Roteiro de Aula

Cidades inteligentes: fomento público à inovação tecnológica?

Mecanismos de incentivo da Lei da Inovação.

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1. CONHECENDO O BÁSICO

O objetivo desta aula é analisar como o fomento público, mecanismo de intervenção do Estado na economia, pode colaborar na construção de cidades inteligentes, especialmente à luz da Constituição Federal e da Lei Federal nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, conhecida como Lei da Inovação.

Afirmam alguns autores que a concepção de cidades inteligentes surgiu na década de 1980, na esteira do movimento do urbanismo contemporâneo smart growth, focado no desenvolvimento eficiente das diversas áreas de infraestrutura das cidades, mas é no começo do século XXI que o conceito ganha força, capitaneado pelas grandes empresas desenvolvedoras de tecnologia, que enxergaram nos municípios um bom mercado para alocar toda tecnologia que estava sendo criada. A consolidação do termo ocorre em 2011, com o registro do termo smarter cities pela IBM, e, desde então, o tema vem sendo estudado com profundidade pelas principais organizações internacionais e eventos anuais ocorrem no mundo todo, conferindo premiações e divulgando rankings das cidades mais inteligentes.

Mas o que são cidades inteligentes, ou smart cities, como são mundialmente conhecidas? Primeiramente, é importante dizer que a concepção de cidades inteligentes sempre teve diversos focos, o que se atribui à época e ao local em que determinado conceito é formulado e o que se entende por inteligente até então.

De maneira geral, em meados dos anos 2000, o foco principal das smart cities eram os novos elementos tecnológicos, notadamente porque o conceito era comandado pelas grandes desenvolvedoras de tecnologia – daí as concepções de cidades altamente tecnológicas e futurísticas que perduram até hoje. Todavia, com o passar dos anos e o olhar mais apurado sobre os desafios da inovação tecnológica na vida das pessoas, especialmente no que atine à inclusão digital, o foco das cidades inteligentes se altera e passa a ser os cidadãos, especialmente na solução de problemas vivenciados pelas pessoas nas cidades, com o intuito de fornecer maior bem-estar e qualidade de vida a todos.

Assim são formulados conceitos diversos de cidades inteligentes no mundo todo, sempre vinculados, de alguma forma, ao que o cidadão realmente precisa em termos de soluções para os efetivos problemas das cidades, por meio do uso das novas tecnologias e sem descuidar da inclusão digital. Pautas como sustentabilidade, economia circular e digitalização podem também estar relacionadas às concepções de smart city atuais:

Organização internacionalConceito de smart city
ONU“Cidades inteligentes utilizam tecnologia e inovação para melhorar o ambiente urbano – conduzindo a uma melhor qualidade de vida, maior prosperidade, sustentabilidade, engajamento e capacitação dos cidadãos”, sendo a digitalização “o principal motor na melhoria de vida e meios de subsistência”.
OCDE“Iniciativas ou abordagens que alavancam a digitalização para impulsionar o bem-estar de todas as pessoas, entregando ambientes urbanos mais eficientes, sustentáveis e inclusivos como parte de um processo de colaboração de  diversos interessados”.
UE“Uma cidade inteligente é um local onde as redes e serviços tradicionais se tornam mais eficientes com a utilização de soluções digitais em benefício dos seus habitantes e empresas.
Uma cidade inteligente vai além da utilização de tecnologias digitais para uma melhor utilização dos recursos e menos emissões. Significa redes de transporte urbano mais inteligentes, instalações melhoradas de abastecimento de água e de eliminação de resíduos e formas mais eficientes de iluminar e aquecer edifícios. Significa também uma administração municipal mais interativa e reativa, espaços públicos mais seguros e uma resposta às necessidades da terceira idade”.
Banco Mundial“As cidades inteligentes aproveitam os dados e a tecnologia para integrar a infraestrutura urbana e a prestação de serviços e fornecer soluções para alcançar uma abordagem centrada no cidadão. As tecnologias digitais são facilitadoras, ajudando a melhorar o planejamento e a gestão urbana”.
BID“Uma Cidade Inteligente é aquela que coloca as pessoas no centro do desenvolvimento, incorpora Tecnologias de Informação e Comunicação na gestão urbana e utiliza estes elementos como ferramentas para estimular a concepção de um governo eficaz que inclua o planejamento colaborativo e a participação dos cidadãos. Ao promover o desenvolvimento integrado e sustentável, as Cidades Inteligentes tornam-se mais inovadoras, competitivas, atrativas e resilientes, melhorando assim vidas”. 

No Brasil, o tema das cidades inteligentes vem crescendo e encontrando iniciativas esparsas pelos municípios de praticamente todas as regiões do país. O que se denota em termos de unificação de diretrizes e conceito, advinda da esfera governamental, encontra-se na Carta Brasileira para Cidades Inteligentes, lançada em 2021 pelo Executivo federal e na qual se apresentam princípios e recomendações de ação a todos os entes da Federação, ao terceiro setor e à iniciativa privada.

Um dos principais objetivos da Carta é colocar a transformação digital dentro do ambiente urbano e ampliar o que se entende por cidade inteligente, com a finalidade de apoiar a promoção de padrões de desenvolvimento urbano sustentável:

Concepção Federal de Smart City
Carta Brasileira para Cidades Inteligentes “Cidades comprometidas com o desenvolvimento urbano e a transformação digital sustentáveis, em seus aspectos econômico, ambiental e sociocultural que atuam de forma planejada, inovadora, inclusiva e em rede, promovem o letramento digital, a governança e a gestão colaborativas e utilizam tecnologias para solucionar problemas concretos, criar oportunidades, oferecer serviços com eficiência, reduzir desigualdades, aumentar a resiliência e melhorar a qualidade de vida de todas as pessoas, garantindo o uso seguro e responsável de dados e das tecnologias da informação e comunicação”.

A partir daí, pode-se levantar a não rara questão: tendo o Brasil problemas tão doloridos e históricos relacionados às áreas de saúde e educação, bem como números ainda vergonhosos relacionados a saneamento básico, o tema de cidades inteligentes – ou smart cities – não seria sofisticado demais para nós? Não haveria áreas e temas mais importantes para os quais os governos deveriam gastar atenção e dinheiro? Aqui é precioso contextualizar o que se passa não só no Brasil, mas no mundo hoje.

Atualmente, a humanidade vive uma revolução tecnológica sem precedentes, cunhada por Klaus Schwab como a quarta revolução industrial. Esta revolução é caracterizada por uma internet móvel e onipresente, pela inteligência artificial e por sensores menores, mais baratos e poderosos, tornando possível a plena interação entre os domínios físico, digital e biológico. Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente em áreas que vão desde o sequenciamento genético até a nanotecnologia, das energias renováveis à computação quântica, alterando radicalmente os modos de se fazer as coisas. Além da velocidade e da amplitude, a atual revolução também é única por conta da crescente harmonização e integração de muitas descobertas e disciplinas diferentes, tornando tangível a interdependência entre tecnologias distintas. 

O cenário descrito cria um problema muito mais amplo aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, que é o de se abrir ainda mais o abismo que os separa dos países desenvolvidos e de economias aprimoradas, que já lidam muito bem com as novas tecnologias. Por outro lado, o contexto relatado também pode ser uma janela de oportunidade para a sofisticação de bens e serviços e maior complexidade da base econômico-digital, o que precisa ser bem regulado pelos governos para que tal movimento seja internalizado adequadamente, de modo democrático e inclusivo.

Eis o contexto, desafio e pertinência de se pensar, sob o viés do Direito Administrativo e Econômico, na implementação de cidades inteligentes, aqui traduzidas como uma política pública que envolve a criação e a recepção de novas tecnologias pelas cidades, conectando-as, em um segundo momento, à infraestrutura social e econômica e à prestação de serviços públicos e de interesse público. Isso envolve, como premissa, o fomento à inovação tecnológica.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Uma vez entendida a cidade inteligente como uma política pública que visa introduzir os elementos tecnológicos na funcionalidade das cidades, evidenciam-se os desafios a serem enfrentados pelo Estado no planejamento econômico de cidades brasileiras que optem por se tornar inteligentes, uma vez que a definição de diretrizes e metas e a determinação dos meios de alcançá-las demanda um olhar diferenciado das estratégias de intervenção estatal que serão lançadas para que a inovação tecnológica adentre na municipalidade e auxilie no alcance das finalidades públicas desejadas, dentro de determinado período.

