Roteiro de Aula

Como a Administração Pública pode terceirizar?

Quem paga a conta pelos encargos trabalhistas?

1. CONHECENDO O BÁSICO

A terceirização é uma prática que vem se tornando cada vez mais popular, tanto no âmbito privado, quanto público, nos mais diversos segmentos da economia. Esse modelo consiste na contratação de serviços por meio de uma empresa intermediária, em que há a transferência de parte das atividades da parte contratante para um terceiro. Para termos uma noção de como isso acontece, podemos pensar em um exemplo típico de terceirização: atividades de limpeza. Vamos imaginar uma faculdade de direito (por exemplo, a Faculdade Justeza) que contrata uma empresa (por exemplo, a Empresa Limpilda) para manter salas de aula, banheiros, corredores e demais espaços higienizados. Nesse caso, o trabalhador é contratado pela Empresa Limpilda e vai executar os serviços de limpeza na Faculdade Justeza. No exemplo, a Justeza terceirizou a limpeza para a Limpilda.

Assim, uma parte contratante (tomadora dos serviços) contrata uma empresa prestadora de serviços (terceirizadora) para lhe fornecer serviços, como limpeza, recepção, segurança, manutenção, alimentação, dentre outros. Entre elas, é firmado um contrato de prestação de serviços. Esses serviços são efetivamente executados pelos trabalhadores vinculados à empresa terceirizadora. O vínculo empregatício se dá entre a terceirizadora e o respectivo trabalhador. Há, assim, três atores – contratante, terceirizadora e trabalhador – envolvidos nessa triangulação, como ilustrado abaixo.

Fonte: Elaborado pela autora.

Por um lado, os entusiastas da terceirização argumentam que esse modelo permite transferir uma ou mais atividades a outras empresas, deixando a parte contratante mais livre para focar em suas atividades centrais e estratégias. Essa descentralização também proporcionaria maior otimização de recursos financeiros. Por outro lado, os críticos desse modelo sugerem que a terceirização tende a precarizar as condições de trabalho e a própria qualidade dos serviços prestados, o que poderia ser ainda mais preocupante quando falamos em serviços de interesse público. Em que pese as importantes questões levantadas, fato é que a terceirização se espraiou fortemente pelos mais diversos segmentos e se tornou realidade também na administração pública.

Embora, na prática, o uso da terceirização ocorra desde a década de 1970 no Brasil, a sua regulação foi tardia. Apenas em 2017, com as Lei nº 13.429 e a Lei nº 14.467 (conhecida como Reforma Trabalhista), houve tratamento do tema de maneira mais ampla. Até então, a terceirização foi especialmente balizada pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), bem como por normas específicas, tais como o Decreto-Lei nº 200/1967 (que disciplinou a organização da administração federal), a Lei 6.019/1974 (que regulou o trabalho temporário) e a Lei 7.102/1983 (que tratou de serviços de segurança para estabelecimentos financeiros). Podemos observar que os marcos jurídicos sobre a terceirização estão bastante ligados ao direito do trabalho e não apenas ao direito administrativo. Nesse sentido, para compreendermos esse fenômeno na administração pública, precisaremos navegar entre esses dois ramos do direito.

Quanto à jurisprudência do TST, a Súmula nº 331 autorizava apenas a chamada terceirização de atividades-meio, isso é, aquelas que não eram principais para a empresa tomadora. A terceirização das atividades-fim estava vedada. Com a entrada em vigor da Lei nº 14.467/2017, a terceirização das atividades-fim foi autorizada, o que foi validado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Tema 725 da repercussão geral e da ADPF nº 324.

Na esfera pública, por sua vez, a Lei nº 14.133/2021 estabelece limites à terceirização. De acordo com o seu artigo 48, podem ser objeto de execução por terceiros as atividades acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos abarcados pela competência legal do órgão ou da entidade. Pelo dispositivo, fica proibido à administração pública ou a seus agentes: “I – indicar pessoas expressamente nominadas para executar direta ou indiretamente o objeto contratado; II – fixar salário inferior ao definido em lei ou em ato normativo a ser pago pelo contratado; III – estabelecer vínculo de subordinação com funcionário de empresa prestadora de serviço terceirizado; IV – definir forma de pagamento mediante exclusivo reembolso dos salários pagos; V – demandar a funcionário de empresa prestadora de serviço terceirizado a execução de tarefas fora do escopo do objeto da contratação; VI – prever em edital exigências que constituam intervenção indevida da Administração na gestão interna do contratado”.

A Súmula nº 331 também disciplina a responsabilidade pelo inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte da empresa terceirizadora, indicando a responsabilidade subsidiária da parte contratante (tomadora dos serviços), inclusive em relação à administração pública (quando incorrer em conduta culposa). E é justamente nesse ponto que a discussão jurídica mais interessante começa!

No âmbito privado, se empresa terceirizadora (empregadora direta dos trabalhadores terceirizados) deixa de pagar as verbas trabalhistas, a empresa tomadora é subsidiariamente responsável por esses encargos (conforme atual redação do artigo 5°-A, §5° da Lei n° 6.019/1974). No caso da administração pública, essa responsabilidade é objeto de muitos debates, sobretudo porque o artigo 71 da Lei nº 8.666/1993 dispunha que a inadimplência da terceirizadora não transfere para a administração pública a responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas. Na ADC nº 16, o STF declarou a constitucionalidade do dispositivo. No Tema 246 da repercussão geral, o STF firmou entendimento de que não há transferência automática para a administração pública da responsabilidade pelos encargos trabalhistas, dependendo de comprovação de culpa in eligendo ou culpa in vigilando. Ainda sem decisão, há o Tema 1118 da repercussão geral, em que o STF irá decidir quem tem o ônus de provar a conduta culposa da administração pública.

