônico que o tema era tratado pela legislação anterior. Tais normas, contidas no Capítulo XI do Título III, da NLLC, notadamente nos arts. 147 e 148, trazem consigo algumas importantes inovações, alinhadas aos ditames da LINDB, que passam a ser aqui destacadas.
A primeira delas consiste na ruptura da lógica de que os contratos nulos devem ser sempre anulados e de que, quando invalidados, seus efeitos devem ser todos desconstituídos, ressalvados somente os efeitos do objeto contratual já executado. Com efeito, a NLLC inicialmente coloca em evidência solar que um primeiro juízo a ser realizado é do relacionado com a valoração do grau da nulidade que macula o contrato ou os procedimentos que lhe antecederam, para que somente sejam considerados efetivamente suscetíveis de invalidação os vícios efetivamente insanáveis. Tal ratio, aliás, também se mostra presente no tocante à aferição da validade do processo licitatório, consoante se depreende do art. 71, III c/c com o seu § 1º. Especificamente em relação aos contratos públicos, o art. 147 deixa evidente que a avaliação sobre eventual anulação somente ocorrerá “caso não seja possível o saneamento”. Ou seja, caso seja possível o saneamento do vício ou da irregularidade, mostra-se imperiosa a preservação do vínculo contratual.
Passando-se para um segundo patamar de aferição, decorrente da caracterização de um vício ou irregularidade não suscetível de saneamento, ainda assim não se mostrará necessariamente obrigatória a invalidação do negócio jurídico, uma vez que, neste caso, o art. 147 da NLLC impõe que eventual declaração de nulidade do contrato ou mesmo a suspensão cautelar de sua execução ocorrerá somente na hipótese de se revelar medida de interesse público.
Evidentemente, tal avaliação aumenta o ônus argumentativo e a relevância da motivação de tal tomada de decisão, o que também é uma marca da LINDB. Mas evidenciado que o interesse público não recomenda a paralisação ou a anulação do contrato, tais medidas passam a ser proibidas pela NLLC, devendo as eventuais irregularidades ser solucionadas por meio da respectiva indenização, passível ainda de responsabilização dos causadores de tais irregularidades ou vícios. Trata-se de regra de natureza vinculada a qual, portanto, interdita a invalidação ou a suspensão do contrato quando tais providências forem contrárias ao interesse público. Dito de outro modo: num eventual conflito entre o princípio da legalidade, cuja inobservância recomendaria à invalidação do negócio jurídico, e o interesse público, caso este recomende a sua preservação, predominará o interesse público, eis que obrigatória, neste caso, a manutenção do vínculo contratual. Do ponto de vista hermenêutico, mostra-se elogiável tal solução contemplada na NLLC, até mesmo porque, ultima ratio, o princípio da legalidade consiste em instrumento de consecução do interesse público e da segurança jurídica.
Resta evidente, pois, que a NLLC prestigia princípio da conservação ou manutenção do negócio jurídico, ainda que viciado, caso sua desconstituição seja medida contrária ao interesse público. Tal princípio, tradutor de uma ideia de lógica favor contractus cuja incidência é de há muito reconhecida no Direito Privado, pode ser enquadrado inclusive como uma decorrência do princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica, encontrando total compatibilidade com as ideias contidas no art. 21 da LINDB.
Esta mesma ordem de preocupações encontra-se presente na NLLC no tocante aos efeitos dos contratos quando da sua anulação. Assim, do art. 148 da NLLC depreende-se que caso o interesse público recomende a anulação do negócio jurídico, a declaração de nulidade “operará retroativamente, impedindo os efeitos jurídicos que o contrato deveria produzir ordinariamente e desconstituindo os já produzidos”. Aqui, deve-se atentar para o fato de que tal comando de desconstituição dos efeitos pretéritos e de impedimento de efeitos futuros haverá de ser analisado com a devida parcimônia, inclusive porquanto aplicável o art. 21 da LINDB, na dimensão normativa acima referida, até mesmo por força do que dispõe o já referido art. 5º da NLLC. Demais disso, os parágrafos do art. 148 alinham-se no mesmo sentido da LINDB, seja por se remeter à solução indenizatória e à responsabilização e sancionamento cabível nos casos em que não seja possível o retorno à situação fática anterior (art. 148, § 1º), seja por se admitir que “com vistas à continuidade da atividade administrativa, poderá decidir que ela só tenha eficácia em momento futuro, suficiente para efetuar nova contratação, por prazo de até 6 (seis) meses, prorrogável uma única vez” (art. 148, § 2º). Aliás, em relação a tal modulação temporal para o futuro, da anulação dos contratos, também o art. 21 da LINDB se mostra uma relevante fonte normativa, como antes já referido.