Por inovação tecnológica entende-se a concepção de novos produtos ou processo de fabricação mediante a agregação de novas funcionalidades ou características que implique efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando maior competitividade no mercado. Essa premissa importa em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento porque encoraja a soberania tecnológica, a partir da qual se permite maior sofisticação da cadeia econômica e prosperidade de um país.

No plano das intervenções, especificamente na sua forma promocional, é necessário considerar o cenário de restrição orçamentária enfrentado por diversos entes municipais, cada vez mais demandados para a solução de problemas antigos, como transporte e segurança pública, e novos e específicos, como mobilidade, catástrofes climáticas e intensa urbanização, o que parece limitar, ao menos o suficiente, investimentos públicos no desenvolvimento de novas tecnologias.

Distorções no orçamento municipal

Postos nos tribunais que fiscalizam as contas dos EstEstudo confirma engessamento orçamentário dos municípios, incapazes de investir em infraestrutura para lidar com aumento da população urbana. Passa da hora de rever essa distorçãoados precisam ser aprovados pelas Assembleias Legislativas e são vitalícios, garantindo remuneração que pode superar R$ 35 mil

Estadão, 20 de setembro de 2023

Notas & Informações

           Um levantamento feito pelo Observatório de Informações Municipais (OIM), publicado pelo jornal Valor há poucos dias, mostra que, nos últimos 50 anos, os investimentos das prefeituras em serviços urbanos e construção e manutenção de infraestrutura despencaram ao mesmo tempo que aumentaram substancialmente os gastos com saúde e educação.

Segundo o OIM, as despesas dos municípios com serviços urbanos, entre 1972 e 2022, caíram de 27,41% das despesas totais para 9,89%. Por outro lado, os gastos com saúde saltaram de 5,67% para 25,49% no mesmo período, em média. Já na área de educação, as despesas praticamente dobraram, saltando de 14,82% para 26,76%.

Ou seja, os recursos dos municípios, já escassos, são ainda mais comprimidos por obrigações constitucionais que nem sempre dialogam com a realidade e as necessidades de cada cidade. Como bem lembrou um especialista em urbanismo citado pelo Valor, as verbas para a saúde serão sempre insuficientes se não houver investimentos, por exemplo, em saneamento básico.

A questão de fundo é que a Constituição de 1988 é municipalista. Sob os auspícios da ordem liberal democrática restaurada havia pouco tempo, a Assembleia Constituinte entendeu ser o caso de conferir aos municípios maior protagonismo no federalismo brasileiro. E isso se traduziu, basicamente, num novo modelo de distribuição dos recursos advindos da arrecadação e, sobretudo, numa redefinição de responsabilidades pela concepção e implementação de políticas públicas.

No papel, tudo parecia perfeito. Afinal, como dizia o ex-governador de São Paulo André Franco Montoro, um dos mais notáveis municipalistas brasileiros, “ninguém vive na União ou no Estado, as pessoas vivem no município”. Porém, transcorridos quase 35 anos de vigência da “Constituição Cidadã”, e a despeito das boas intenções dos constituintes originários, aquele arranjo constitucional que alçou os municípios a um outro patamar de autonomia na organização política da República produziu uma anomalia que, em larga medida, tem afetado justamente aqueles que haveriam de ser os grandes beneficiários do novo pacto federativo: os próprios munícipes.

Ao aumento substancial das atribuições dos municípios – e, portanto, de sua parcela de contribuição para o bem-estar geral dos cidadãos – não correspondeu um incremento de receitas à altura dessas novas responsabilidades. Para piorar o quadro, a descentralização política consagrada pela Constituição de 1988 foi regulamentada “de maneira pouco organizada” desde a promulgação da Lei Maior, como bem notaram os pesquisadores Miguel Lago e Francisco Gaetani em A construção de um Estado para o Século XXI (Ed. Cobogó, 2022). Isso gerou uma espécie de limbo político-administrativo que não raro atrapalha, quando não impede, a formulação e a execução de políticas públicas aptas a melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Ao fim e ao cabo, não é outra a principal missão de qualquer governo, nas três esferas da administração.

Menos do que propriamente conflitos de competência, às vezes a mera dúvida sobre qual ente federativo é responsável por determinada prestação de serviço público já basta para que os cidadãos simplesmente não tenham acesso ao serviço ou este seja prestado com qualidade aquém da necessária – e sem que haja um responsável claramente identificável a quem recorrer.

A um primeiro olhar, parece paradoxal a ideia de que investir mais em áreas tão vitais, literalmente, para os cidadãos, como saúde e educação, possa ser algo ruim. Contudo, o engessamento dos orçamentos municipais, somado à confusão criada por aquele limbo político-administrativo, ajuda a entender por que a grande maioria dos munícipes nem é bem atendida por serviços de saúde e educação nem vive em cidades bem organizadas do ponto de vista urbanístico. Passa da hora de um honesto debate nacional sobre essas distorções, não para rever postulados da Lei Maior, mas, antes, para fazê-los valer em sua plenitude.

Fomento Público

A doutrina nacional tem guardado certo consenso no que atine ao conceito de fomento público, buscando defini-lo por seu viés estrutural: um mecanismo de intervenção estatal na economia, por meio do incentivo, que instiga os particulares, eles próprios, a exercerem determinada atividade econômica para a qual o Estado vislumbra certo interesse público; nesse contexto, o agente exerce a atividade não por obrigação ou coação imediata, mas porque, uma vez incentivado, assim escolhe. Diz-se imediata pois, uma vez aceito o convite estatal, a situação muda: o particular compromete-se a realizar a atividade e a Administração deve fiscalizá-lo no cumprimento das condições fixadas — daí a posterior incidência do poder coativo, inclusive com a possível imposição de multas e devolução de valores que tenham sido repassados ao particular como incentivo (no caso de fomento de natureza financeira).

É interessante ressaltar o viés estrutural utilizado pela doutrina para definir o fomento público, eis que, de fato, considerar unicamente a sua finalidade (desenvolvimento de atividade econômica tida de interesse público pelo Estado) poderia encontrar ruídos quando consideradas outras funções administrativas estatais, como a polícia administrativa e o serviço público, que também poderiam ter o mesmo propósito.

Exemplo trazido pela doutrina era a chamada cota de tela, hoje não mais vigente, por meio da qual se impunha obrigação, passível de sanção, às empresas exibidoras de incluir em sua programação obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem, cuja finalidade era a promoção cultural, cenário em que se lançou mão do poder de polícia estatal para o desenvolvimento de atividade econômica tida de interesse público (mesma finalidade do fomento). Outro exemplo são as políticas de adote uma praça, em que o próprio meio de ação do fomento – o incentivo – é utilizado para encorajar uma ação da iniciativa privada, mas quase sempre desacompanhada de compensação. Daí a pertinência de se pensar na estrutura do fomento para conceituá-lo.

É dizer: no fomento público, o Estado não atua diretamente na economia e nem se utiliza de meios coercitivos imediatos, mas lança mecanismos de estímulos e desestímulos (financeiros ou não) para incentivar a realização de uma conduta econômica desejada, gerando, em contrapartida, um benefício ao agente e a satisfação de uma finalidade pública.

Tradicionalmente, o estudo do fomento público indica a divisão dos meios de implementação do instrumento em honoríficos, econômicos e jurídicos; José Vicente Mendonça menciona ainda os meios psicológicos, ao citar a classificação adotada pelo jurista argentino José Roberto Dromi. 