Apesar dos vários precedentes existentes, a situação está longe de ser pacífica. Frequentemente, observamos que a Justiça do Trabalho profere decisões reconhecendo a responsabilidade subsidiária da administração pública, em razão de alguma conduta culposa verificada no caso concreto. Não raro, essas decisões da justiça trabalhista são objeto de reclamações constitucionais junto ao STF para que seja afastada a responsabilidade da administração pública, com base nos precedentes firmados na ADC nº 16 e Tema 246 da repercussão geral. Em muitos casos, o STF julga procedente tais reclamações constitucionais, cassando as decisões da Justiça do Trabalho e afastando a responsabilidade da administração pública pelos encargos trabalhistas nas terceirizações.

Esse imbróglio nos leva a um importante questionamento: se a empresa terceirizadora não pagou os trabalhadores terceirizados e se a administração pública não tiver responsabilidade subsidiária nesses casos, quem, então, pagará essa conta?

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Para começarmos a nossa aproximação com o tema e refletir sobre a pergunta acima, vamos conhecer um caso real. A notícia abaixo, publicada no portal UOL em 18 de outubro de 2024, ilustra bem o impasse acerca da responsabilidade subsidiária da administração pública nos contratos de terceirização.

Um mês após calote de empresas, terceirizados de fóruns seguem sem salários

Por Uesley Durães, jornalista do portal UOL
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/10/18/salarios-calote-empresas-tj-sp.htm

Vigilantes da comarca do TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) de Cesário Lange, no interior de São Paulo, relatam estar sem salários e benefícios um mês após o órgão relatar o calote de empresas terceirizadas que prestavam serviços de limpeza e vigilância.

O que aconteceu

Trabalhadores foram informados por telefone que não trabalhariam mais no TJ-SP. Porém, os funcionários dizem que não foram notificados formalmente sobre desligamentos e que não receberam o salário referente ao mês de setembro. Agora, o grupo procura defesa jurídica e relata “descaso” após passar dificuldades financeiras.

Benefícios de agosto e setembro também não foram pagos. Os trabalhadores, que preferem não se identificar por medo de retaliação, disseram ao UOL que tentam contato desde agosto com a empresa Açoforte, responsável por seus contratos de trabalho, e com o TJ-SP, órgão para o qual prestavam serviços até o mês passado, que prometeu assumir as dívidas.

Os vigilantes dizem que não foram procurados pela Açoforte e pelo TJ-SP. Os funcionários da comarca que atendem a cidade a 150 km de São Paulo descrevem estar “indignados” com a situação. Trabalhadores de fóruns de outros municípios também relatam a falta de pagamento.

A Açoforte foi apontada pelo TJ-SP como uma das empresas que deram calote no órgão. À época, centenas de funcionários de comarcas do interior relataram a falta de salários. O UOL apurou que parte dos funcionários recebeu seus salários, mas outro grupo ainda enfrenta incerteza referente ao pagamento e ao futuro trabalhista. Vigilantes estão com contas atrasadas e relatam dificuldade para sustentar suas famílias.

Os trabalhadores estão afastados dos seus postos de trabalho desde o dia 10 de setembro. Nesta quinta-feira (17), outra empresa assumiu contrato emergencial para atuar junto ao TJ-SP na prestação de serviços. Os funcionários não foram consultados para a recolocação dos postos.

“O que a gente fica indignado é que trabalhamos em um lugar de justiça, e não vemos isso acontecer”. Um dos vigilantes que falaram com a reportagem disse que foi orientado a “ficar à disposição” da empresa durante a transição. Mas depois disso não foi respondido sobre um possível retorno, nem sobre uma rescisão. O homem que se identificou como supervisor da Açoforte e que estaria em contato com eles, sumiu.

Outro lado: empresa nega acusações

A empresa nega as acusações e diz que se os funcionários quiserem, poderão trabalhar em outros polos de prédios públicos ainda atendidos pela Açoforte. Sobre a falta de salário, a empresa diz que o TJ-SP fez a retenção de um montante suficiente para pagar todos os funcionários pendentes. A empresa diz que entregou um ofício com a folha de pagamento referente ao período do mês de setembro com benefícios e salários.

O TJ-SP, por sua vez, disse que “alguns desses pagamentos (cerca de 30 pessoas) estão pendentes por inconsistências nas contas bancárias ou CPFs informados, sendo necessária apenas a correção dos dados para a liberação de valores”.

O UOL questionou o órgão sobre os pagamentos do último mês e sobre o contato com os funcionários afastados, de acordo com o o TJ-SP: “Esses pagamentos são realizados com base na folha da empresa Açoforte, que contém os nomes dos funcionários residentes, ou seja, aqueles com dedicação exclusiva no posto do fórum. Todos os colaboradores que constavam dessa lista receberam o salário referente ao mês de agosto e o trâmite para o pagamento dos salários de setembro está em andamento com prioridade no TJSP. (…) Com relação à recontratação dos colaboradores, é importante esclarecer que, por impedimento contratual, o TJSP não pode indicar trabalhadores para as empresas contratadas, mas, costumeiramente, a mão de obra existente é absorvida pelas novas prestadoras de serviços”.

TJ-SP e empresa podem ser responsabilizados

Embora os funcionários sejam da empresa terceirizada, o TJ-SP também tem responsabilidade, diz Karolen Gualda Beber, advogada especialista em Direito do Trabalho. “Tem que escolher uma empresa boa, sadia e vigiar a prestação para saber se ela está pagando direito, se está fazendo o recolhimento dos impostos. É dever da tomadora cuidar desse contrato, desse serviço. Em regra, eu tenho essa responsabilidade. Se eu escolhi mal, eu posso ser responsabilizado”, explica.

Agora, o grupo de seis funcionários que procurou o UOL narra que espera a regularização salarial e uma rescisão justa. “Sem clima”, como relataram, para continuar como funcionários da Açoforte, os assalariados não podem ser contratados por outras empresas, por já terem um vínculo. Contudo, eles não negam que sentem falta de suas funções na comarca da cidade.

