Roteiro de Aula

Como surgiu o direito administrativo brasileiro?

Uma história crítica da expansão do poder na Primeira República

1. CONHECENDO O BÁSICO

Nosso objetivo nesta aula é entender a história do direito administrativo sob uma perspectiva empírica, fundada em fontes primárias, e crítica, a partir de fontes secundárias. Faremos isso através de uma imersão nos debates a respeito dos limites do poder administrativo durante a implementação das reformas urbanas e sanitárias na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, no início do século XX.

Nossas fontes primárias são a legislação, doutrina jurídica, jornais e processos judiciais produzidos naquele momento. Esses documentos são a base empírica da historiografia dedicada a entender as mudanças e continuidades, as funções e os problemas centrais do direito administrativo ao longo da história do Brasil. As fontes secundárias são a própria historiografia, ou seja, os trabalhos produzidos por pesquisadores da área, com base em fontes primárias. Esses pesquisadores nos fornecem perspectivas críticas fundadas em periodizações, contextualizações e análises detalhadas das fontes. 

Portanto, nesta aula, vamos evitar as generalizações históricas dos manuais, que muitas vezes perpetuam narrativas lineares e pouco críticas do direito. Ao invés de inserir o direito administrativo brasileiro em um caminho de estágios evolutivos liderado pela Europa ocidental e pelos Estados Unidos, vamos aprender sobre as especificidades desse direito no nosso contexto histórico. Para que servia o direito administrativo no Brasil do final do século XIX e do início do século XX? Como a política, a sociedade e a economia brasileiras moldaram o direito administrativo? Quais foram as principais mudanças durante o período estudado? O que isso tudo nos diz sobre o nosso presente? Essas são algumas questões que tentaremos responder.

O final do século XIX e início do XX foi um período de mudanças profundas para o país. Passamos da monarquia à república e fizemos a transição da escravidão para o trabalho livre, auxiliada pelos estímulos estatais à imigração em massa de trabalhadores vindos principalmente da Europa. Para os governantes da época, substituir a mão de obra escrava significava, também, embranquecer a população brasileira para “regenerar” a força de trabalho e europeizar, ou seja, “civilizar” o país. Nesse processo, milhões de brasileiros negros e brasileiras negras recém-libertos da escravidão foram abandonados, sem educação e sem acesso à terra e ao trabalho mais bem remunerado. A República liberal tornou todos cidadãos, mas as restrições constitucionais ao sufrágio e a violência eleitoral do coronelismo afastaram a grande maioria da população dos governantes.

No início do século XX, nossas cidades estavam em ebulição. A migração dos recém-libertos e estrangeiros fez explodir a população urbana. Entre 1872 e 1920, o Rio de Janeiro passou, aproximadamente, de 270.000 para 1.100.000 habitantes. A infraestrutura da capital, ainda quase inteiramente colonial, não dava conta desse crescimento. Em especial, não havia moradia suficiente para tanta gente. Todos os dias, recém-chegados subiam morros, se instalando em moradias improvisadas. Os casarões coloniais do centro foram transformados em cortiços, onde trabalhadores alugavam quartos minúsculos para famílias inteiras, que dividiam banheiros e pátios para cozinhar e lavar roupas.

As aglomerações urbanas facilitavam a proliferação de doenças para as quais os médicos ainda buscavam soluções. Desde meados do século XIX, a população do Rio de Janeiro sofria com epidemias de febre amarela, tuberculose e varíola, entre outras doenças, que matavam e marcavam milhares de pessoas todos os anos. Contra as epidemias, os médicos recomendavam a reformulação dos espaços públicos e privados para facilitar a circulação de luz, ar e água. Muitos ainda acreditavam que as doenças eram transmitidas por miasmas aéreos. Outros, mais atinados com os desenvolvimentos científicos da época, começaram a estudar e a contribuir para a pesquisa científica que identificou vírus e vetores, como o mosquito transmissor da febre amarela.