Os meios honoríficos se relacionam aos prêmios, às condecorações civis e militares e às titulações acadêmicas, desde que previamente condicionadas ao exercício da atividade que se pretende fomentar. Os meios econômicos ocorrem com o aporte imediato de recursos, como disponibilização de bens públicos, isenções fiscais, linhas privilegiadas de crédito e subvenção econômica. Já os meios jurídicos materializam-se com a atribuição de uma posição legal diferenciada ao agente fomentado, sem a entrega de valores ou a realização de operações financeiras, como imposição e contratação de conteúdo local e cessão de servidores ou de bens públicos. Por fim, os meios psicológicos consistem em propagandas oficiais a favor de determinada prática.  Contudo, vale destacar a duvidosa utilidade da classificação ora exposta, uma vez que os instrumentos de incentivo a serem manejados pelo Estado para consolidar o fomento público admitem tipos, modulações e combinações variadas, a depender dos objetivos visados e do setor no qual se interfere. Assim compreendem autores como José Vicente Mendonça, Floriano de Azevedo Marques Neto e Diogo de Figueiredo Moreira Neto.

Constituição Federal e Inovação Tecnológica

A Constituição Federal confere especial atenção ao tema da inovação tecnológica nos seus art. 218 a 219-B, que tratam da promoção e incentivo ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

TÍTULO VIII

DA ORDEM SOCIAL

CAPÍTULO IV

DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO

Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação. 

§ 1º A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação.

§ 2º A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional.

§ 3º O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa, tecnologia e inovação, inclusive por meio do apoio às atividades de extensão tecnológica, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho.

§ 4º A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho.

§ 5º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica.

§ 6º O Estado, na execução das atividades previstas no caput, estimulará a articulação entre entes, tanto públicos quanto privados, nas diversas esferas de governo.

§ 7º O Estado promoverá e incentivará a atuação no exterior das instituições públicas de ciência, tecnologia e inovação, com vistas à execução das atividades previstas no caput.

Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.

Parágrafo único. O Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia.

Art. 219-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades públicos e com entidades privadas, inclusive para o compartilhamento de recursos humanos especializados e capacidade instalada, para a execução de projetos de pesquisa, de desenvolvimento científico e tecnológico e de inovação, mediante contrapartida financeira ou não financeira assumida pelo ente beneficiário, na forma da lei.

Art. 219-B. O Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) será organizado em regime de colaboração entre entes, tanto públicos quanto privados, com vistas a promover o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação.

§ 1º Lei federal disporá sobre as normas gerais do SNCTI.

§ 2º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios legislarão concorrentemente sobre suas peculiaridades.

Aqui, é importante diferenciar a pesquisa científica, que é um ato eminentemente acadêmico, e a pesquisa tecnológica, que é produzida no meio econômico, voltada à elevação da competitividade e ao aumento do market share do agente que a promove. Daí porque, quanto à pesquisa tecnológica, cabe ao Estado apenas fomentar, e não a tornar prioritária à iniciativa privada, em consonância com um dos fundamentos constitucionais da ordem econômica, que é a livre iniciativa.

Verifica-se do texto constitucional que há um nítido comando no sentido de que ao Estado cabe promover e incentivar a pesquisa tecnológica com vistas ao bem público, ao progresso, ao desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional e à autonomia tecnológica do país. Promover, no sentido estampado no texto constitucional, significa realizar, agir por si próprio, especialmente por meio de universidades e instituições especializadas. Incentivar, por sua vez, quer dizer conceder apoio e meios, inclusive a instituições privadas, para a realização da pesquisa que vise realizar os objetivos da Constituição.

No contexto das cidades inteligentes, mais do que discorrer sobre a competência dos entes da Federação para promover e estimular o desenvolvimento de novas tecnologias, que já está suficientemente consignada no texto constitucional como impositiva, é necessário compreender por que é pertinente que as cidades brasileiras capitaneiem a evolução tecnológica no curso da quarta revolução industrial e encorpem a concepção smart city nos seus planos econômicos, o que, ao fim, ressalta a pertinência do manejo do fomento público.

O forte impacto da intensa urbanização e das catástrofes climáticas nas cidades, com tendência de agravamento nos próximos anos, demanda robusto planejamento governamental que, aliado a um maior domínio das novas tecnologias, pode resultar na sobrevivência das cidades e melhores condições de vida aos cidadãos. Além disso, muitos fatores que afetam a competitividade de países e regiões – desde inovação e educação até administração pública e infraestrutura – também estão sob a alçada das cidades, ainda que indiretamente, evidenciando que o caminho da prosperidade passa, de modo incontornável, pelos municípios. Como registra Franco Montoro: “Ninguém vive na União ou no Estado; as pessoas vivem no município”.

Dá para prever se uma árvore vai cair? Inteligência artificial analisa de raiz a tronco oco

Pesquisadores da USP e da Unifesp avaliam espécies por dentro e também por baixo da terra, buscando determinar quais fatores estão por trás de tantas quedas

Estadão, 14 de outubro de 2024

Juliana Domingos de Lima

Na tarde desta segunda-feira, 14, quarto dia após a tempestade que atingiu a cidade de São Paulo, 400 mil clientes ainda estão sem energia, segundo a Enel, concessionária responsável pela distribuição na capital. O apagão afetou bairros de quase todas as regiões e a Grande São Paulo, atingindo mais de 2,1 milhões de imóveis.

A cidade tem vivido uma série de eventos desse tipo no último ano – em março e setembro de 2024 e novembro de 2023, quando houve um blecaute de grandes proporções que durou dias -, normalmente associados a fortes chuvas e quedas de árvores, que danificam a fiação elétrica.

A capital teve pelo menos 386 ocorrências de quedas de árvores desde o temporal de sexta-feira, segundo divulgou a Prefeitura.

Cientistas vêm produzindo estudos sobre a situação das árvores de São Paulo há pelo menos uma década, buscando determinar quais fatores estão por trás da queda de em média duas mil árvores por ano na cidade, que tem um total de 650 mil delas nas ruas.

Vários desses estudos são resultado da colaboração de um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da cidade para avaliar a saúde das árvores paulistanas e tentar reduzir os riscos de queda.

Para Marcos Buckeridge, biólogo e professor da USP que integra o grupo, tem havido uma lenta melhora no manejo arbóreo pela administração municipal nos últimos anos, com árvores sendo plantadas de maneira “mais bem pensada e sendo colocadas na posição certa”, mas que ainda é necessário maior financiamento e mais pessoal para executar os serviços e para mapear quais árvores colocam em risco a fiação da cidade e quais precisam de poda.

“Precisamos mapear as árvores que estão próximas a fios em São Paulo para saber qual é o grau de risco dessa árvore cair e interferir com o fornecimento de energia. Isso é possível de ser feito, o problema é dinheiro”, cobra Buckeridge. Os dados serão incorporados a um novo Plano Municipal de Arborização Urbana (PMAU).

Em relação à influência do clima, a análise demonstrou que, se as precipitações e rajadas de vento – principalmente acima de 80 km/h – realmente têm grande impacto sobre as quedas de árvore na cidade, também houve quedas de árvores em dois terços dos dias da estação seca em um período de três anos, em que houve queda de mais de 7 mil árvores.

“Mesmo quando não tem eventos climáticos extremos, causas climáticas evidentes, pode acabar caindo alguma árvore. Isso é uma evidência de que a gente tem um problema na arborização de São Paulo”, diz o biólogo e professor da USP Giuliano Locosselli, um dos pesquisadores envolvidos nos estudos realizados em parceria com a Prefeitura.

IA, tomografia e scan

Com base em um conjunto de dados compilados pela Prefeitura de 2013 e 2021, a equipe de pesquisadores da USP e da Unifesp fez uso de inteligência artificial para interpretar os padrões de queda de árvores na cidade. O objetivo era identificar os locais mais críticos, onde caem mais árvores, para serem então priorizados pelas equipes da Prefeitura nos serviços de manutenção e poda.

Com auxílio da ferramenta de IA, foram avaliadas as condições de mais de 26 mil árvores que tombaram e de seu entorno, como a largura das calçadas, a altura das árvores dos prédios, além de quando o bairro onde foram plantadas se desenvolveu.

Uma das descobertas foi que as árvores da cidade caem com maior frequência dentro de “cânions urbanos”, áreas mais verticalizadas, em que prédios altos formam um grande paredão.

Segundo Locosselli, esses “cânions” criam uma série de condições que favorecem a queda, como a canalização do vento, o que aumenta sua velocidade, e a concentração de poluição de restrição de luz que afetam o desenvolvimento das árvores, obrigando-as a ficar mais altas.