(…)
Com efeito, as normas contidas no Capítulo XI do Título III da NLLC, especialmente os preceitos contidos nos artigos 147 e 148, contemplam uma espécie de detalhamento do que já se encontra disposto na LINDB, especialmente no seu art. 21.
(…)
Demais disso, tratam-se de regras materializam os princípios do interesse público, da segurança jurídica, da eficiência, da razoabilidade, da proporcionalidade, da motivação, entre outros vários princípios aplicáveis às condutas administrativas.
(…)Este texto possui referências.
Após examinar, acima, o direcionamento empírico da Lei nº 13.655/18 em relação ao consequencialismo aplicado às licitações e aos contratos administrativos, vamos examinar, a partir de um texto especialmente preparado para a aula, a respeito da consensualidade administrativa:
A Lei nº 13.655/18 e a consensualidade administrativa
Por Rafael Maffini
A consensualidade administrativa mereceu destaque nas normas inseridas na LINDB por meio da Lei nº 13.655/18, sobretudo em razão do art. 26, o qual contempla uma verdadeira cláusula geral de acordos envolvendo a Administração Pública. Com efeito, o Direito Administrativo vem experimentando, nos últimos tempos, uma verdadeira crise de paradigmas, na medida que alguns conceitos antigos – e também preconceitos – vêm sendo substituídos por outros modos de pensar as relações entre a Administração Públicas e os destinatários de suas atividades, de modo mais consentâneo com o atual estágio evolutivo do Direito Público e também com a Constituição da República vigente. Uma destas relevantes modificações hermenêuticas merece especial atenção no contexto do art. 26 da LIDNB.
Trata-se do fenômeno pelo qual as noções de unilateralidade e imperatividade cedem espaço às noções de consensualidade e negociação, os quais materializam alguns dos “princípios democráticos do Direito Administrativo” a que se refere Diogo de Figueiredo Moreira Neto[1], no sentido de que “a Administração Pública Consensual é marcada pela realização de acordos, parcerias e múltiplas outras formas de pactuação que ligam o Estado à sociedade civil, para satisfação das necessidades públicas”, de modo que “ganha relevância a ampliação dos negócios jurídicos feitos pelo poder público com o cidadão: um fenômeno que enaltece as relações consentidas em detrimento das prescritas”[2]. Tal tendência de soluções consensuais perante a Administração Pública, diferentemente do que algumas iniciais resistências enunciaram, em nada arranha o princípio da indisponibilidade do interesse público.
Quanto ao ponto, já se afirmou que “a indisponibilidade do interesse público, contudo, não quer ser algo absoluto, mas sim um óbice transponível por meio da ‘alteração da ordem jurídica’. Esse é o elemento que deve balizar a aferição da disponibilidade (ou não) dos direitos titularizados pela Administração Pública. Dessa forma, cabe ao legislador, ciente de que a lei é o instrumento de outorga de poder, levar em conta a necessidade de concretizar o interesse público quando da edição de novas leis. Portanto, introduzida lei que não esteja eivada de quaisquer vícios capazes de obstaculizar a sua produção de feitos e que, expressamente, admita a prática de determinado ato jurídico (lato sensu) pela Administração, não há como lhe negar o exercício de tal poder ao se empregar a indisponibilidade do interesse público como verdadeira panaceia. À luz das ponderações acima, alcança-se a conclusão de que a legalidade, na acepção de princípio estruturante do direito administrativo, é consequência da indisponibilidade do interesse público – e não o contrário.