Foi nesse contexto que, entre 1903 e 1906, o presidente Rodrigues Alves arregimentou os melhores engenheiros e médicos brasileiros para transformar o Rio de Janeiro em um modelo de civilização para o país. A nova capital deveria marcar uma ruptura com o passado colonial e projetar o futuro de uma nação conectada ao ocidente através do comércio, da arquitetura e dos hábitos. 

Duas comissões federais, lideradas por engenheiros, construíram a Avenida Central – atual Avenida Rio Branco – e o novo porto, que substituiu os trapiches e pequenas praias da Baía de Guanabara. O engenheiro e prefeito Pereira Passos ficou encarregado de demolir centenas de prédios, entre os quais cortiços insalubres, para alargar ruas, construir praças e erguer novos edifícios, com padrões higiênicos e arquitetônicos europeus.

O médico Oswaldo Cruz ficou encarregado da Diretoria Geral de Saúde Pública, uma instituição federal dedicada aos serviços de fiscalização e profilaxia de doenças. Com o auxílio da polícia, a Diretoria ordenou a interdição e demolição de cortiços, proibiu setores do comércio de rua, reprimiu práticas religiosas, fumigou enxofre nas casas para eliminar mosquitos e vacinou as pessoas contra a varíola, entre outras medidas sanitárias.

As medidas de Passos e Cruz eram efetivas, mas desconsideravam as angústias da população mais pobre, que se sentia constantemente ameaçada em seus costumes e moradias. As reformas urbanas agravaram a crise habitacional. No episódio mais conhecido do período – a Revolta da Vacina – milhares de trabalhadores, estudantes e comerciantes foram às ruas protestar violentamente contra a vacinação obrigatória.

Voltemos, agora, ao direito administrativo. Todas essas reformas urbanas e sanitárias foram possíveis porque o presidente e o Congresso Nacional, agindo quase que em uníssono, reformularam a legislação a respeito de desapropriações e medidas de saúde pública, dando mais independência e recursos à administração pública. Os administrativistas também defenderam uma administração mais forte, capaz de efetuar as intervenções necessárias para “civilizar” o país. Eles, no entanto, recuaram em vários momentos, denunciando os abusos dos governantes da cidade do Rio de Janeiro. Na época, o direito administrativo estava totalmente entrelaçado com a ciência da administração. Ou seja, juristas, médicos e engenheiros discutiam, ao mesmo tempo, questões legislativas, doutrinárias e científicas – a respeito de urbanismo e medicina – em revistas especializadas, manuais e jornais.

Contra a expansão do poder estatal via direito administrativo, juristas, advogados, políticos e líderes sindicais invocaram os princípios liberais do direito constitucional brasileiro. Defendendo os proprietários da capital contra desapropriações, esses críticos acusaram Pereira Passos de ser um ditador e até um socialista, interessado em administrar a propriedade alheia. Oswaldo Cruz, por sua vez, foi acusado de ser um déspota que entrava nas casas e nos corpos das pessoas através das brigadas de mata-mosquitos e das agulhas vacinais. O direito de propriedade, a inviolabilidade de domicílio e a liberdade individual eram os mantras da resistência às reformas do Rio de Janeiro. Para muitos, cabia ao judiciário garantir tudo isso contra o ímpeto autoritário dos governantes.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Vamos começar com o que os historiadores nos dizem a respeito do direito administrativo e da administração pública no final do século XIX e início do XX. Nosso objetivo aqui é identificar os principais argumentos nos textos escritos com base em pesquisas empíricas. Depois, nós vamos mergulhar em algumas fontes primárias para chegar a nossas próprias conclusões a respeito da história do direito administrativo.

Sobre a construção do direito administrativo brasileiro durante o Império, Walter Guandalini Junior escreve:

A tradução do conceito de direito administrativo pela cultura jurídica brasileira do século XIX

Por Walter Guandalini Junior
Rev. Fac. Direito UFMG (2019), n. 74, pp. 473-498.