Nas áreas mais verticalizadas, com edifícios de em média cinco andares ou mais altos, a proporção de árvores que caem chega ao dobro do observado em média na cidade.

A análise também constatou que, nesse período, bairros mais antigos concentraram a maior quantidade de queda de árvores, seja pelo envelhecimento e apodrecimento delas, que necessitariam ser substituídas, seja por terem acumulado ao longo do tempo mais intervenções no subsolo que prejudicam as raízes, como obras de infraestrutura. A região da Sé foi a que mais apresentou quedas de árvores, com 456 eventos somente entre 2016 e 2018.

Além da idade e do sufocamento pelos prédios, os estudos identificaram como causas mais comuns para árvores caírem em São Paulo calçadas e canteiros que geram constrição no desenvolvimento da base do tronco e das raízes, levando ao seu rompimento e podas drásticas que desequilibram o peso da copa e levam o tronco a se romper.

Segundo Marcos Buckeridge, ele e outros biólogos estão desenvolvendo com pesquisadoras da Escola Politécnica da USP um software que escaneia a árvore para encontrar seu centro de gravidade, tecnologia que deve permitir podas que não aumentem o risco de queda.

Outras tecnologias também estão sendo empregadas em uma nova etapa da pesquisa das universidades paulistas em parceria com a SVMA iniciada neste ano, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Agora, os pesquisadores estão avaliando como estão cem árvores do Parque do Ibirapuera e entorno por dentro e também por baixo da terra, pela raiz.

A avaliação interna do tronco é feita por meio de uma tomografia, em que pequenos pregos são instalados ao redor da árvore, emitindo ondas de som captadas por sensores cuja velocidade de propagação indica a saúde da árvore por dentro, se há algum oco ou podridão.

Para medir a saúde das raízes, um georadar propaga ondas no solo que permitem saber seu tamanho, distribuição e se estão bem desenvolvidas.

Lei da Inovação em perspectiva

A Lei Federal nº 10.973/2004, conhecida como Lei da Inovação, é oriunda do PL 3476/2004, apresentado pela Presidência da República à Câmara dos Deputados com o intuito de aproximar a pesquisa científica e tecnológica da produção nacional, à vista do descompasso verificado entre a pesquisa exercida nas universidades públicas e o que é efetivamente absorvido no setor de produção, com baixa incorporação de tecnologia de ponta nos processos, bens e serviços.

De fato, o Brasil é um país que produz ciência de fronteira, mas que não interage adequadamente com o setor produtivo, sendo evidente a tônica conferida pela Lei da Inovação à maior interação entre universidade/academia, setor de produção e governo, com a criação de diversos mecanismos institucionais e regulatórios que buscam estimular parcerias e maior interação entre tais grupos. Este é o modelo de desenvolvimento inovativo nomeado hélice tríplice – Universidade, Indústria e Governo.

O modelo impõe às universidades uma dupla responsabilidade: de um lado, a formação de recursos humanos tecnicamente qualificados para a produção científica, e de outro, a disponibilização de infraestrutura para pesquisa em seus campi. A empresa, por sua vez, assume a função primordial (e comumente subestimada) de aplicar a produção científica na indústria para geração de capital e inovação, visto que uma inovação só será inovação quando estiver implementada no mercado – antes disso, figura-se apenas invenção. Já o papel do governo estaria calcado em três níveis: (i) pesquisas no ambiente acadêmico, como no caso de universidades públicas; (ii) disponibilização de incentivos financeiros; e (iii) estabelecimento de um aparato legal que possibilite a inovação, em observância aos comandos da Constituição Federal.

Como se nota, ao Estado é atribuído um papel altamente relevante no que atine ao desenvolvimento nacional da inovação tecnológica, que deve ser exercido não só por força legal, mas sobretudo por vocação institucional: estimular, das mais variadas formas juridicamente possíveis, a pesquisa científica e tecnológica no Brasil, mediante a organização de um complexo arranjo institucional e regulatório, tido como Sistema Nacional de Inovação (SNI), que possibilite a adequada interação entre universidade/academia e indústria, incutindo, de modo regular e consistente, algum avanço tecnológico no resultado final de bens e serviços.

Em pauta no Senado, inovação exige mais investimentos

Agência Senado, 22 de março de 2024

A 49ª posição do Brasil no índice Global de Inovação não converge com a sua nona colocação entre as principais economias do mundo. O país mais do que duplicou seus investimentos na área de pesquisa e desenvolvimento entre 2000 e 2022, mas os mais de US$ 35 bilhões investidos há dois anos são inferiores a 2015, quando os dispêndios nacionais alcançaram US$ 41,3 bilhões. Apesar do reconhecimento de que ciência, tecnologia e inovação resultam em crescimento econômico e social, ainda são necessários mais incentivos e colaborações de todos os atores econômicos para que os projetos na área alcancem os reais resultados projetados.

O Brasil ocupa a 14ª posição em produção científica, mas vem caindo posições na colaboração entre universidades e empresas. Enquanto em 2013 estava no 42º lugar, em 2023 despencou para a 78ª posição. Especialistas advertem que, apesar de produzir muitos papers (artigos científicos), o resultado em patentes é de apenas 1%.

Quando se fala em universidade-empresa, não há um match, segundo a presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei), Marcela Flores. Isso se dá por uma série de fatores: o primeiro teria a ver com a legislação e o desalinhamento entre o que existe nível federal, estadual e municipal.

— Então um é o aspecto grande de legislação, que é um dos motivadores pelos quais a gente tem essa dificuldade; e o outro aspecto tem a ver com a cultura, porque a gente não tem uma cultura de conversa e um diálogo próximo e aberto entre a universidade e as empresas, de modo que muita coisa é criada nas universidades, e não vira nada depois de mercado. O pesquisador que está dentro da universidade às vezes nunca esteve numa linha de uma empresa, desconhece esse mundo; ao mesmo tempo que o executivo ou a executiva que está sentado lá nas nossas grandes empresas brasileiras nunca esteve numa universidade, num centro de pesquisa, numa bancada de pesquisa — afirmou Marcela Flores.

Patentes no estrangeiro

Presidente da Associação Brasileira das Instituições de Pesquisa Tecnológica e Inovação (ABIPTI), empresário e professor universitário, Paulo Foina chama atenção para o fato de a Capes (Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) avaliar com mais intensidade os papers produzidos. Ele também salienta ainda que na educação, os programas de pós-graduação estão descolados da realidade de mercado. 

— Infelizmente, muitas patentes geradas no estrangeiro são por pesquisa nossa. Quando um pesquisador publica um artigo, ele tem um ano para registrar a patente daquele artigo. Como ele já publicou e cumpriu o compromisso dele, ele não faz nada. A patente acaba sendo registrada por um país estrangeiro que pega aquele artigo e publica a patente. E aí a gente perdeu, quer dizer, é pesquisa nossa que vira patente fora. […] Há falta de incentivo de pontuação dos programas de pós-graduação — diz Foina.

Para a CEO da SOSA Brazil, empresa multinacional de inovação aberta, Gianna Sagazio, a posição do Brasil no Índice Global de Inovação (são 132 países avaliados) não é compatível com a economia, com as vantagens comparativas, com a sofisticação do setor empresarial e com a qualidade da pesquisa desenvolvida no Brasil.

— O Brasil hoje, apesar de ter caído, no último ano, mais de 7%, ainda é o país que ocupa a 14ª posição em produção científica no mundo, mas ocupamos a 49ª posição no ranking de inovação. Ou seja, existe uma dificuldade no Brasil em transformar conhecimento em inovação no mercado, porque pela própria definição da inovação, a inovação acontece no mercado, as empresas inovam.

Toda essa realidade foi debatida em audiência pública na terça-feira (19), na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), a partir de requerimentos apresentados pelo líder do governo, senador Jaques Wagner (PT-BA), e pelo senador Izalci Lucas (PSDB-DF), que presidiu a reunião.

(…)

Outras propostas

Muitas outras propostas em andamento no Senado buscam aumentar os incentivos para a pesquisa e a inovação. Uma das mais antigas é o PLS 758/2015, do senador Romário (PL-RJ), que possibilita deduzir do Imposto de Renda devido pelas pessoas físicas e pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real os valores despendidos a título de doação para apoio direto a projetos de pesquisa científica básica.