A partir da promulgação de lei que, inequivocamente, autoriza a Administração a agir de determinada forma, não há como cogitar impedi-la sob o fundamento de que os seus interesses são indisponíveis. Isso porque, gize-se, a indisponibilidade dos seus interesses já foi um dos filtros a orientar o legislador no curso do processo legiferante”[3]. Desta forma, havendo regra legal de atribuição de competência, que confira à Administração Pública a possibilidade de celebração de acordos, como é o caso da regra contida no art. 26 da LINDB, evidentemente tais acordos serão juridicamente viáveis, inclusive à luz do princípio da indisponibilidade do interesse público. Dito de outro modo: tendo o legislador atribuído a competência para a Administração Pública acordar, será despropositado que o administrador invoque o princípio da indisponibilidade do interesse público como razão embaraçar a celebração de tal acordo.
Diante de uma norma de atribuição de competência que embase a celebração de acordos administrativos, a Administração Pública poderá refutá-los por sua eventual inconveniência, mas poderá refutá-los por impossibilidade jurídica de sua celebração, tampouco aduzir que o princípio da indisponibilidade do interesse público os inviabiliza. Com efeito, há várias normas jurídica que preveem a possibilidade de celebração de acordos pela Administração Pública, algumas das quais já existentes no ordenamento jurídico brasileiro há algum tempo, como se pode depreender no item III, abaixo (diálogos).
Bem verdade que o STF já reconheceu, diante das particularidades do caso concreto, a possibilidade de celebração de acordo pela Administração Pública mesmo ausente preceito legal específico (RE 253.885), mas a regra legal em comento inegavelmente traz consigo a vantagem de estabelecer que “qualquer órgão ou ente administrativo encontra-se imediatamente autorizado a celebrar compromisso, nos termos do art. 26 da Lei, não se fazendo necessária a edição de qualquer outra lei específica, decreto ou regulamento interno”, de modo que “o grande mérito do compromisso previsto no art. 26 da LINDB é superar a dúvida jurídica sobre permissivo genérico para a administração pública transacionar. De modo claro e contundente, a autoridade administrativa poderá firmar compromisso, ou seja, celebrar acordos”[4]. Por fim, deve-se destacar que a referência à necessidade de observância da “legislação aplicável”, contida no art. 26 da LINDB, de modo algum traduz a necessidade de que a possibilidade de acordos ou compromissos reclamem a integração ou a complementação por meio de outras normas legais ou infralegais. Isso porque o art. 26 da LINDB é, por tudo o que já restou afirmado, norma autoaplicável e, portanto, não exige qualquer interpositio. O dever de observância da “legislação aplicável” diz com a necessidade de que os acordos e compromissos, ao tratarem das mais variadas condutas administrativas, deverão levar em consideração o regramento constitucional, legal e infralegal incidente justamente sobre tais condutas.
[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Direito Administrativo no Século XXI. Belo Horizente: Fórum, 2018, p. 141
[2] MAFFINI, Rafael; HEINEN, Juliano. Análise acerca da aplicação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (na redação dada pela Lei nº 13.655/2018) no que concerne à interpretação de normas de direito público: operações interpretativas e princípios gerais de direito administrativo. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. v. 277, n. 3, set/dez 2018, p. 262-263.
[3] MAFFINI, Rafael; CIRNE, Rodrigo de Jesus. Arbitragem e Administração Pública: uma análise da arbitrabilidade dos litígios envolvendo a Administração Pública à luz da disponibilidade dos direitos. Revista da ESDM, v. 4 n. 8, 2018, p. 90-91.
[4] GUERRA, Sérgio; PALMA, Juliana Bonacorsi. Art. 26 da LINDB – Novo regime jurídico de negociação com a Administração Pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial – Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 135-169, nov. 2018, p. 146-147.
Por fim, mas não menos importante, precisamos verificar o outro direcionamento empírico da Lei nº 13.655/2018, referente às normas inseridas na LINDB voltadas à concretização do princípio da segurança jurídica, notadamente os seus artigos 23, 24 e 30.