“[O Direito Administrativo], construído na Europa como instrumento de ação ininterrupta da Administração visando à realização do interesse geral de modo a atender os objetivos de fortalecimento econômico e militar no contexto de competição internacional, ao ser incorporado à cultura jurídica brasileira acabou cumprindo uma função constituinte de fundação da legitimidade do recém-criado Estado brasileiro, no contexto de ruptura da ordem política tradicional e de necessidade de construção de um novo fundamento para o governo da Nação. 

(…)

Em vez de buscar o fortalecimento da autonomia da administração técnica em relação à política, a doutrina brasileira trabalha com uma concepção de direito administrativo que reforça a centralização e a unidade políticas – ao submeter o corpo administrativo à “inspiração” proveniente do Imperador, titular do Poder Moderador e guardião da felicidade nacional”.

Sobre a intervenção estatal na Primeira República, Airton Seelander argumenta:

Pondo os pobres no seu lugar – igualdade constitucional e intervencionismo segregador na Primeira República

Por Airton Seelander
In: COUTINHO, Jacinto N. M. e LIMA, Martonio M. B. (Org). Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.1-26, 13-15.

“Em nossas faculdades de direito, costuma-se ensinar que o intervencionismo se iniciou, no Brasil, com Getulio Vargas. E costuma-se atribuir ao intervencionismo, no plano social, uma função somente integradora, destacando-se seu papel na atenuação ou mascaramento dos conflitos de classe.

Há aqui três equívocos.

O primeiro deles é a datação. Na verdade, o intervencionismo estatal no Brasil começou a ganhar corpo bem antes de 1930. Nos fins do Império e após 1889, já se subsidiava pesadamente uma política de imigração. Na Primeira República, alguns estados já atuavam intensamente nesse campo e se lançavam, mesmo, a dirigir a economia de forma mais ampla, tentando regular seus setores-chave. Essa foi também a época em que deslanchou o intervencionismo no campo da saúde pública, intensificado no combate a epidemias que punham em risco o funcionamento dos portos, a saúde das elites e – afastando potenciais imigrantes – a própria produção do café.

O segundo equívoco consiste em reduzir a história a um teatro de grandes personalidades. Longe de ser simples reflexo de opções de estadistas – que sem dúvida também ocorreram – o intervencionismo foi também uma resposta a pressões acentuadas pela situação econômica e pelos efeitos colaterais do próprio processo de urbanização. (…)

O terceiro equívoco consiste em ignorar, dentro do campo do intervencionismo, as linhas de desenvolvimento dissociadas de um projeto de integração das classes sociais. A ênfase nas políticas sociais atenuadoras da miséria e da tensão entre as classes não pode levar à completa desconsideração do intervencionismo segregador – i.e., das formas de intervencionismo que, não reduzindo as diferenças sociais nem o custo destas para as camadas populares, ampliavam as fissuras entre as classes.

Esse intervencionismo segregador vicejou, sem dúvida, na Primeira República. Em plena vigência de uma Constituição que proclamava a igualdade de todos perante a lei, fez a própria lei um de seus principais instrumentos. Pela lei geral, invocando fins de interesse geral (saúde pública, ordem pública), impunha as demolições dos cortiços dos pobres.”

Agora, vamos analisar algumas das fontes usadas por historiadores para reconstruir a história do direito administrativo no contexto das reformas do início do século XX. Essas fontes são leis e decretos, encontrados na base online da Câmara dos Deputados; doutrina jurídica, encontrada em bibliotecas físicas e digitalizadas; jornais, encontrados na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional; e processos judiciais, encontrados apenas em formato físico, principalmente no Arquivo Nacional.

Comecemos pelas mudanças legislativas que criaram o arcabouço jurídico das reformas, dando mais independência para a administração pública. Antes de ler essas leis, é importante lembrar que as desapropriações para fins de reformas urbanas no Rio de Janeiro foram, em sua maioria, feitas pelo Governo Municipal e as medidas sanitárias foram implementadas pela Diretoria Geral de Saúde Pública, um órgão federal, com base no Código Sanitário (Decreto nº 5.156, autorizado pelo Decreto Legislativo nº 1.151).