— A pesquisa científica básica, majoritariamente realizada em instituições públicas como universidades e centros de pesquisa, é sem dúvida o grande eixo motriz que impulsiona a produção científica no Brasil e que serve de alicerce tanto para a pesquisa aplicada quanto para a inovação — defendeu o senador.

Outra proposta é o PL 2.831/2019, da senadora Leila Barros (PDT-DF), que pretende proporcionar melhores condições ao desenvolvimento de empresas de base tecnológica, as startups.

— Propõe-se a alteração do Marco Nacional de Ciência e Tecnologia, Lei 10.973, de 2004, que trata de incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, introduzindo conceitos importantes que envolvem a startup e seu ambiente. O projeto trata do incentivo como norma programática e define requisitos para uma empresa ser considerada startup — explica a senadora.

O senador Alessandro Vieira (MDB-SE) apresentou uma proposta para uma área mais específica. Pelo PL 4.465/2021, o parlamentar propõe medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no setor de saúde, com vistas à sua capacitação produtiva e tecnológica.

— Em relação ao direcionamento e financiamento ao setor de saúde, foram inseridos ao projeto proposto dispositivos para direcionar recursos do FNDCT prioritariamente para a superação de desafios sanitários e epidemiológicos do Sistema Único de Saúde, inclusive para a implementação, manutenção e recuperação de infraestrutura de pesquisa científica e tecnológica na área da saúde — expõe Alessandro Viera. Já a Comissão de Meio Ambiente (CMA) encabeça o PL 1.875/2022, para permitir que sejam deduzidos do lucro líquido para fins tributários os dispêndios com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica para projetos de sustentabilidade.

A par disso, a Lei da Inovação confere relevo a projetos envolvendo empresas e Institutos de Ciência e Tecnologia (ICT), que são órgãos ou entidades da administração pública, direta ou indireta, ou pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos legalmente constituídas sob as leis brasileiras, que incluam em sua missão institucional ou objeto social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter científico ou tecnológico ou o desenvolvimento de novos produtos, serviços ou processos. 

Ademais, a Lei Federal expressamente encoraja que os entes da federação, de forma independente ou coordenada, estimulem a celebração de alianças estratégicas e projetos de cooperação entre empresas, ICT e entidades privadas sem fins lucrativos voltados a atividades de pesquisa e desenvolvimento, objetivando a geração de produtos, processos e serviços inovadores, a transferência e difusão de tecnologia, ações de empreendedorismo e de criação de ambientes de inovação e a formação e capacitação de recursos humanos (art. 3º).

Onde nasce a inovação: IPT abrigará Centro de Engenharia do Google na
América Latina

O centenário Instituto de Pesquisas Tecnológicas, será a casa do centro de desenvolvimento da big tech na América Latina

Veja Negócios, 26 de outubro de 2024

Camila Pati

Em setembro, o Google deu um dos passos mais importantes de sua trajetória no mercado brasileiro. A empresa californiana iniciou as reformas do prédio número 1 do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), localizado na Cidade Universitária, em São Paulo. Trata-se de um projeto ambicioso. A ideia é que o edifício da década de 1940 abrigue o Centro de Engenharia da empresa na América Latina, reunindo centenas de profissionais que se dedicarão a desenvolver novas tecnologias. Segundo Bernardo Barlach, gerente de Parcerias e Relacionamento para Acessibilidade do Google na América Latina, a iniciativa está inserida em um plano de 1 bilhão de dólares em investimentos que a companhia pretende fazer na região da América Latina. A escolha do IPT para receber o programa do Google tem bons motivos. Fundado em 1899, o instituto consolidou-se em sua trajetória centenária como uma das referências em inovação no Brasil. Agora, ao realizar parcerias com grandes empresas de tecnologia, reforça o DNA inovador.

Essa vocação ganhou mais impulso desde 2019, quando o instituto criou o programa IPT Open, que busca mais aproximação com o ambiente corporativo. “O IPT Open consagra a oportunidade de ter no mesmo espaço físico os centros de inovação das empresas, grandes corporações, startups nascentes e startups de base tecnológica, que, de alguma forma, precisam interagir com um ecossistema de inovação”, diz Natália Cerize, diretora de estratégia e relacionais institucionais do IPT e responsável pelo IPT Open.

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A chegada do Google é um exemplo da relevância do programa, que abriga atualmente catorze empresas, além de 200 startups incubadas. Com essas iniciativas, o IPT consegue gerar receitas adicionais, tornando-se menos dependente dos recursos desembolsados pelo governo de São Paulo. Em 2023, o orçamento do IPT foi de aproximadamente 300 milhões de reais, dos quais 38% vieram do governo paulista. Os outros 62% foram gerados por serviços tecnológicos e projetos de pesquisa e desenvolvimento contratados por empresas públicas e privadas.

Foi nesse ambiente pulsante que nasceu a Abluo, a primeira startup brasileira de nanotecnologia com foco em saúde humana, animal e meio ambiente. Pertencente ao Grupo Cecil, fabricante de produtos de cobre e participante do IPT Open, a startup deve sua origem à iniciativa. “O IPT é um catalisador de tecnologia”, define a cientista da Abluo, Ludmilla de Moura, emprestando da química o termo para explicar os efeitos do acesso a infraestrutura com uma equipe multidisciplinar qualificada. A mais recente adesão ao IPT Open é da empresa de transporte ferroviário CPTM, primeira companhia pública a instalar um centro de inovação no instituto.

A inovação, de fato, é o que move o IPT. Atualmente, o instituto mantém 2.000 pesquisas em andamento em um espaço de 150.000 metros quadrados de laboratórios. Suas oito divisões de negócios miram projetos em áreas como energias renováveis, transição para o hidrogênio de baixo carbono, inteligência artificial, internet das coisas para a indústria 4.0, materiais avançados, biotecnologia e nanotecnologia, entre outras frentes de negócios. O instituto também conta com uma divisão voltada para a regulamentação de tecnologias, além de uma unidade de ensino com cursos e mestrados profissionalizantes para empresas. “Não existe nada que o brasileiro faça que não tenha o dedinho do IPT”, brinca o presidente Anderson Correia.

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Além da sede na Cidade Universitária, o IPT mantém atualmente unidades em Franca e São José dos Campos, no interior de São Paulo. Em 2022, ultrapassou as divisas paulistas e chegou a Manaus. “Um sonho que tenho, de longo prazo, é abrir mais unidades”, afirma Correia. Além da expansão, ele diz querer deixar um legado de consolidação do IPT, incluindo o fortalecimento das bases regionais, com a abertura de um concurso público, o que não ocorre há dez anos. A sua referência é a versão alemã do IPT, o Instituto Fraunhofer. Enquanto reitor do ITA, Correia assinou acordos internacionais que levaram à construção de centros internacionais dentro do instituto aeronáutico, um deles ligado ao Fraunhofer. A ideia é fazer o mesmo com o IPT. A inovação não pode parar.

Embora não seja uma Lei demasiadamente extensa (29 artigos), a Lei federal nº 10.973/2004 possui uma série de instituições e mecanismos cuja implementação perfeitamente se enquadra como uma política de fomento público, a exemplo da criação de parques, polos tecnológicos e incubadoras de empresas; cessão de imóveis para a criação de ambientes promotores de inovação; compartilhamento de infraestruturas, equipamentos, recursos e de capital intelectual, entre outros. Passaremos por alguns deles a seguir, sempre no contexto de uma política pública de smart city e de fomento à inovação tecnológica.

Encomenda tecnológica

Um dos principais mecanismos de fomento público previstos na Lei da Inovação é a encomenda tecnológica, a qual consiste na contratação promovida pela Administração, por dispensa de licitação, de ICT, entidade de direito privado sem fins lucrativos ou empresa, isoladamente ou em consórcio, voltada a atividades de pesquisa e de reconhecida capacitação tecnológica, com o objetivo de realizar atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico, objetivando a solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador.