A Lei nº 13.655/2018 e a promoção da segurança jurídica
Por Rafael Maffini
O artigo 23 contempla um direito subjetivo a regras de transição sempre que houver alteração nas regras jurídicas aplicáveis ou em suas respectivas interpretações. Com efeito, a segurança jurídica não interdita inovações na ordem jurídica ou na sua interpretação, as quais podem inclusive ser mostrar oportunas em face da evolução experimentada pela sociedade. Contudo, mudanças na ordem jurídica e mesmo nas interpretações que incidem sobre a ordem jurídica não podem ocorrer de modo abrupto, sem que as legitimas expectativas depositadas sobre o regime anterior sejam consideradas. Neste particular, são bem-vindas inovações como a contida no art. 23 da LINDB, eis que se propõem a romper a lógica – já inconcebível nos tempos atuais – de que o direito não protege ou tutela expectativas. Igualmente, prestam-se a superar uma compreensão jurisprudencial de que inexiste qualquer direito à regime jurídico. Neste sentido, Floriano de Azevedo Marques Neto assevera que “é inegável o avanço da interpretação a aplicação das normas de direito público traduzidas pela Lei nº 13.655/18.
Em geral, e especialmente no art. 23, a lei nova consegue, percucientemente, equilibrar a necessária dinâmica de mudança dos padrões hermenêuticos. O direito é dinâmico e a interpretação evolui, num fluxo contínuo de revisão e mudança. Porem isso não pode implicar em perda da função estabilizadora do Direito. Admitir a mudança como algo vital ao sistema e ao mesmo tempo contemplar mecanismos que dotem de previsibilidade, plausibilidade e graduação, é fundamental. E a regra de transição mandatória trazida pelo art. 23 da LINDB é um exemplo de acerto deste equilíbrio”[1]. Ou seja, no caso do art. 23 da LINDB “não basta apenas haver um ‘turning point’ ou virada hermenêutico-jurisprudencial. A superação ou revogação dos precedentes anteriores pelo novo precedente (ou, ainda, a alteração da jurisprudência anterior) deve ainda vir acompanhada da manutenção dos efeitos dessas decisões anteriores, sendo que o novo entendimento ou interpretação só passará a ser aplicado de modo integral e definitivo depois de ultrapassado o período do regime de transição”[2]. Ainda na dimensão da segurança jurídica, o artigo 30 da LINDB explicita de modo deveras claro o clamor por segurança jurídica, em evidente materialização do que se encontra referido na própria ementa da Lei 13.655/2018[3]. Com efeito, estabelece o art. 30 da LINDB que “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”. Trata-se, pois, de preceito legal que ser presta a minimizar os problemas decorrentes da insegurança jurídica decorrente das constantes alterações de orientação decisória decorrentes da função de administração pública. Como refere Irene Nohara, “o problema daqueles que estabelecem relações jurídicas com a Administração Pública, é que há alterações constantes nas orientações normativas seja da Administração, seja dos órgãos de controle da Administração, como o Tribunal de Contas, e até do Judiciário, que também a controla, cuja jurisprudência não se consolida de forma definitiva, mas muda em função das composições sobretudo dos órgãos de cúpula.
Assim, é cada vez mais difícil se orientar diante dessa instabilidade na interpretação do Direito Administrativo, sendo, ainda, tal circunstância ampliada diante da alteração frequente da própria legislação, dada mutabilidade da disciplina normativa”[4]. Daí porque se impõe concordar com Egon Bockmann Moreira e Paula Pessoa Pereira, para quem “por meio do art. 30, torna-se patente o dever de incrementar a segurança jurídica por meio de atos regulamentares e não regulamentares, formalizando a segurança e a estabilidade indispensáveis para o Estado de Direito. Demais disso, é celebrada a Administração autovinculante – em verdadeira proibição do venire contra factum proprium – e se confere legitimidade reforçada às suas decisões”[5], de modo que “todas as autoridades públicas, sem exceção, devem atuar com o escopo de aumentar a segurança jurídica. Em seguida, especifica, numerus apertus, três modos de incrementar a segurança jurídica na aplicação das normas.