 
O caso nos faz refletir qual é a responsabilidade do Tribunal de Justiça diante do não pagamento dos trabalhadores pelas empresas terceirizadoras. Lendo a Súmula nº 331 do TST, seria possível pensar em responsabilidade subsidiária do Tribunal caso fique evidenciada a conduta culposa.

Súmula nº 331 do TST

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE.

I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).

II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.Observação: (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011.

A ADC nº 16, no entanto, não tocou expressamente nesse aspecto. Veja a ementa:

EMENTA: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1°, da Lei federal n° 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1%, da Lei federal n° 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei n° 9.032, de 1995.

Essa “ressalva” acerca da conduta culposa da administração pública apareceu no julgamento do Tema 246 da repercussão geral. Embora a tese firmada tenha perdido a oportunidade de explicitar esse ponto, o acórdão proferido em sede de Embargos de Declaração resume a controvérsia, mencionando expressamente a possibilidade de responsabilizar subsidiariamente a administração pública quando ficar demonstrada a sua conduta culposa. Leia abaixo.

STF, Tema 246

Responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviço

Descrição:

Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, II; e 37, § 6º; e 97, da Constituição Federal, a constitucionalidade, ou não, do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93, que veda a responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviço.

Tese fixada:

O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93.

Ementa do acórdão proferido em sede de Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário 760.931, leading case do Tema 246 da repercussão geral:

EMENTA: EMBARGOS DECLARATÓRIOS EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TEMA 246 DA SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EMPRESAS TERCEIRIZADAS. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE, CONTRADIÇÃO OU ERRO MATERIAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS.

1. Não há contradição a ser sanada, pois a tese aprovada, no contexto da sistemática da repercussão geral, reflete a posição da maioria da Corte quanto ao tema em questão, contemplando exatamente os debates que conduziram ao acórdão embargado.

2. Não se caracteriza obscuridade, pois, conforme está cristalino no acórdão e na respectiva tese de repercussão geral, a responsabilização subsidiária do poder público não é automática, dependendo de comprovação de culpa in eligendo ou culpa in vigilando, o que decorre da inarredável obrigação da administração pública de fiscalizar os contratos administrativos firmados sob os efeitos da estrita legalidade.

3. Embargos de declaração rejeitados.

Essa discussão foi, em alguma medida, incorporada pela nova lei de licitações (Lei nº 14.133/2021). No seu artigo 121, é prevista hipótese de responsabilidade subsidiária pela administração pública quando houver culpa.

Lei nº 14.133/2021 – Lei de Licitações e Contratos Administrativos

Art. 121. Somente o contratado será responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.

§1º A inadimplência do contratado em relação aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transferirá à Administração a responsabilidade pelo seu pagamento e não poderá onerar o objeto do contrato nem restringir a regularização e o uso das obras e das edificações, inclusive perante o registro de imóveis, ressalvada a hipótese prevista no § 2º deste artigo.

§2º Exclusivamente nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, a Administração responderá solidariamente pelos encargos previdenciários e subsidiariamente pelos encargos trabalhistas se comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado.

§3º Nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, para assegurar o cumprimento de obrigações trabalhistas pelo contratado, a Administração, mediante disposição em edital ou em contrato, poderá, entre outras medidas:

I – exigir caução, fiança bancária ou contratação de seguro-garantia com cobertura para verbas rescisórias inadimplidas;

II – condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas vencidas relativas ao contrato;

III – efetuar o depósito de valores em conta vinculada;

IV – em caso de inadimplemento, efetuar diretamente o pagamento das verbas trabalhistas, que serão deduzidas do pagamento devido ao contratado;

V – estabelecer que os valores destinados a férias, a décimo terceiro salário, a ausências legais e a verbas rescisórias dos empregados do contratado que participarem da execução dos serviços contratados serão pagos pelo contratante ao contratado somente na ocorrência do fato gerador.

§ 4º Os valores depositados na conta vinculada a que se refere o inciso III do § 3º deste artigo são absolutamente impenhoráveis. § 5º O recolhimento das contribuições previdenciárias observará o disposto no art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.

No entanto, além da §2º do artigo 121 (destacado em negrito) tratar apenas de “contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra”, a lei anterior (Lei nº 8.666/1993) continua em vigor para inúmeros contratos firmados à época de sua vigência. Em outras palavras: talvez no futuro, o debate fique morno. Mas, por enquanto, ele ainda está fervendo!

Exemplo disso é a predominância do tema nas reclamações constitucionais apresentadas ao STF. Na pesquisa “Terceirização e pejotização no STF: análise das reclamações constitucionais”, realizada pela Fundação Getulio Vargas em 2023, foi constatado que 56% das reclamações constitucionais sobre terceirização dizem respeito à discussão sobre responsabilidade subsidiária da administração pública. Esse diagnóstico é reforçado por informações encontradas no painel “Corte Aberta”, em que o STF disponibiliza estatísticas sobre os casos que julga. Quando analisamos os dados sobre reclamações constitucionais classificadas como ramo “Direito do Trabalho”, percebemos que entes da administração pública (direta e indireta) são os campeões no ranking de reclamantes.

Abaixo, vamos conhecer um exemplo de decisão do STF em reclamação constitucional que afastou a responsabilidade subsidiária da administração pública.

STF, Rcl 72248 / AP – AMAPÁ

Relator(a): Min. LUIZ FUX; Julgamento: 28/10/2024; Publicação: 30/10/2024; Publicação PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 29/10/2024 PUBLIC 30/10/2024

Decisão

RECLAMAÇÃO. DIREITO DO TRABALHO. TERCEIRIZAÇÃO. RESPONSABILIZAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO PODER PÚBLICO. ALEGAÇÃO DE OFENSA À ADC 16 E AO TEMA 246 DA REPERCUSSÃO GERAL. OCORRÊNCIA. CONDENAÇÃO SEM A EXISTÊNCIA DE PROVAS DA CULPA IN VIGILANDO. PRECEDENTES. RECLAMAÇÃO QUE SE JULGA PROCEDENTE.