Lei n.º 939, de 29 de Dezembro de 1902

Reorganisa o Districto Federal e dá outras providencias

O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil:

Faço saber que o Congresso Nacional decretou e eu sancciono a lei seguinte:

(…)

Art. 16. Não podem as autoridades judiciarias, quer federaes, quer locaes, modificar ou revogar as medidas e actos administrativos, nem conceder interdictos possessorios contra actos do Governo Municipal exercidos ratione imperii.

Decreto n.º 5.156, de 8 de Março de 1904

Dá novo regulamento aos serviços sanitarios a cargo da União

O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil, de accôrdo com o decreto legislativo nº 1.151, de 5 de janeiro ultimo, resolve que nos serviços sanitarios a cargo da União se observe o regulamento que a este acompanha, assignado pelo Ministerio de Estado da Justiça e Negocios Interiores.

Rio de Janeiro, 8 de março de 1904, 16º da Republica.

FRANCISCO DE PAULA RODRIGUES ALVES.
J. J. Seabra.

(…)

Art. 288. Não podem a Justiça sanitaria, nem as autoridades judiciarias, quer federaes, quer locaes, conceder interdicto possessorio contra os actos da autoridade sanitaria exercidos ratione imperii, nem modificar ou revogar os actos administrativos ou medidas de hygiene e salubridade por ella determinadas nesta mesma qualidade.

Fica salvo á pessoa lesada o direito de reclamar judicialmente, perante a Justiça federal, as perdas e damnos que lhe couberem, si o acto ou medida da autoridade sanitaria tiver sido illegal, e promover a punição penal, si houver sido criminosa.

Como será que os juristas da época avaliaram essas mudanças? Vamos ver as reações de alguns juristas a essas novas leis e decretos.

Tratado de Sciencia da Administração e Direito Administrativo

Por Augusto Olympio Viveiros de Castro
(Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1906)

Alguns anos depois, na nova edição de seu tratado, Viveiros de Castro enumerou todos os poderes concedidos ao Prefeito do Distrito Federal e concluiu que:

Tratado de Sciencia da Administração e Direito Administrativo

Por Augusto Olympio Viveiros de Castro
(Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1914, p. 864)

Já Cândido de Oliveira foi ainda mais crítico:

A Restauração do Jus Imperii

Por Cândido de Oliveira
(Revista de Direito Civil, Commercial e Criminal, n. 28, 1913, p. 15)

Assim como hoje, debates jurídicos do início do século XX não estavam restritos à doutrina publicada em manuais e revistas jurídicas. As reformas urbanas e sanitárias foram tão importantes para a sociedade carioca e para o país que muitos jornais cobriram as transformações jurídicas da época. Em várias ocasiões, juristas, advogados e outros atores sociais escreveram colunas de jornal defendendo suas teses jurídicas a favor e contra as transformações do direito administrativo. Os jornais também publicaram charges, que buscavam “traduzir” o direito para seus leitores.

A Reforma Municipal

Por Souza Bandeira, então Procurador dos Feitos da Fazenda Municipal
(Artigo publicado no Correio da Manhã (Rio de Janeiro) em 24 de dezembro de 1902)

Charge publicada no Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) em 5 de dezembro de 1903.

Artigo anunciando a constituição da Associação Defensora da Propriedade

Publicado no Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) em 9 de março de 1906.

Finalmente, vamos um exemplo de processo judicial movido contra a prefeitura. Esses processos não impediram a implementação das reformas. Mas, certamente, fizeram os administradores recuarem em alguns momentos, moldando o tempo e, ocasionalmente, o escopo das medidas urbanas e de saúde pública.

Em 1905, Maria Feydit Ribeiro foi informada de que seu imóvel seria desapropriado para o alargamento da Rua da Assembleia, no centro do Rio de Janeiro. Ribeiro não aceitou e decidiu contestar a desapropriação no Juízo dos Feitos da Fazenda Municipal. Em geral, casos como esse não passavam de tentativas de aumentar as indenizações oferecidas pela Prefeitura. Devido à proibição de revogação de atos praticados ratione imperii, o Juízo podia apenas constituir um comitê de árbitros para avaliar a propriedade e determinar o valor da indenização. Em média, proprietários que iam à justiça conseguiam quase o dobro do valor oferecido originalmente pela Prefeitura.