LEI FEDERAL Nº 10.973, DE 2 DE DEZEMBRO DE 2004

Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências

CAPÍTULO IV

DO ESTÍMULO À INOVAÇÃO NAS EMPRESAS

Art. 20. Os órgãos e entidades da administração pública, em matéria de interesse público, poderão contratar diretamente ICT, entidades de direito privado sem fins lucrativos ou empresas, isoladamente ou em consórcios, voltadas para atividades de pesquisa e de reconhecida capacitação tecnológica no setor, visando à realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador.

§ 1º Considerar-se-á desenvolvida na vigência do contrato a que se refere o caput deste artigo a criação intelectual pertinente ao seu objeto cuja proteção seja requerida pela empresa contratada até 2 (dois) anos após o seu término.

§ 2º Findo o contrato sem alcance integral ou com alcance parcial do resultado almejado, o órgão ou entidade contratante, a seu exclusivo critério, poderá, mediante auditoria técnica e financeira, prorrogar seu prazo de duração ou elaborar relatório final dando-o por encerrado.

§ 3º O pagamento decorrente da contratação prevista no caput deste artigo será efetuado proporcionalmente ao resultado obtido nas atividades de pesquisa e desenvolvimento pactuadas.

§ 3º O pagamento decorrente da contratação prevista no caput será efetuado proporcionalmente aos trabalhos executados no projeto, consoante o cronograma físico-financeiro aprovado, com a possibilidade de adoção de remunerações adicionais associadas ao alcance de metas de desempenho no projeto.

§ 4º O fornecimento, em escala ou não, do produto ou processo inovador resultante das atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação encomendadas na forma do caput poderá ser contratado mediante dispensa de licitação, inclusive com o próprio desenvolvedor da encomenda, observado o disposto em regulamento específico.

§ 5º Para os fins do caput e do § 4º, a administração pública poderá, mediante justificativa expressa, contratar concomitantemente mais de uma ICT, entidade de direito privado sem fins lucrativos ou empresa com o objetivo de:

I – desenvolver alternativas para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto ou processo inovador; ou

II – executar partes de um mesmo objeto.

O risco tecnológico não é definido na Lei, cabendo ao Decreto Federal nº 9.283, de 7 de fevereiro de 2018, que regulamenta a Lei da Inovação, fornecer a conceituação exata: risco tecnológico refere-se ao possível insucesso no desenvolvimento da solução e à incerteza do resultado devido ao conhecimento técnico-científico limitado à época da ação. Ademais, é importante ressaltar que o objeto da contratação é o próprio desenvolvimento da solução ou do processo, bem ou serviço inovador, e não o produto ou o serviço em si, os quais, como consta na Lei, poderão ser objeto de posterior contratação direta.

É pertinente ressaltar que a dispensa de licitação, na encomenda tecnológica, não significa a seleção aleatória de uma empresa para o desenvolvimento da tecnologia desejada. Ao revés: é necessário o diálogo transparente da Administração com possíveis fornecedores, que poderão trazer potenciais soluções. Consubstanciado nas informações obtidas via conversa aberta com o mercado é que será definido o escopo da encomenda tecnológica e identificados potenciais fornecedores, dentre os quais algum será justificadamente selecionado para desenvolver a pesquisa e/ou o protótipo.

Nada impede, por outro lado, que a Administração utilize o diálogo competitivo, modalidade de licitação inserta na Lei Federal nº 14.133, de 1º de abril de 2021, para a contratação de encomendas tecnológicas, haja vista que, no caso, a promoção de licitação é dispensável, e não dispensada. Evidentemente, o ato deve ser fundamentado.

Como desafios no manejo do instrumento, cita-se a detecção de novas tecnologias, o medo de eventuais sanções a serem aplicadas pelos órgãos de controle e o baixo conhecimento do instrumento e das próprias potenciais inovações tecnológicas.

Criação de parques e polos tecnológicos e incubadoras de empresas

A Lei da Inovação expressamente incentiva os entes da federação a criarem ambientes promotores da inovação, como parques e polos tecnológicos e incubadoras de empresas, de modo a impulsionar o desenvolvimento de novas tecnologias a níveis local e regional.

Parque tecnológico é definido pela Lei Federal como todo complexo planejado de desenvolvimento empresarial e tecnológico, promotor da cultura de inovação, da competitividade industrial, da capacitação empresarial e da promoção de sinergias em atividades de pesquisa científica, de desenvolvimento tecnológico e de inovação, entre empresas e uma ou mais ICT, com ou sem vínculo entre si (art. 2º, inc. X).

Já polo tecnológico é indicado pela Lei Federal como o ambiente industrial e tecnológico caracterizado pela presença dominante de micro, pequenas e médias empresas com áreas correlatas de atuação em determinado espaço geográfico, com vínculos operacionais com ICT, recursos humanos, laboratórios e equipamentos organizados e com predisposição ao intercâmbio entre os entes envolvidos para consolidação, marketing e comercialização de novas tecnologias (art. 2º XI).

De outro giro, por incubadora de empresa entende-se a organização ou estrutura que objetiva estimular ou prestar apoio logístico, gerencial e tecnológico ao empreendedorismo inovador e intensivo em conhecimento, com o objetivo de facilitar a criação e o desenvolvimento de empresas que tenham como diferencial a realização de atividades voltadas à inovação (art. 2º, inc. III-A). Tais ambientes são propícios para a geração de startups.

Independente da exata conceituação que se atribua a cada um destes empreendimentos, é certo que todos eles são verdadeiros ambientes propulsores de inovação tecnológica, podendo todos serem criados/financiados pelo ente municipal para a estruturação de cidades inteligentes. 

Uma vez criada a estrutura adequada para o funcionamento do parque, polo tecnológico ou incubadora de empresas, a gestão do ambiente pode ser realizada em conjunto com universidades e empresas, em um movimento de fomento que parece vital para o início de qualquer política pública robusta de desenvolvimento tecnológico. Isto porque os parques tecnológicos são, por excelência, o locus de interação prática entre governo, universidade/academia e empresas (hélice tríplice), onde a tecnologia inovativa é materialmente incentivada.

PARQUES TECNOLÓGICOS DO BRASIL

Por Adriana Ferreira de Faria, Andressa Caroline de Battisti,
Jaqueline Akemi Suzuki Sediyama, Jeruza Haber Alves e José Antônio Silvério
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, 2021

1. INTRODUÇÃO

(…)

Em abril de 2021, estavam vinculadas aos parques tecnológicos em operação 1.993 empresas e organizações. (…) No período de 2013 a 2021 houve um aumento de 325% no número de empresas vinculadas aos parques tecnológicos no Brasil, demonstrando a importância destes ambientes promotores da inovação na atração e criação de empresas de base tecnológica. O decréscimo do número de empresas e organizações vinculadas aos parques tecnológicos entre 2020 e 2021 pode ser explicado pela grave crise provocada pela pandemia de covid-19 e pela adoção da prática de home office por diversas empresas.

Estima-se que em 2019, as 2.040 empresas vinculadas aos 55 parques tecnológicos em operação, em diferentes programas, geraram um faturamento da ordem de 3,76 bilhões de reais, pagaram 193,6 milhões de reais em impostos e empregaram cerca de 43.070 pessoas. O estudo revelou que, em 2021, os parques tecnológicos no Brasil são, em sua maioria parques jovens, apenas 20% dos parques, em média, têm mais de 14 anos de operação, e 65% dos parques têm menos de 10 anos de operação. Esse elemento reflete no fato de que apenas 28% dos parques em operação abrigam, em média, 70% das empresas vinculadas. Apenas 3 parques tecnológicos em operação possuem mais de 100 empresas. Os parques tecnológicos em operação possuem, em média, 35 empresas por parque. Apenas cinco parques tecnológicos afirmaram possuir 12 empresas ancoras. Dessa forma, em geral, os parques tecnológicos do Brasil ainda são jovens e pequenos, apontando grande potencial de crescimento a longo prazo, à medida que se tornem mais maduros.

(…)

4.1. PANORAMA GERAL

De acordo com as informações disponíveis no MCTI-InovaData-Br, em sua área de acesso restrito, estão cadastradas nesta plataforma, até junho de 2021, 93 iniciativas de parques tecnológicos no Brasil, sendo 58 parques tecnológicos em operação, 13 em processo de implantação e 22 no estágio inicial de planejamento. Porém, para o efeito das estatísticas desse estudo, serão considerados apenas os parques tecnológicos que confirmaram os seus dados na página Informações Gerais, sendo, portanto, 8 parques em implantação, 8 parques em planejamento e 55 parques tecnológicos em operação.