Decisão: Trata-se de reclamação ajuizada pelo Estado do Amapá contra decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, nos autos do Processo nº 0000121-96.2024.5.08.0209, sob a alegação de inobservância da decisão vinculante proferida pelo Plenário deste Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade 16 e da tese fixada sob o Tema 246 da sistemática da repercussão geral.

Em síntese, narra o reclamante ter sido demandado na origem por empregado de empresa terceirizada, contratada pela Administração Pública, com vistas à condenação subsidiária ao pagamento de verbas trabalhistas devidas pela empresa interposta. Relata ter sido condenado nas instâncias ordinárias ao fundamento de que o ônus da prova da existência de efetiva fiscalização do contrato compete ao Poder Público.

Sustenta que a decisão em comento afronta diretamente a tese vinculante fixada sob o Tema 246 da sistemática da repercussão geral, uma vez que, dos votos proferidos naquele julgamento depreender-se-ia ser indevida a inversão do ônus da prova. Nesse contexto, caberia ao autor da ação trabalhista comprovar a alegação de culpa in vigilando da Fazenda Pública. Alega, ademais, não haver prova inequívoca da omissão da Administração, razão pela qual a decisão reclamada ofendeu também o que decidido no julgamento da ADC 16.

Requer, por estes fundamentos, a suspensão liminar do processo de origem e, após regular trâmite, a cassação da decisão reclamada, a fim de que seja excluída a responsabilidade do reclamante no caso concreto.

Devidamente citada, a parte beneficiária da decisão reclamada apresentou contestação, alegando, em síntese, a inviabilidade da reclamação para reexaminar o conjunto fático-probatórios dos autos. Sustenta, ainda, a ausência de estrita aderência da controvérsia com os paradigmas indicados, na medida em que a decisão reclamada pontuou concretamente os elementos que caracterizaram a culpa in vigilando do Estado do Amapá (doc. 14).

Dispensa-se, no caso concreto, a manifestação da Procuradoria-Geral da República, em homenagem ao princípio da celeridade processual e com esteio no art. 52, parágrafo único, do RISTF.

É o relatório. DECIDO.

Ab initio, pontuo que a reclamação, por expressa determinação constitucional, destina-se a preservar a competência desta Suprema Corte e a garantir a autoridade de suas decisões, ex vi do artigo 102, inciso I, alínea l, além de salvaguardar a estrita observância de preceito constante em enunciado de Súmula Vinculante, nos termos do artigo 103-A, § 3º, ambos da Constituição Federal.

Nada obstante já encontrasse previsão na legislação anterior, a reclamação adquiriu especial relevo no atual Código de Processo Civil, enquanto meio assecuratório da observância da jurisprudência vinculante dos Tribunais Superiores e no afã da criação de um sistema de precedentes no processo civil brasileiro. Nesse sentido, o Código passou a prever, além das hipóteses diretamente depreendidas do texto constitucional (art. 988, I, II e III), o cabimento da reclamação para a garantia da “observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência” (artigo 988, IV).

Embora tenha sistematizado a disciplina jurídica da reclamação e ampliado em alguma medida seu âmbito de aplicação, o novo diploma processual não alterou a natureza eminentemente excepcional do instituto. Deveras, a excepcionalidade no manejo da reclamação é depreendida a todo tempo da redação do novo CPC, seja pela vedação de sua utilização como sucedâneo de ação rescisória (art. 988, §5º, I), seja pela exigência de prévio esgotamento das instâncias ordinárias, no caso de reclamação fundada na inobservância de tese fixada em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida (art. 988, §5º, II).

A propósito, a jurisprudência desta Suprema Corte fixou diversas condições para a utilização da via reclamatória, de sorte a manter a logicidade do sistema recursal previsto no CPC e evitar o desvirtuamento do objetivo precípuo do Código, de racionalização e diminuição da litigiosidade em massa pela criação do microssistema de julgamento de casos repetitivos. Afirma-se, destarte, por exemplo, (i) a inviabilidade da reclamação para o revolvimento de fatos e provas adjacentes aos processos de origem, (ii) a necessidade de existência de estrita aderência entre a decisão reclamada e o conteúdo do paradigma invocado e (iii) a necessidade de demonstração de teratologia na aplicação de tese firmada sob a sistemática da repercussão geral. Neste sentido, os seguintes precedentes da Primeira Turma da Corte:

“Agravo regimental em reclamação. Alegação de violação do entendimento firmado na ADPF nº 828/DF-MC. Reclamação que objetiva o reexame de decisão fundamentada no conjunto fático-probatório dos autos. Sucedâneo recursal. Impossibilidade. Agravo regimental não provido. 1. Por atribuição constitucional, presta-se a reclamação para preservar a competência do STF e garantir a autoridade de suas decisões (art. 102, inciso I, alínea l, da CF/88), bem como para resguardar a correta aplicação das súmulas vinculantes (art. 103-A, § 3º, da CF/88). 2. A reclamação não pode ser utilizada como sucedâneo de recurso ou de ações judiciais em geral, tampouco para reanálise de fatos e provas. Precedentes. 3. Agravo regimental não provido”. (Rcl 50.238-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe de 24/5/2022, grifei).

“DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO TRABALHISTA. AGRAVO INTERNO EM RECLAMAÇÃO. COMPETÊNCIA. CAUSA INSTAURADA ENTRE O PODER PÚBLICO E SERVIDOR. VÍNCULO CELETISTA. LEI FEDERAL Nº 11.350/2006. AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE E AGENTE DE COMBATE ÀS ENDEMIAS. ALEGADA AFRONTA À ADI 3.395. AUSÊNCIA DE ESTRITA ADERÊNCIA. 1. Agravo interno em reclamação ajuizado em face de decisão que afirmou a competência da Justiça do Trabalho, sob o fundamento de inexistir lei local inserindo os agentes comunitários de saúde no regime estatutário, na forma do art. 8º da Lei nº 11.350/2006. Alegação de violação à ADI 3.395. 2. A decisão da ADI 3.395 refere-se a causas envolvendo o Poder Público e seus servidores públicos, vinculados por relação estatutária ou de caráter jurídico-administrativo. Desse modo, não há relação de estrita aderência entre o ato reclamado e o paradigma invocado, requisito indispensável à propositura da reclamação. 3. Agravo interno a que se nega provimento”. (Rcl 54.159-AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe de 15/9/2022, grifei).

“CONSTITUCIONAL, TRABALHISTA E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. SUPOSTA AFRONTA AO TEMA 932 DA REPERCUSSÃO GERAL. AUSÊNCIA DE TERATOLOGIA. UTILIZAÇÃO DA RECLAMAÇÃO COMO SUBSTITUTIVO DE RECURSOS DE NATUREZA ORDINÁRIA OU EXTRAORDINÁRIA. AGRAVO INTERNO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O Tribunal reclamado decidiu em consonância com as diretrizes fixadas pelo Tema 932, pois assentou que em se tratando de embarcações que operam em alto mar, não pode ser considerada como imprevisível, dado o fato de que faz parte, da prática da navegação, a rotina de manter contato com a Capitania dos Portos, que desempenha a função de manter as embarcações avisadas a respeito dos fenômenos climáticos em curso. Nesse sentido, se a embarcação estava realmente equipada com instrumentos de salvamento, estes deveriam ter sido acionados, não havendo prova nos autos nesse sentido. Logo, caracterizado o risco da atividade a ensejar a responsabilização objetiva da reclamada, a esta incumbe responder pela reparação dos danos havidos. 2. Desse modo, cotejando a decisão reclamada com o paradigma de confronto apontado, e respeitado o âmbito cognitivo deste instrumental, não se constata teratologia no ato judicial que se alega afrontar o precedente deste TRIBUNAL. 3. Dessa forma, a postulação não passa de simples pedido de revisão do entendimento aplicado na origem, o que confirma a inviabilidade desta ação. Esta CORTE já teve a oportunidade de afirmar que a reclamação tem escopo bastante específico, não se prestando ao papel de simples substituto de recursos de natureza ordinária ou extraordinária (Rcl 6.880-AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Plenário, DJe de 22/2/2013). 4. Recurso de agravo a que se nega provimento”. (Rcl 54.142-AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, DJe de 23/8/2022, grifei).

Fixadas as premissas, verifico que a presente reclamação tem como fundamento a alegação de inobservância das decisões deste Supremo Tribunal Federal na ADC 16 e no RE 760.931 – Tema 246 da sistemática da repercussão geral.

Deveras, no julgamento da ADC 16, o Plenário deste Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade de dispositivo da antiga Lei de Licitações (Lei 8.666/93) que expressamente afastava a possibilidade de transferência ao Poder Público da responsabilidade pelo adimplemento de verbas trabalhistas devidas por empresa contratada a seus empregados (art. 71, §1º). Eis a ementa do acórdão:

“RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995”. (ADC 16, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 09/09/2011).

O entendimento então adotado restou reafirmado no julgamento de mérito do RE 760.931, de cujo acórdão fui redator e em que se fixou a seguinte tese: Tema-RG 246: “O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93”. (grifei)

É de salientar, ademais, que a reclamação, enquanto instrumento processual de alta relevância para a tutela da vinculatividade das decisões do Supremo Tribunal Federal, exerce evidente função interpretativa ou integrativa no sistema. Isto porque a verificação da alegação de desrespeito a um precedente demanda necessariamente a interpretação e a declaração do conteúdo de sua ratio decidendi e de seu dispositivo, de modo que, não raras vezes, o julgamento da reclamação leva o tribunal a verdadeiramente aclarar aspectos importantes do precedente que eventualmente tenham permanecido não tão acessíveis (CARVALHO FILHO, José dos Santos; ARCHANJO, Marco Alexandre de Oliveira. Reclamação como Ferramenta de Superação de Precedente Formado em Controle Concentrado de Constitucionalidade, in Revista da Advocacia Pública Federal, v.3, n.1, 2019, p. 323). É dizer: por meio do julgamento da reclamação, o tribunal que proferiu a decisão de natureza vinculante alegadamente desrespeitada realiza verdadeira interpretação autêntica do paradigma, o que constitui atividade de grande valia para a orientação geral dos operadores do sistema jurídico, que devem observar os posicionamentos emanados das cortes superiores.

Forte nesta característica da via reclamatória, é de se salientar que ambas as Turmas deste Supremo Tribunal Federal, no exercício de uma interpretação integrativa do acórdão proferido no RE 760.931, declararam, em diversas reclamações, que seria do trabalhador o ônus probatório da culpa in vigilando da Administração para a configuração da responsabilidade subsidiária. Nesse sentido, os seguintes julgados:

“AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. CONSTITUCIONAL. TRABALHISTA. TERCEIRIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DECISÃO RECLAMADA QUE A ADMITE A EXISTÊNCIA DE PRESUNÇÃO DE CULPA IN VIGILANDO. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO QUE DECIDIDO NO JULGAMENTO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 760.931 – TEMA 246 DA REPERCUSSÃO GERAL. OCORRÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO AUTOMÁTICA DA ADMINISTRAÇÃO PELO INADIMPLEMENTO DE OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS POR PARTE DA EMPRESA CONTRATADA. NECESSIDADE DE EXISTÊNCIA DE PROVA TAXATIVA. ÔNUS DE PROVA QUE NÃO RECAI SOBRE A ADMINISTRAÇÃO. ARTIGO 71, PARÁGRAFO 1º, DA LEI 8.666/1993. PRECEDENTES. AGRAVO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. 1. No julgamento do Recurso Extraordinário 760.931, Tema 246 da Repercussão Geral, que interpretou o julgamento desta Corte na ADC 16, o STF assentou tese segundo a qual “o inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93″. 2. Consequentemente, a responsabilização subsidiária da Administração Pública por débitos de empresa contratada para com seus empregados, embora possível, é excepcional e condicionada à existência de prova taxativa da existência de culpa in vigilando. 3. A leitura do acórdão paradigma revela que os votos que compuseram a corrente majoritária no julgamento do RE 760.931 (Tema 246 da sistemática da repercussão geral) assentaram ser incompatível com reconhecimento da constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei 8.666/1993 o entendimento de que a culpa do ente administrativo seria presumida e, consectariamente, afastaram a possibilidade de inversão do ônus probatório na hipótese. 4. In casu, a decisão reclamada atribuiu à agravante a responsabilidade subsidiária pelos encargos trabalhistas decorrentes da contratação de serviços por intermédio de empresa terceirizada conquanto inexistente prova taxativa de culpa in vigilando, fundando-se exclusivamente na inversão do ônus probatório. Verifica-se, destarte, o descompasso entre a decisão reclamada e o paradigma invocado, haja vista ser insuficiente para a responsabilização a mera afirmação genérica de culpa in vigilando ou a presunção de culpa embasada exclusivamente na ausência de prova da fiscalização do contrato de terceirização. 5. Agravo a que se dá provimento, a fim de julgar procedente a reclamação, determinando a cassação da decisão reclamada na parte em que atribui responsabilidade subsidiária ao ente administrativo”. (Rcl 40.137 AgR, Primeira Turma, Redator p/ o acórdão Min. Luiz Fux, DJe 12/08/2020).

“Agravo regimental em reclamação. 2. Constitucional. Direito do Trabalho. Terceirização. Responsabilidade subsidiária da Administração Pública. 3. Violação ao decidido na ADC 16 e ao teor da Súmula Vinculante 10. Configuração. 4. Impossibilidade de responsabilização automática da Administração Pública pelo inadimplemento das obrigações trabalhistas. 5. Inversão do ônus da prova em desfavor da Administração Pública. Impossibilidade. 6. Inexistência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 7. Negado provimento ao agravo regimental”. (Rcl 44.628 AgR, Segunda Turma, Relator Min. Gilmar Mendes, DJe 18/05/2021).

Pois bem. O cotejo analítico entre os paradigmas e a decisão ora reclamada revela ter havido, in casu, a inobservância do entendimento vinculante deste Supremo Tribunal Federal, haja vista que a responsabilização subsidiária do ente público reclamante se deu independentemente da existência de provas concretas de culpa in vigilando, tendo o decisum afastado a validade de todos os mecanismos de fiscalização apresentados e efetuados pelo reclamante. Neste cenário, é de rigor o julgamento de procedência da reclamação, a fim de que se restabeleça a autoridade da Corte. Veja-se, a propósito, o quanto decidido pelo Tribunal reclamado (doc. 4, p. 8/16 – grifei):

“O conceito de terceirização de serviços, que outrora foi restrito, possui atualmente sua abrangência para toda e qualquer atividade da empresa, seja este meio ou fim, porém, permanece, ainda, o dever de fiscalização da empresa tomadora dos serviços em relação ao cumprimento, pela empresa prestadora dos serviços, de suas obrigações trabalhistas contraídas com os trabalhadores que prestam serviços em favor daquela.

Restou incontroverso nos autos que o autor, contratado pela primeira reclamada, PRIMORDIAL GESTAO MÉDICO HOSPITALAR LTDA, a qual foi contratada pelo segundo reclamado, INSTITUTO BRASILEIRO DE GESTAO HOSPITALAR – IBGH, trabalhou em favor do Estado do Amapá.

Nota-se que o segundo reclamado contratou a primeira reclamada para o fornecimento de profissionais médicos e equipe multidisciplinar para atuação no Centro de Atendimento Clínico Zona Sul de Macapá/AP (ID db0b82d).

Notável que o conceito de terceirização, que outrora já foi restrito, atualmente possui sua abrangência alargada para abarcar toda e qualquer atividade que seja benéfica para a empresa contratante. Assim, amplia-se o valor da livre iniciativa, mas com o resguardo da dignidade dos obreiros através do dever de fiscalização e da possibilidade de responsabilização subsidiária.

A questão central aqui debatida é de que, dentro de seu poder de gestão, o INSTITUTO BRASILEIRO DE GESTAO HOSPITALAR – IBGH considerou adequado e benéfico para seus objetivos a contratação da primeira reclamada e, a partir desse momento, adquiriu o dever de fiscalização com relação ao cumprimento de suas obrigações trabalhistas.

Ora, se existe interesse, benefício e prestação de serviços para a empresa contratante, negligente seria simplesmente isentá-la da responsabilidade, mesmo que subsidiária, prevista na Súmula 331 do C. TST. […]