O dispositivo legal positiva norma prescritiva de observância pelos decisores dos órgãos administrativos e controladores, assim como todas as autoridades públicas, dos precedentes formados nas decisões tomadas pelos tribunais ou órgãos com competência para definir sobre a interpretação e aplicação das regras envolvidas nos casos concretos. Tal dever em tudo se assemelha com aquele imposto aos órgãos jurisdicionais nos termos dos arts. 926 e 927 do CPC. O que a norma do art. 30 determina é que os julgamentos administrativos sobre casos semelhantes sejam isonômicos àqueles dantes proferidos, sob pena de macular a própria validade da decisão. Exigência que tem como pressuposto lógico-jurídico que as decisões sejam proferidas de molde a assumir essa condição”[6]. De outra banda, deve-se atentar para o fato de que o rol de instrumentos referidos no art. 30 da LINDB (regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas) é meramente exemplificativo, de modo que o dever geral de efetivação e ampliação da segurança jurídica neles não se esgota. Dito de outro modo: as autoridades administrativas, controladoras e judiciais devem visar à efetivação e ao aumento da segurança jurídica através de todos os meios ou instrumentos pelos quais concretizam as suas respectivas competências institucionais, e não somente – mas também – através dos instrumentos explicitados no art. 30 da LINDB. Quanto ao caráter exemplificativo dos instrumentos referidos no art. 30 da LINDB, Fábio Martins de Andrade leciona que “tal enumeração deve ser compreendida como exemplificativa, e não exaustiva ou taxativa, a depender da competência legislativa ou regulamentar atribuída como função imprópria de cada autoridade pública. A novidade aqui está no fato de que tais instrumentos terão caráter vinculante Em alguns campos específicos do direito as respostas a consulta vêm começando a ter caráter vinculante, depois de muito tempo de severas críticas doutrinárias a respeito da situação incoerente para com o particular. Evidentemente, tal caráter vinculante não serve para engessar indefinitivamente a orientação consagrada no instrumento, mas certamente sua mudança futura sujeita-se a um maior ônus argumentativo e passarão a valer dali para frente”[7].
Trata-se, pois, de uma norma jurídica de status legal que determina que, em nome da segurança jurídica e da proteção da confiança, sejam observadas as diretrizes decisórias decorrentes de normas ou condutas administrativas infralegais. O parágrafo único do art. 30 da LINDB estabelece o caráter vinculante dos instrumentos concretizadores da noção de segurança jurídica e de proteção da confiança, em relação aos órgãos ou entidades a que se destinam. Ora, parece evidente tal desdobramento das noções de segurança jurídica e de proteção da confiança. De nada adiantaria que a Administração Pública exteriorizasse suas interpretações, orientações, normatizações visando à consecução de um estado de coisas indutor da segurança jurídica e, paradoxalmente, não tivesse a obrigação se observá-las. Trata-se, pois, de um caso evidente de autovinculação administrativa. Neste sentido, como assevera José Marcos Lunardelli, “o parágrafo único do artigo 30 da LIND prescreve a autovinculação administrativa dos órgãos ou entidades que produziram regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consulta, até ulterior revisão. Trata-se de norma que tutela tanto a estabilidade das práticas administrativas que sintetizam determinada interpretação, quanto a fiel submissão do Poder Público ao princípio fundamental da igualdade, pois as pessoas em situações semelhantes serão tratadas da mesma forma”[8]. Neste sentido, deve-se considera que os instrumentos contidos no art. 30 terão, a teor de seu parágrafo único, “‘caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão’. Tal importa dizer que, de acordo com os novos quadrantes trazidos pelo dispositivo em comento, a aplicação da vinculação aos precedentes administrativos será predicadora da existência de identidade subjetiva. É dizer, que a interpretação materializada por intermédio da norma veiculada pelo ato administrativo paradigma (seja uma súmula, uma decisão, uma normatização, ou um parecer jurídico) seja construída e aplicada no âmbito da mesma entidade administrativa (a exemplo de uma súmula que terá o condão de vincular a autarquia que a expediu). O racional trazido pelo novo diploma, também, predica a existência de uma identidade objetiva entre o provimento atual e o paradigma, ou, mais tecnicamente, ao holding”[9]. Daí porque “para se desvincular de interpretações jurídicas reiteradas que foram cristalizadas em instrumentos voltados para garantir a segurança jurídica, ou seja, para revisitar uma interpretação que perdura no tempo sem oposição, deve haver motivação especial que demonstre que o compromisso com a exegese até então pacífica não se mostra mais sustentável à vista de novas peculiaridades factuais ou normativas que exigem a superação de tais precedentes. Essa motivação especial requer um ônus argumentativo suplementar que dialogue com a experiência anterior, explicitando com razões suficientemente fortes a necessidade de superação da interpretação consolidada. É imprescindível que se faça a adequada distinção (distinguish) entre o caso concreto e o paradigma, demonstrando que as razões de decidir que norteavam a interpretação predominante são inaplicáveis ao novo caso seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi, seja porque, a despeito de haver certa aproximação entre eles, algumas peculiaridades no novo caso afastam aplicação do precedente, a fim de que hipótese de superação (overrruling) reste cabalmente justificada”[10].