(…)

4.8. AVALIAÇÃO Para 100% dos parques tecnológicos em operação em 2019, o Fortalecimento do ecossistema de inovação local e/ou regional é o principal impacto para a comunidade local, conforme Figura 4.41. Os outros impactos apontados foram Atração de novos empreendimentos para a região (92%), Geração de empregos qualificados (84%), Geração de empregos qualificados (84%) e Geração de renda (81%).

Não se tem dúvidas de que a criação de ambientes de inovação como parques, polos tecnológicos e incubadoras de empresas, no caso aqui aventado de fomento público focado na estruturação de cidades inteligentes, dependa de gastos do ente municipal que não se reverterão, de imediato, em benefícios concretos à sociedade. Contudo, para os municípios que têm condições orçamentárias para dispor de investimentos, a criação de tais empreendimentos e o incentivo às empresas a se credenciarem e operarem pesquisas e parcerias de desenvolvimento tecnológico no ambiente promotor parece ponto estratégico na implementação de uma política pública de smart city.

Vale destacar que há iniciativas municipais de parques tecnológicos que contam com recursos de outros entes da Federação para ações de modernização e ampliação de infraestruturas. Exemplo disso é o Parque Tecnológico de Santo André, para o qual foram liberados em 2022 cerca de R$ 37 milhões pelo governo federal para a construção do Centro de Inovação, Tecnologia e Empreendedorismo (CITE), que integrará àquele Parque, com previsão de contrapartida de investimentos na ordem de R$ 2 milhões pelo ente municipal. Outro exemplo é o Parque Tecnológico de Sorocaba, que também contou com verbas na ordem de R$ 14,24 milhões em 2023 para expandir novas unidades econômicas no complexo, advindas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP).

A estruturação de efetivos hubs de inovação nas cidades que permitam disseminar conhecimento tecnológico, atrair pesquisadores e empresas (brasileiras e estrangeiras) e estabelecer alianças estratégicas para o estudo, desenvolvimento e comercialização de produtos, serviços e processos novos e/ou inovadores, caracteriza-se medida de fomento público. Ambientes promotores da inovação, como parques e polos tecnológicos e incubadoras de empresas, podem estimular que as novas tecnologias façam parte da vida das pessoas nas cidades, o que pode ser implementado por iniciativa e recursos dos próprios entes municipais, ou em parceria e cooperação com outros agentes e entes da Federação.

Cessão de uso de imóveis para instalação de ambientes promotores da inovação

A Lei da Inovação estipula ainda que a Administração Pública Direta, respectivas agências de fomento e ICT podem ceder o uso de imóveis, sob o regime de cessão de uso de bem público, para a instalação de ambientes promotores de inovação, diretamente às empresas e às ICT interessadas, ou à entidade com ou sem fins lucrativos que tenha por missão institucional a gestão de parques e polos tecnológicos e de incubadora de empresas, mediante contrapartida obrigatória (art. 3º-B, § 2º, inc. I).

Assim, mesmo os entes municipais que não possuam recursos orçamentários para a criação de ambientes promotores de inovação podem ser valer do mecanismo de cessão de uso de bem imóvel para atrair ICT e empresas, bem como outras entidades com ou sem fins lucrativos dedicadas à pesquisa e ao desenvolvimento de inovação tecnológica, para que se instalem na cidade mediante a estruturação de parques e polos tecnológicos. A proposta demandará esforços políticos e institucionais de atração de investimentos, porém, pode ser um meio de fomento público eficaz na estruturação de cidades inteligentes.

Compartilhamento de infraestruturas, equipamentos, recursos e capital intelectual

A Lei da Inovação estabelece ainda que as ICT públicas podem celebrar contrato ou convênio para o fim de (i) compartilhar seus laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações com outras ICT ou empresas em ações voltadas à inovação tecnológica para consecução das atividades de incubação, e (ii) permitir a utilização de tais recursos, inclusive de capital intelectual, por ICT, empresas ou pessoas físicas voltadas a atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, desde que não interfiram diretamente em sua atividade-fim e tampouco com ela conflite (art. 4º).

O contrato ou convênio de compartilhamento e permissão de utilização deve conter prazo determinado e contrapartida a ser previamente ajustada no instrumento (art. 4º, caput). A Lei destaca que o compartilhamento e a permissão devem obedecer às prioridades, aos critérios e aos requisitos aprovados e divulgados pela ICT pública, observadas as respectivas disponibilidades e a igualdade de oportunidades a empresas e demais organizações interessadas (art. 4º, par. único).

Importa dizer que a hipótese de vedação, ou mesmo condicionamento previsto em lei estadual ou norma estatutária da ICT que extrapole a norma geral contida na Lei Federal devem vir acompanhados de cabal justificativa e razoabilidade, sob pena de desconformidade com a Constituição Federal. Isto porque o comando dos art. 218 a 219-B da Lei Maior é expresso (e direcionado à toda Administração Pública) no sentido de determinar o incentivo do setor privado à realização de atividades de inovação tecnológica para fins de desenvolvimento socioeconômico e autonomia tecnológica nacional, o que deve se materializar por meio de todos os mecanismos juridicamente possíveis. Ao tolher um destes mecanismos, ou dificultar o seu acesso, sem justificação plausível, tem-se por relativamente frustrado um intento constitucional.

Desse modo, guardada a devida competência legislativa e normativa dos entes estaduais, municipais (estes, no que atine às suas peculiaridades) e das ICT acerca da matéria, tem-se que o compartilhamento e a permissão de uso de infraestruturas, equipamentos e capital intelectual pode ser um mecanismo de fomento público na estruturação de cidades inteligentes. 

Celebração de contrato de transferência de tecnologia e licenciamento para outorga de uso ou de exploração de criação desenvolvida por ICT pública

A Lei Federal nº 10.973/2004 prevê que a ICT pública pode celebrar contrato de transferência de tecnologia e de licenciamento para outorga de direito de uso ou de exploração de criação por ela desenvolvida ou em parceria com outras ICT ou empresas, incluídas as incubadas oriundas de programa de empreendedorismo da ICT (art. 6º).

Conforme dispõe a Lei da Inovação, quando não houver cláusula de exclusividade, a realização de licitação para a transferência de tecnologia e de licenciamento de direito de uso ou de exploração de criação é dispensável. Se a contratação contiver mencionada cláusula, deverá ser precedida de publicação de extrato da oferta tecnológica no site oficial da ICT, na modalidade previamente definida em sua política institucional (art. 6º, §§ 1º e 2º), não podendo ser objeto de exclusividade a transferência de tecnologia e o licenciamento para exploração de criação tida como de relevante interesse público, consoante registrado em ato do Poder Executivo (art. 6º, § 5º).

O manejo dos direitos de propriedade intelectual é ponto interessante trazido na Lei da Inovação para conferir maior atratividade ao desenvolvimento da inovação tecnológica, especialmente no escopo das smart cities. Essa diretriz encontra-se, inclusive, na Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual (ENPI – Decreto Federal nº 10.886, de 7 de dezembro de 2021 – Anexo), a qual indica diversas ações para a geração e agregação de valor de propriedade intelectual aos bens, serviços e processos.

DECRETO FEDERAL Nº 10.886, DE 7 DE DEZEMBRO DE 2021

Institui a Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso VI, alínea “a”, da Constituição,

DECRETA:

Art. 1º Fica instituída a Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual – ENPI para o período de 2021 a 2030, na forma disposta no Anexo, com o objetivo de definir ações de longo prazo para a atuação coordenada dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, a fim de estabelecer um Sistema Nacional de Propriedade Intelectual efetivo e equilibrado.

ANEXO

(…)

Ações a serem implementadas

Eixo 1: Propriedade intelectual para a competitividade e o desenvolvimento

1. Estimular o uso da informação de PI como ferramenta estratégica para nortear pesquisas, desenvolvimentos, inovações, negócios e geração de ativos de PI.