Dessa maneira, evidente que os deveres trabalhistas da primeira reclamada com seus obreiros foram objeto do contrato e, por consequência, deveriam também ter sido objeto de fiscalização e vigilância pela contratante, o que não se deu da maneira correta no presente caso, diante das diversas violações verificadas. […] Com relação ao terceiro reclamado, Estado do Amapá, resta inconteste nos autos a existência de contrato de gestão firmado pelo Estado do Amapá com o reclamado INSTITUTO BRASILEIRO DE GESTÃO HOSPITALAR-IBGH para o gerenciamento e operacionalização da Unidade de Pronto Atendimento da Zona Sul (ID 1f438d5), e que este SEGUNDO reclamado realizou com a empresa PRIMORDIAL GESTÃO MÉDICO HOSPITALAR LTDA (primeira reclamada) contratação emergencial para o fornecimento de médicos e equipe multidisciplinar à Unidade Estadual da Zona Sul de Macapá/AP. Ainda que o terceiro reclamado não tenha mantido relação jurídica direta com a empregadora do reclamante (primeira reclamada), infere-se que sua contratação derivou do contrato de gestão celebrado com o INSTITUTO BRASILEIRO DE GESTÃO HOSPITALAR-IBGH, estando devidamente caracterizada a quarteirização de parte da gestão da referida unidade de saúde com o fornecimento de mão de obra pelos trabalhadores da primeira reclamada. Ou seja, restou demonstrado nos autos que a reclamante laborou em prol do ESTADO DO AMAPÁ, de modo que o referido ente, ao se beneficiar dos serviços prestados pela parte autora, deve ser reputado como tomador de serviços.

Assim, diante da realidade que se apresenta, é assentada a presença de uma típica terceirização e, dessa forma, os fatos devem ser analisados à luz da Súmula 331 do C. Tribunal Superior do Trabalho TST, uma vez que, ainda que realizado contrato administrativo (contrato de gestão) com entidade sem fins lucrativos, não há como se excluir a responsabilidade do ente público em face dos trabalhadores, indiretamente contratados para lhe prestar serviços. [… Sem perder de vista essas premissas, verifica-se que o terceiro reclamado (ESTADO DO AMAPÁ) se exime de qualquer obrigação quanto à fiscalização das obrigações trabalhistas, deixando de juntar aos autos documentos que efetivamente demonstrem a efetiva fiscalização quanto às regularidades previdenciárias e trabalhistas dos trabalhadores que indiretamente lhe prestavam serviços, decorrentes da quarteirização caracterizada nos autos. Na verdade, o reclamado em questão somente juntou com sua peça de defesa, carta de preposição. Uma vez que foram deferidas diversas verbas de natureza trabalhista, caberia ao reclamado, ESTADO DO AMAPÁ, comprovar a fiscalização do contrato de gestão pactuado. Contudo, não trouxe aos autos qualquer documento que corroborasse para efetiva fiscalização das condições laborais dos trabalhadores que indiretamente lhe prestavam serviços, fato este que sequer foi feito pelo segundo reclamado (INSTITUTO BRASILEIRO DE GESTÃO HOSPITALAR-IBGH). Portanto, restou caracterizada a negligência por parte do ESTADO DO AMAPÁ quanto à fiscalização do contrato de gestão com o segundo reclamado. Ressalta-se que a existência de contrato de gestão não exonera o Estado do Amapá do cumprimento de seus deveres, especialmente quanto à fiscalização do contrato firmado com o terceiro reclamado, que não restou provada nos autos.” (Grifei).

Neste cenário, tendo o julgado presumido a culpa da Administração Pública, é de rigor o julgamento de procedência da reclamação, a fim de que se restabeleça a autoridade da Corte. Nesse sentido, são os precedentes de ambas as Turmas:

“AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DAS DECISÕES PROFERIDAS NA AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE N. 16 E NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 760.931- RG, TEMA 246. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE CULPA DA ENTIDADE ADMINISTRATIVA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO”. (Rcl 58.874 AgR, Primeira Turma, Rel.ª Min.ª Cármen Lúcia, DJe 23/05/2023). “SEGUNDO AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ADC16/DF. RE Nº 760.931-RG/DF; TEMA RG Nº 246. INOBSERVÂNCIA. 1. A Justiça do Trabalho imputou responsabilidade subsidiária automática à Administração Pública na tomada de serviços terceirizados, sob o fundamento de falha na fiscalização do contrato (culpa in vigilando), revelando inobservância ao que decidido na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16/DF e, mais recentemente, no Tema nº 246 do ementário da Repercussão Geral. 2. Não há apontamento claro e objetivo sobre reiterada e sistemática negligência, podendo a motivação apresentada, genérica, servir para qualquer processo judicial em que tenha ocorrido inadimplemento de obrigações trabalhistas. 3. Agravo regimental provido para, dando procedência à Reclamação, cassar o acórdão reclamado, na parte em que atribui responsabilidade subsidiária à parte agravante”. (Rcl 56.254 AgR-segundo, Segunda Turma, Redator p/ o acórdão Min. André Mendonça, DJe 14/09/2023).

Ex positis, JULGO PROCEDENTE a reclamação, para reformar o acórdão proferido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, nos autos do Processo nº 0000121-96.2024.5.08.0209, afastando a responsabilidade subsidiária do autor. Publique-se. Brasília, 28 de outubro de 2024.

Contudo, ao analisar a decisão de origem reclamada, verificamos que a Justiça do Trabalho entendeu haver culpa da administração pública, por estarem presentes a culpa in eligendo e a culpa in vigilando, conforme trecho extraído da ementa. Leia abaixo.

TRT8, Proc. n.º 0000121-96.2024.5.08.0209 (ROT)

[…]

II. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO SEGUNDO RECLAMADO. RECONHECIMENTO. IDONEIDADE FINANCEIRA. Verificando-se que o segundo reclamado, ao contratar empresa para lhe executar serviço, escolhe aquela que acaba se furtando da aplicação da legislação trabalhista, deve responder por esses débitos, presentes a culpa da recorrente in eligendo e in vigilando. Recurso provido.

IV. CONTRATO DE GESTÃO. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO ENTE PÚBLICO. SÚMULA 331 DO C. TST. A existência de contrato de gestão firmado pelo ente público com o segundo reclamado não o exime da sua responsabilidade, aplicando-se ao caso concreto a interpretação da Súmula 331 do C. TST. Assim, nos termos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal -STF, nos autos da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade- ADC nº 16, com repercussão geral (Recurso Extraordinário RE-RG 760.931), é vedada a responsabilização subsidiária automática da administração pública em relação ao inadimplemento das obrigações trabalhistas contraídas pela empresa terceirizada em relação a seus empregados, salvo se existir nos autos prova inequívoca da conduta, omissiva ou comissiva, da Administração Pública na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas do prestador de serviços em relação a esses mesmos empregados, sendo esta exceção presente no caso concreto. Apelo provido.