[1] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Art. 23 da LINDB O equilíbrio entre mudança e previsibilidade na hermenêutica jurídica. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial – Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 93-112, nov. 2018, p. 111.
[2] RODRIGUES, Itiberê de Oliveira Castellano. Comentários ao art. 23 da LINDB. In: DUQUE, Marcelo Schenk; RAMOS, Rafael (Coord.). Segurança jurídica na aplicação do Direito Público. Salvador: Juspodium, 2019, p. 108.
[3] “Inclui no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”.
[4] NOHARA, Irene Patrícia. LINDB: Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, hermenêutica e novos parâmetros ao direito público. Curitiba: Juruá, 2018, p. 57-58.
[5] MOREIRA, Egon Bockmann; PEREIRA, Paula Pessoa. Art. 30 da LINDB – O dever público de incrementar a segurança jurídica. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial – Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 243-274, nov. 2018, p. 270.
[6] MOREIRA, Egon Bockmann; PEREIRA, Paula Pessoa. Art. 30 da LINDB – O dever público de incrementar a segurança jurídica. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial – Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 243-274, nov. 2018, p. 264-265.
[7] ANDRADE, Fábio Martins de. Comentários à Lei 13.655/2018 – proposta de sistematização e interpretação conforme. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 313.
[8] LUNARDELLI, José Marcos. Art. 30 da LINDB – Comentário geral. In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da Cunha; ISSA, Rafael Hamze; SCHWIND, Rafael Wallbach. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942. Vol. II. Quartier latin: São Paulo, 2019, p. 478.
[9] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à lei nº 13.655/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 163.
[10] LUNARDELLI, José Marcos. Art. 30 da LINDB – Comentário geral. In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da Cunha; ISSA, Rafael Hamze; SCHWIND, Rafael Wallbach. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942. Vol. II. Quartier latin: São Paulo, 2019, p. 479.
Finalizando a dimensão da segurança jurídica, destaca-se o artigo 24, da LINDB, que trata da vedação de aplicação retroativa de novas interpretações quanto à validade de condutas administrativas.
Comentários ao Art. 24, do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942
Por Rafael Maffini
(Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com redação dada pela Lei 13.655/2018. In: DUQUE, Marcelo Schenk; RAMOS, Rafael (Coord.). Segurança jurídica na aplicação do Direito Público. Salvador: Juspodium, 2019.
(…)
Assim, tem-se que da segurança jurídica e da proteção da confiança emerge a necessidade de preservação de uma condição de previsibilidade, de estabilização e de mínima confiabilidade nas ações estatais, o que é sobremodo relevante na atualidade caracterizada pela acentuada e inevitável dinâmica social, que, em velocidade ímpar, conduz a mudanças constantes. Não se pugna pela petrificação da ordem jurídica, de suas interpretações ou, em geral, das relações jurídico-administrativas, o que, aliás, representaria um contrassenso em face da dinâmica jurídica e social. É verdade que “o futuro não pode ser um perpétuo prisioneiro do passado”. Contudo, tão grave quanto a petrificação do Direito e de sua interpretação seria permitir que alterações abruptas, bem como as relações jurídicas emergentes de tais mudanças, simplesmente desconsiderassem aquelas expectativas que, por razões jurídicas especiais, deveriam ser consideradas legítimas e, portanto, dignas de proteção.
O art. 24 da LINDB confere concretização a tais ideias, porquanto representa importante baliza acerca do modo pelo qual devem ser tratadas as inevitáveis alterações interpretativas próprios do dinamismo do Direito Público.
(…) Assim, dada a relação entre precedentes administrativos e os princípios da segurança jurídica e a proteção da confiança, sem prejuízo da sua relação com as noções de isonomia e igualdade, duas são as questões dignas de atenção: a) requisitos para a caracterização de um precedente administrativo vinculante; b) efeitos decorrentes de alterações dos precedentes. Observe-se que tais questões orbitam ao redor do art. 24, da LINDB, objeto dos presentes comentários, mas igualmente se mostram pertinentes à compreensão do seu art. 30.