Mas o caso de Ribeiro era diferente. A Prefeitura havia ordenado a desapropriação de uma zona inteira da cidade, sem especificar quais prédios seriam afetados. Essa “desapropriação por zona” – uma prática importada das reformas urbanas lideradas pelo Baron Haussmann, em Paris, na década de 1850 – abriu uma brecha para contestar a doutrina das ratione imperii.

O caso, portanto, chegou à Corte de Apellação do Rio de Janeiro. Lá, 5 dos 7 desembargadores decidiram a favor de Ribeiro, proibindo a desapropriação por zona. Abaixo, estão transcritos alguns trechos da decisão porque o original é pouco legível.

Corte de Apellação do Rio de Janeiro:

“O que lhe [Judiciário] cumpre é verificar se – por exemplo nos casos de desapropriação, as condições, as formalidades e os limites traçados pelas leis à ação do Poder Administrativo no tocante às garantias do direito de propriedade foram ou não observados para o fim de impedir que sejam violadas essas garantias, expressamente consignadas nas Constituições de todos os povos cultos”

“Não é possível impugnar a atribuição por parte da autoridade judiciária de apreciar a legitimidade do ato administrativo, para impedir-lhe o efeito lesivo do direito individual, sem destruir todo o regime legal e torna-lo ilusório e falaz (Mencel – Inst. Dir. Amm., pags. 76 e 87 v.)”

“A inviolabilidade dos direitos individuais é incompatível com o arbítrio administrativo, mesmo no ato praticado ratione imperii, segundo a doutrina pressuposta verdadeira pelo nosso direito escrito. E para anular esse arbítrio existe o Poder Judiciário… Desde que a autoridade administrativa ultrapassa a esfera de ação que lhe é própria, o seu ato perde a qualidade de ato praticado ratione imperii: não há, na espécie, um simples conflito de interesses individuais e sociais, que se possam, ou não, conciliar”“O nosso direito é expresso: somente se entendem desapropriados os prédios e terrenos, compreendidos total ou parcialmente nos planos, e plantas das obras, os quais forem necessários à execução das mesmas obras”

No âmbito da saúde pública, as transformações jurídicas incluíram a criação de um juízo especializado, o Juízo dos Feitos da Saúde Pública, ou Justiça Sanitária, encarregado de julgar processos de infração sanitária, com base no novo Código Sanitário do Distrito Federal. O Juízo foi um experimento institucional que funcionou apenas entre 1904 e 1911. Durante todo esse período, advogados, juristas e outros contestaram a existência do Juízo.

Abaixo, estão compiladas alegações de advogados em apelações de ordens de despejo emitidas pela Justiça Sanitária em primeira instância.

O Regulamento sanitário, tido por inquisitorial, precisa ser interpretado de modo a torna-lo não uma arma contra o cidadão, mas uma garantia da salubridade dos domicílios. Na hipótese, o Reg. Sanitário tem servido de arma inimiga as mãos do inspetor sanitário Julio da Silva Maia, que declarou peremptoriamente do Embargante pertencer a custa do sacrifício de quem quer que fosse fazer da rua Conde de Bonfim uma Avenida Central, e tomava sua casa como ponto de partida

Pelo direito comum, cuja importância é sem dúvida muito maior que a de uma Justiça instituída para reprimir infrações cometidas contra preceitos higiênicos ainda hipotéticos, e cuja profilaxia estabelecida para combater micróbios não pode ser determinada com precisão, olha-se com mais cuidado para a pessoa do citado, procura-se antes de tudo ver se ele tem qualidade para receber a citação, examina-se a prova das partes litigantes, e procura-se, além de tudo, legalizar o processo de modo que este represente o papel para o qual foi instituído – garantir o réu, fornecer ao juiz meios positivos para chegar ao conhecimento da matéria aduzida nos autos, e poder decidir serenamente