Esse caso, objeto da reclamação constitucional, nos faz retomar o questionamento feito inicialmente: se a empresa terceirizadora não pagou os trabalhadores terceirizados (e não pretende pagar sob a alegação, por exemplo, de falta de recursos) e a responsabilidade subsidiária da administração pública não for reconhecida: quem pagará a conta pelos encargos trabalhistas?

3. DEBATENDO

  1. O que a administração pública pode terceirizar? O que ela geralmente terceiriza? O que ela não pode terceirizar?
  2. Por que algumas atividades podem ser terceirizadas na administração pública e outras não podem?
  3. Quais são as principais motivações para a administração pública terceirizar parte de suas atividades? Quais são as vantagens e as desvantagens?
  4. Como vimos, no setor privado, a empresa tomadora é responsável subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas nas terceirizações. No entanto, isso não ocorre de forma automática nas terceirizações firmadas pela administração pública. O que pode justificar essa diferença?
  5. Se a responsabilidade subsidiária fosse automaticamente transferida para a administração pública, estaríamos abrindo espaço para empresas mal-intencionadas se aproveitarem e darem “calotes” na administração pública?
  6. A partir da notícia sobre o “calote” no TJ-SP: é possível que o tribunal regularize o pagamento desses trabalhadores? Há autorização legal ou algum óbice para essa regularização imediata?
  7. Qual é a finalidade da reclamação constitucional? Em que hipóteses é cabível?
  8. O que se considera como culpa in eligendo e culpa in vigilando?
  9. Quais providências podem (ou devem) ser tomadas de maneira preventiva pela administração pública para não incorrer em condutas culposas?
  10. O STF tem condições de avaliar culpa da administração pública no caso concreto quando julga reclamações constitucionais?
  11. As decisões da Justiça do Trabalho sobre questões fáticas (do caso concreto) estão em harmonia com os precedentes firmados pelo STF sobre o tema?
  12. O Estado é multifacetado:  é o Estado contratante-tomador de serviços nas terceirizações, é o Estado-juiz que firma precedentes, é o Estado-reclamante em reclamações constitucionais, é o Estado-legislador, é o Estado (supostamente) responsável pela garantia de direitos sociais. Seria esse mesmo Estado um ator que contribui para a violação de direitos trabalhistas?
  13. Que iniciativa seria recomendável ou que instrumento poderia ser utilizado para a administração pública se resguardar de terceirizadoras “caloteiras”, mas, ao mesmo tempo, não deixar os trabalhadores “a ver navios”?

4. APROFUNDANDO

ARAÚJO NETO, Geraldo Furtado de. Responsabilidade do Estado em face da contratação de terceirizados: distinção jurídica por meio do controle de convencionalidade. 2024. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2024.

ARTUR, Karen; GRILLO, Sayonara. Terceirização e arenas de reconfiguração do Direito do Trabalho no Brasil. REI-Revista Estudos Institucionais, v. 6, n. 3, p. 1184-1213, 2020. Disponível em: https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/542

COSTA, Andrea Dourado; GOMES, Ana Virgínia Moreira. Terceirização no serviço público e a precarização dos direitos trabalhistas. Rvista da AGU, [S. l.], v. 15, n. 4, 2016. DOI: 10.25109/2525-328X.v.15.n.4.2016.828. Disponível em: https://revistaagu.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/828 

COSTA DE FARIA, J. et al. Burocracia e Identidade Profissional de Terceirizados.Journal Public Administration & Social Management, [s. l.], v. 15, n. 3, p. 1–17, 2023. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/apgs/article/view/13141

GUIMARÃES, Duanne Emanuel Leal; SOARES, Cristiano Sausen; GONZAGA, Rosimeire Pimentel. Reflexos dos mecanismos de gestão de riscos da administração pública na gestão organizacional de terceirizadas e implicações na relação contratual. Revista Gestão Organizacional, v. 16, n. 1, p. 228-247, 2023. Disponível em: https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rgo/article/view/6784

MARTINS, Ricardo Marcondes. Terceirização na administração pública: comentários sobre o RE 760.931. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura| RDAI, v. 1, n. 1, p. 311-333, 2017. Disponível em: https://rdai.com.br/index.php/rdai/article/view/121

MAUÉS, Antonio Moreira. O efeito vinculante na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: análise das reclamações constitucionais n. 11.000 a 13.000. Revista Direito GV, v. 12, n. 2, p. 441-460, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdgv/a/WhYTbntR4qksNtTXL9fpCJb/?lang=pt

OLIVEIRA, Daltro Alberto Jaña Marques de. Terceirização no serviço público e a responsabilidade da Administração: a ADC 16 e os novos rumos da Súmula 331 do TST. Revista Jurídica da Presidência, v. 14, n. 104, p. 757-781, 2013. Disponível em: https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/107/99

PASQUALETO, Olívia de Quintana Figueiredo; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Direito do trabalho, precedentes e autoridades do STF: um estudo de caso a partir do Tema 725. REI-Revista Estudos Institucionais, v. 10, n. 2, p. 375-402, 2024. Disponível em: https://estudosinstitucionais.com/REI/article/view/830

PASQUALETO, Olívia de Quintana Figueiredo; BARBOSA, Ana Laura Pereira; FIOROTTO, Laura Arruda. Terceirização e pejotização no STF: análise das reclamações constitucionais. São Paulo: Fundação Getulio Vargas, 2023. Disponível em: https://hdl.handle.net/10438/34507

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