Para a configuração de um precedente administrativo vinculante, o art. 24 da LINDB oferece a noção de “orientações gerais da época”, o que é explicitado no seu parágrafo único, segundo o qual se consideram “orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público”. Assim, percebe-se que a LINDB induz certa força vinculante a posturas interpretativas decorrentes de atos públicos de caráter geral, mas também em jurisprudência judicial ou administrativa reiterada, bem como a reiteração de práticas administrativas publicamente conhecidas. No entanto, não há – e parece nem ser conveniente que haja – um conceito do que deva ser considerada a reiteração referida no art. 24, parágrafo único, da LINDB. Assim, sobreleva-se a importância do intérprete no mister de se empregar postulados de razoabilidade e de ponderação de princípios para que se vislumbre casuisticamente se o número de casos é de fato expressivo.
Cumpre ser enfatizado que a segurança jurídica e a proteção da confiança não eliminam a possibilidade de mudança de interpretações. Aliás, as interpretações, os precedentes administrativos e, na dicção do art. 24, da LINDB, as orientações gerais podem ser objeto de alterações, como se encontra subentendido no parágrafo único do art. 30 da LINBD, que trata da possibilidade de ulterior revisão aos instrumentos geradores de segurança jurídica (regulamentos, súmulas administrativas, respostas a consultas, etc).
Todavia, os efeitos de tal mudança de orientação possuem limites, que parecem decorrer da confluência do já referido art. 2°, § único, XIII, da Lei n° 9.784/99 com o art. 24 da LINDB, ao qual se destinarão considerações no tópico seguinte.
(…)
Assim, a análise acerca da validade da atuação administrativa somente poderá levar em consideração as orientações gerais (conceito este definido no art. 24, parágrafo único, da LINDB) vigentes no momento em que tal atuação restou levada a efeito, imunizando-a de eventuais mudanças de interpretação sobre a validade de tal conduta.
O art. 24 da LINDB parece servir para mitigar, ainda que parcialmente, a lógica de que “não há direito adquirido a regime jurídico”. Isso porque uma vez perpetrados determinado comportamento administrativo, porquanto já completada sua produção, a análise sobre sua validade somente poderá levar em conta as interpretações decorrentes das orientações gerais do momento em que produzido, gerando-se em favor dos seus destinatários uma espécie de “direito adquirido a regime interpretativo quanto à validade das condutas administrativas”.
Imagine-se, para ilustrar a extrema pertinência de tal norma com as noções de segurança jurídica e de proteção da confiança, o seguinte exemplo: um determinado contrato administrativo decorre de um processo licitatório que contemplava exigência técnica que, na época, era prevista em determinado ato normativo, ou era admitida pela jurisprudência judicial ou administrativa, ou, ainda, era simplesmente habitual e de amplo conhecimento. Ora, se após celebrado tal contrato surgir nova interpretação que a considerar indevida a exigência técnica inserida no certame, o referido contrato não poderá ser invalidado. Eis o teor do art. 24 da LINDB.
Parece ser óbvia a correção do comando normativo inserto no art. 24 da LINDB. Mas de tanto que tal obviedade vinha sendo desrespeitada, em flagrante violação aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, confirma-se uma parêmia típica da realidade jurídica brasileira, de que até – e principalmente – o óbvio deve estar na expressamente previsto em lei. Apesar do seu atraso, portanto, há de ser saudada a chegada do art. 24 da LINDB.
(…)Este texto possui referências.
Com tais leituras prévias, conseguimos passar pelas cinco dimensões empíricas da LINDB previamente indicadas: 1º motivação; 2º consequencialismo/realismo (artigos 20, 21 e 22); 3º participação/consensualidade/participação (artigos 26, 27 e 29); 4º responsabilização dos agentes públicos (artigos 22 e 28), e, por fim, 5º segurança jurídica e proteção da confiança (artigos 23, 24 e 30).
E, assim, esperamos que tenha sido possível responder à pergunta “Por que tanto se fala sobre a influência da LINDB (Lei nº 13.655/2018) na Administração Pública?”.