1.1. Avaliar possibilidades e propor estrutura destinada a ampliar o uso de inteligência em PI por empresas nacionais, que se dediquem a:

1.1.1. Estimular e disponibilizar mecanismos que garantam o uso efetivo, em volume, em agilidade e em qualidade, de informações de PI como ferramenta estratégica para diagnosticar, nortear, otimizar e subsidiar empresas em suas decisões de negócio;

1.1.2. Nortear pesquisas e desenvolvimento de rotas tecnológicas;

1.1.3. Identificar oportunidades de geração de ativos de propriedade intelectual como diferencial competitivo; e

1.1.4. Estimular licenciamento de PI existente para inserção de novos produtos e serviços no mercado.

1.2. Implementar iniciativas, projetos ou programas para incrementar o número de pedidos de proteção à PI no País.

1.3. Implementar medidas para facilitar a identificação, comercialização e industrialização de PI:

1.3.1. Desenvolver e publicar guias para gerenciamento de PI em empresas;

1.3.2. Desenvolver um índice de avaliação da capacidade de utilização de PI em empresas;

1.3.3. Dar suporte aos governos locais para desenvolver a utilização de PIs regionais, com foco no desenvolvimento das indústrias locais; e

1.3.4. Estimular o uso de banco de dados de PI como ferramenta para identificação de soluções inovadoras que aumentem a produtividade em cada empresa.

Assim, a celebração de contratos de transferência de tecnologia e de licenciamento para outorga de direito de uso ou de exploração de criação envolvendo ICT e empresas pode ser de grande valia na estruturação de cidades inteligentes, gerando competitividade, intensificando pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, serviços e processos e agregando valor à inteligência das cidades, especialmente quando os direitos de propriedade intelectual envolverem processos, bens e serviços de interesse público.

Cessão de direitos sobre a criação ao criador

Consta na Lei Federal da Inovação que a ICT pública pode ceder seus direitos sobre a criação ao criador, mediante manifestação expressa e motivada e a título não oneroso, para que os exerça em seu próprio nome e sob sua inteira responsabilidade, ou a terceiro, mediante remuneração, nas hipóteses e nas condições definidas na sua política institucional e na legislação pertinente (art. 11). Na hipótese de a tecnologia ser considerada de interesse da defesa nacional, o Decreto Federal nº 9.283/2018 estabelece que a ICT deverá consultar previamente o Ministério da Defesa, que deverá se manifestar acerca da conveniência da cessão, do licenciamento ou da transferência de tecnologia (art. 82).

Nesse caso, a Administração Pública Municipal que contar com ICT pode também fazer uso do mecanismo de cessão de direitos de criação como parte de um planejamento econômico que vise implementar a concepção smart city, desde que devidamente conveniente e fundamentado.

Apoio ao inventor independente

A Administração Pública Direta, as agências de fomento e as ICT públicas também podem apoiar o inventor independente que comprovar o depósito de patente de sua criação. O auxílio pode ocorrer por meio da análise de viabilidade técnica e econômica do objeto de sua invenção; da assistência para transformação da invenção em produto ou processo com os mecanismos financeiros e creditícios dispostos na legislação; do apoio na constituição de empresa que produza o bem objeto da invenção; e da orientação quanto à transferência da tecnologia a empresas já constituídas (art. 22-A da Lei da Inovação).

Esse mecanismo, porquanto simples, parece relevante no sentido de que a Administração Pública Municipal pode prestar valiosas orientações àqueles que portam de uma inovação cujo pedido de patente já esteja depositado, podendo ser economicamente avaliada e lançada ao mercado, seja por meio do próprio inventor, seja por transferência de tecnologia a outras empresas.

Subvenção econômica

A Administração Pública Direta, as agências de fomento e as ICT públicas podem conceder subvenção econômica às atividades de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação em empresas, admitida sua destinação para despesas de capital e correntes, desde que destinadas preponderantemente à atividade fomentada (art. 19, § 2º-A, inc. I e § 8º da Lei da Inovação). A subvenção econômica tratada na Lei da Inovação refere-se ao apoio financeiro que permita a aplicação de recursos públicos não-reembolsáveis diretamente em empresas, para o compartilhamento dos custos e riscos inerentes às atividades de inovação.

O instrumento poderá contar com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que é um fundo de natureza contábil e financeira que tem como objetivo financiar a inovação e o desenvolvimento científico e tecnológico, com vistas a promover o desenvolvimento socioeconômico do país. Ademais, a concessão da subvenção econômica implicará, obrigatoriamente, a assunção de contrapartida pela empresa beneficiária, na forma estabelecida em termo de outorga específico (art. 19, § 3º).

Para além da normatização geral contida na Lei da Inovação e eventual legislação específica do Estado e municípios, a subvenção econômica observará o disposto no art. 19 da Lei Federal nº 4.320, de 17 de março de 1964, que estipula a necessidade de autorização legislativa para a concessão de subvenção a empresas com fins lucrativos. Portanto, o instrumento de fomento ora tratado deverá ser autorizado em lei especial que expressamente permita a transferência de recursos orçamentários para o setor econômico ou projeto a ser fomentado, com a posterior inclusão da subvenção na Lei Orçamentária Anual (LOA).  

Assim sendo, a subvenção econômica mostra-se mais um mecanismo de fomento público que pode ser utilizado pelos entes municipais no intento de se implementar uma política pública de cidade inteligente. 

Bônus tecnológico

O bônus tecnológico é conceituado na Lei da Inovação como subvenção a microempresas e a empresas de pequeno e médio porte, com base em dotações orçamentárias de órgãos e entidades da Administração Pública, destinada ao pagamento de compartilhamento e uso de infraestrutura de P&D tecnológicos, de contratação de serviços tecnológicos especializados ou transferência de tecnologia, quando esta última for meramente complementar àqueles serviços, nos termos do regulamento (art. 2º, inc. XIII).

Para a implementação do instrumento ora analisado, a mesma regra vale quanto à necessidade de autorização legislativa, em observância ao art. 19 da Lei Federal nº 4.320/1964, haja vista se tratar de um subtipo de subvenção econômica, direcionada, especificamente, às microempresas e empresas de pequeno e médio porte.

Ressalta-se que a proposta ganha maior relevância prática ante a previsão do art. 24 do Decreto Federal nº 9.283/2018, que estabelece que a FINEP, como Secretaria-Executiva do FNDCT, credenciará agências de fomento regionais, estaduais e locais, além de instituições de crédito oficiais, visando descentralizar e aumentar a capilaridade dos programas de concessão de subvenção às microempresas e às empresas de pequeno porte.

Portanto, o bônus tecnológico também se apresenta como uma medida de fomento público cabível dentro de um planejamento econômico municipal de smart city.

3. DEBATENDO

1. Considerando a competência de todos os entes da Federação para o incentivo à inovação tecnológica, qual seria o papel dos Estados e da União na implementação de cidades inteligentes?

2. É pertinente pensar na criação de estruturas de regionalização para o incentivo à inovação tecnológica, como regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões, nos termos do art. 25, § 3º da Constituição Federal, à vista da restrição orçamentária dos municípios?

3. A atuação dos órgãos de controle seriam barreiras reais para o melhor uso da encomenda tecnológica? É possível identificarmos outras barreiras que justifiquem o comedido uso da ferramenta?

4. Qual o grau de conhecimento dos gestores públicos a respeito das instituições e dos mecanismos regulatórios da Lei da Inovação?

5. Quais as barreiras para incrementação do fomento público nas compras públicas, a exemplo da encomenda tecnológica?

6. O funcionalismo público está capacitado para avançar no tema da inovação tecnológica e da estruturação de cidades inteligentes?

7. Completando 20 (vinte) anos de vigência em dezembro de 2024, quais são as contribuições práticas trazidas pela Lei da Inovação em termos de fomento à inovação tecnológica?

4. APROFUNDANDO

COUTINHO, Diogo Rosenthal; MOUALLEM, Pedro Salomon B. Gargalos jurídico-institucionais à inovação no Brasil. In: COUTINHO, Diogo R., ROCHA, Jean-Paul Veiga da; SCHAPIRO, Mario G. (Coord.). Direito Econômico Atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.

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