Depois de escrever que o Juízo dos Feitos da Saúde Pública era “especial” e “puramente administrativo”, um advogado completou: “E tanto que, esse Regulamento não foi aprovado pelo Congresso; e o próprio juiz não é, na verdadeira acepção, um magistrado, com as regalias e garantias outorgadas pelas leis vigentes

3. DEBATENDO

1. O que é intervencionismo segregador? Como essa ideia nos ajuda a entender a história do direito administrativo no Brasil?

2. Quais eram as características do direito administrativo brasileiro durante o século XIX? Como esse ramo do direito mudou no momento das reformas urbanas do Rio de Janeiro?

3. Quem foram os principais atores da construção do direito administrativo no início do século XX? Podemos dizer que o direito foi construído apenas por juristas?

4. Por que o conceito de atos praticados ratione imperii foi inserido na legislação? Como esse conceito foi recebido? Que argumentos foram usados para criticar esse conceito? Que argumentos foram usados para defender esse conceito?

5. Como você interpretaria a charge publicada no Jornal do Brasil em 1903? Quais foram os objetivos dos editores do Jornal ao publicar essa charge?

6. Como o poder judiciário lidou com a limitação imposta pela legislação reformista? O que isso nos diz sobre separação de poderes e direito administrativo?

7. Como você justificaria a criação do Juízo dos Feitos da Saúde Pública? Quais foram as críticas direcionadas a esse Juízo? O que mais precisaríamos saber para verificar se as críticas eram pertinentes?

8. A distinção entre atos de gestão e atos de império perdurou durante todo o século XX na nossa doutrina administrativa. O que a análise de fontes primárias nos diz sobre as origens dessa distinção no Brasil?

9. Como você situaria essas discussões da aula de hoje nos conceitos e no contexto do direito administrativo atual?

4. APROFUNDANDO

Benchimol, Jaime Larry. Pereira Passos: Um Haussmann Tropical: A Renovação Urbana da Cidade do Rio de Janeiro no Início do Século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1990

Cantisano, Pedro Jimenez. “Direito de Propriedade e Reformas Urbanas: Rio de Janeiro, 1903-1906”. Revista Estudos Históricos – CPDOC/FGV, vol. 29, n. 58

Cantisano, Pedro Jimenez. “A Refuge from Science: The Practice and Politics of Rights in Brazil’s Vaccine Revolt”. Hispanic American Historical Review (2022), vol. 102, issue 4

Chalhoub, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996

Correa, Gustavo Zatelli. A doutrina de “estado” e os “liberalismos” – uma análise a partir das doutrinas de direito administrativo na Primeira República do Brasil. Anais do CONPEDI, 2014, p. 157-186

Ernst, Daniel R. Tocqueville’s Nightmare: The Administrative State Emerges in America, 1900-1940. Oxford: Oxford University Press, 2014

Guandalini Junior, Walter. “Espécie Invasora — História da Recepção do Conceito de Direito Administrativo pela Doutrina Jurídica Brasileira no Século XIX”. Revista de Direito Administrativo 268 (2015): 213-247

Hespanha, António Manuel. “O Direito Administrativo como Emergência de Um Governo Activo (c. 1800-c. 1910)”. Revista da História das Ideias 26 (2005): 119-159

Hochman, Gilberto. A Era do Saneamento: As Bases da Politica de Saúde Publica no Brasil. São Paulo: Hucitec Editora, 2013

Queiroz, Eneida Quadros. Justiça Sanitária – Cidadãos e Judiciário nas Reformas Urbana e Sanitária – Rio de Janeiro (1904-1914) (Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Fluminense – 2008)

Seelaender, Airton Cerqueira Leite. “O direito administrativo e a expansão do estado na Primeira República: Notas preliminares a uma história da doutrina administrativista no Brasil”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 182:485 (2021), 165-202