Agora, vamos às discussões.
3. DEBATENDO
Com as leituras acima, estaremos aptos, professores e alunos, a debater algumas questões a respeito da matéria:
- As modulações consequenciais a que se referem os artigos 20 e 21 da LINDB, com a redação dada pela Lei 13.655/18, podem justificar inclusive a manutenção de condutas administrativas inválidas, nos moldes do que os artigos 147 e 148 da Lei 14.133/21 estabelecem em relação a contratos administrativos inválidos?
- O artigo 26 da LINDB, com a redação dada pela Lei 13.655/18, pode ser considerada uma cláusula geral premissa de acordos com a Administração Púbica?
- A conjugação dos artigos 22 e 28 da LINDB, com a redação dada pela Lei 13.655/18, permite a afirmação de que os agentes públicos possuem direito subjetivo ao erro?
- Quais os instrumentos de consecução de um ambiente de segurança jurídica podem ser encontrados nos artigos 23, 24 e 30 da LINDB, com a redação dada pela Lei 13.655/18?
Também podemos sugerir algumas atividades reflexivas adicionais:
- Considerando eventos climáticos intensos, pandemias, em uma ideia de “Direito Administrativo da Crise”, como as alterações da LINDB podem contribuir para o Gestor Público agir em cenários como este?
- Se tivéssemos de “sacrificar” quatro dos cinco direcionamentos empíricos da Lei 13.655/18, restando apenas um deles, qual você selecionaria para sobreviver no ordenamento jurídico, considerando o impacto para o futuro da Administração Pública, e por quê? (Tal tópico pode ser ou discutido em aula com o confronto de visões distintas entre alunos, com a moderação do Professor, ou sugerido à elaboração de um texto de até 3.000 caracteres).
- E, se fossem “sacrificados” todos os comandos da Lei 13.655/18, ainda assim poderíamos defender a sua observância na atuação pública (administrativa, controladora e judicial)? (Tal tópico pode ser ou discutido em aula com o confronto de visões distintas entre alunos, com a moderação do Professor, ou sugerido à elaboração de um texto de até 3.000 caracteres).
4. APROFUNDANDO
Para saber mais, busque, além dos textos citados ao longo da aula, os seguintes livros e artigos:
ANDRADE, Fábio Martins de. Comentários à Lei 13.655/2018 – proposta de sistematização e interpretação conforme. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo, v. 237, jul/2004.
JORDÃO, Eduardo. Art. 22 da LINDB Acabou o romance: reforço do pragmatismo no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo., Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei no 13.655/2018), p. 63-92, nov. 2018.
MAFFINI, Rafael; HEINEN, Juliano. Análise acerca da aplicação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (na redação dada pela Lei 13.655/2018) no que concerne à interpretação de normas de direito público: operações interpretativas e princípios gerais de direito administrativo. Revista De Direito Administrativo, 277(3), 247–278. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/77683/74646
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à lei nº 13.655/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 17
MONTEIRO, Vera; LOTTA, Gabriel (Coord. de pesquisa). O fenômeno do apagão das canetas: efeitos da dinâmica do controle para servidores e para políticas públicas de áreas-fim. São Paulo: Fundação Tide Setubal, 2024. Disponível em: https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/o-fenomeno-do-apagao-das-canetas/#
PALMA, Juliana. Segurança jurídica para a inovação pública: a nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 13.655/2018). Revista De Direito Administrativo, 279(2), 209–249. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/82012/78227.
RAMOS, Rafael (Coord.). Comentários à nova LINDB: Lei nº 13.655/2018. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2025.
RIBEIRO, Leonardo Coelho. Vetos à LINDB, o TCU e o erro grosseiro dão boas-vindas ao “administrador médium”. Conjur. 08/08/2018. https://www.conjur.com.br/2018-ago-08/leonardo-coelho-vetos-lindb-tcu-erro-grosseiro/
SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito Administrativo do Medo – risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
SUNDFELD, Carlos Ari; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Uma nova lei para aumentar a qualidade jurídica das decisões públicas e de seu controle. In: SUNDFELD, Carlos Ari (organizador). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros, 2013.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo: o novo olhar da LINDB. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2022.